Educação musical nas escolas: realidade ou ilusão?

A lei 11.769 de agosto de 2008 decreta obrigatoriedade do ensino de música na educação básica brasileira. Estabelece, ainda, prazos para a capacitação dos professores e preparação das escolas. A lei foi pleiteada por um grupo de músicos e pessoas ligadas à cultura, inclusive nomes famosos do meio artístico, e sua promulgação foi considerada uma grande vitória. Eu, entretanto, não sou tão otimista, e vou explicar porquê.

Pra começo de conversa, alguém aí é contra a educação musical em nossas escolas? E antes que algum professor de cursinho levante a mão e diga que música não é necessária porque não cai no vestibular, ou que algum Max Gehringer venha me falar das tendências do mercado de trabalho, já digo que não tô nem aí pra esse blá-blá-blá, porque o assunto aqui é formação de seres humanos, e não de apertadores de parafusos da máquina capitalista. Pois então, como a maioria das pessoas, eu sou a favor da educação musical, inclusive sou professor de música. Acredito que a música é uma linguagem tão importante quanto português ou matemática, e provavelmente mais importante do que um bocado de coisa que eu aprendi na escola. Ué, então porque eu não estou comemorando a lei 11.769, confraternizando com os colegas músicos que lutaram por essa causa? A resposta é simples: porque o buraco é mais embaixo.

Pergunte ao criador
Pergunte ao criador
Quem pintou essa aquarela?
Livre do açoite da senzala
Preso na miséria da favela 

 Os versos do samba-enredo da Mangueira no carnaval de 1988 resumem muito bem o problema da Lei Áurea, que a mais de cem anos decretou o fim da escravidão negra no Brasil; apesar de urgente e imprescindível, a lei era rasa, sem a profundidade necessária, pouco conectada à realidade de uma sociedade que durante séculos tratou o negro com uma mercadoria, e que obviamente não ia passar a tratá-lo com dignidade de uma hora pra outra, somente por uma assinatura da princesa Isabel. As atuais políticas de cotas em universidades são a justa correção de uma das deformações sociais geradas pela falta de profundidade da Lei Áurea. Ou seja, o buraco era mais embaixo.

Acredito que com a Lei 11.769 algo semelhante pode acontecer. O texto da lei (que na verdade acrescenta um parágrafo à Lei 9.394, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional), é muito vago, não define propostas, métodos ou metas dessa educação musical que deve ser implantada, resume-se apenas em dizer que a música deverá ser conteúdo obrigatório na educação básica e que os sistemas de ensino terão três anos letivos para se adaptarem às exigências, a partir da

A música é, muito antes que uma profissão, uma atividade humana natural e coletiva, uma brincadeira(…)

data de publicação da lei, ou seja, 2008. Os três anos já passaram e não vejo nenhuma mudança. Além disso a lei não explica o “porque” nem o “como” dessa educação musical. Ora, não é razoável pensar na possibilidade de que uma lei implantada sem a menor preparação, sem a profundidade de debate que exige, e sem o detalhamento de que necessita, acabe sendo prejudicial a quem deveria beneficiar, e conseqüentemente para toda a sociedade? Ou que acabe sendo apenas uma maquiagem para o problema que se propõe a resolver? A Lei Áurea, para citar apenas uma, está aí pra provar que sim. Por isso é preciso parar de legislar como se vivêssemos no país de papel, onde uma assinatura de presidente e uma publicação no diário oficial resolvem os problemas, e começar a levar em conta a realidade antes de sair propondo e aprovando projetos de lei “revolucionários”, ou a emenda pode sair pior que o soneto, como tantas vezes já aconteceu por aqui.

A realidade da educação musical no Brasil é a mesma da educação como um todo: precária. No ensino básico são poucas as escolas, tanto na rede pública quanto na particular, que oferecem aulas de música, e quase sempre a qualidade da aula fica por conta do professor, pois não existe uma definição de metas, métodos ou atividades por parte dos órgãos públicos ligados à educação. Ou seja, a criança ser estimulada musicalmente da forma correta depende da sorte de ter um bom professor numa boa escola. Além disso a aula de música quase sempre é vista como uma atividade secundária, um extra oferecido pela escola. A aula de música é considerada artigo de luxo, algo supérfluo, desnecessário, e não o artigo essencial que na verdade é.

No âmbito do ensino superior a situação é um pouco melhor. As estruturas didáticas já estão organizadas, mas quase sempre direcionadas à música erudita. Já a nossa música popular, tão rica e plural, ainda não foi corretamente assimilada pelas universidades, e quase sempre é estudada e organizada a partir de métodos da música popular dos Estados Unidos, que com certeza podem ser úteis à nossa cultura, mas que não abrangem muitas (talvez a maioria) de nossas linguagens musicais. Além disso, os cursos de licenciatura são pouco adequados à realidade educacional que vivemos, e não prepara satisfatoriamente o professor de música. Isso quando o recém-formado consegue alguma colocação como professor, já que a maioria das escolas do ensino básico não oferece aula de música. Consegue enxergar o círculo vicioso

Villa-Lobos, um dos pilares da música brasileira, tinha ótimas ideias para a educação musical. Mas as falhas na aplicação dessas ideias fizeram fracassar o projeto nacional de educação musical implementado pelo governo Vargas na década de 1930.

Sou professor de música e não sou formado em universidade. Não levo o fato de não ser formado pelas vias tradicionais como vantagem ou desvantagem, apenas como um fato. E criei minha visão de educação a partir dessa trajetória não-acadêmica, muitas vezes na base da tentativa-e-erro, aprendendo com as experiências em sala de aula, e também através da observação da didática de grandes professores dos quais tive o privilégio de ser aluno; e diga-se de passagem, a maioria deles também formado de maneira não-acadêmica (mais um motivo para rever a eficiência dos métodos aplicados nas licenciaturas em música). Tenho uma ideia muito clara do que é uma boa aula de música para crianças/adolescentes, e que fica cada vez mais clara e apurada toda vez que guardo meu violão ao final de um dia lecionando. Citando Cláudio Bergamini, excelente didata e um dos meus maiores mestres: nas sociedades indígenas existe um líder político, o cacique, um líder religioso, o pajé, e há divisão de trabalho de acordo com a idade e o sexo. No entanto, não existe na tribo a figura do músico, pois a música não é tarefa/privilégio de alguns, mas uma atividade realizada e desfrutada por todos, indiscriminadamente. Em algum ponto de nossa trajetória a música deixou de ser um bem comum, e como quase tudo em nosso mundo industrializado, passou a ser mercantilizada, capitalizada, trocada e negociada como mercadoria, e a partir daí nasce a profissão de músico, e todo o misticismo protecionista criado em torno da prática musical. No entanto, durante a maior parte da história da humanidade a música foi uma atividade tão corriqueira e natural quanto andar e conversar, e não uma dádiva concedida a poucos que nasceram com um “dom” ou “talento”, ou algo em que seja preciso estudar até se especializar para finalmente estar “apto” a realizar (as duas ideias mais comuns atualmente). Por conta desse desvio de percurso, a educação em que acredito tem como ponto de partida a desmistificação da prática musical. A música é, muito antes que uma profissão, uma atividade humana natural e coletiva, uma brincadeira (no sentido mais nobre da palavra), uma forma de estar junto fazendo alguma coisa, compartilhando uma experiência. Por isso acredito ser necessário re-democratizar a música, dar novamente acesso a todos a essa prática, e com isso desenvolver o senso crítico, libertar a criatividade, apurar a sensibilidade, fortalecer o senso de grupo e de comunidade. E obviamente, fazer isso baseado nos nossos próprios valores, usando material já presente em nossa cultura, riquíssima, que está cheia de coisa boa pra nos ensinar enquanto continuamos a importar didáticas e procedimentos de outros países. Acredito que projetando e aplicando corretamente metodologias de ensino que visem colocar de volta o instrumento na mão e a canção na boca de todos, não precisaremos nos preocupar em formar bons músicos, pois eles virão espontaneamente, e o público igualmente educado será capaz de percebê-los e valorizá-los. Minhas aulas são norteadas por essas ideias, e tenho obtido sucesso ao aplicá-las. Pergunte aos meus alunos!

Ok, essa é a minha concepção de educação musical, mas não é a única (graças à Deus!). Existem várias formas de se pensar e ensinar música, e com certeza muitas delas são boas e perfeitamente aplicáveis à nossa realidade sócio-cultural. Mas cadê o debate? Cadê o confronto de ideias? Quem está pensando em como será aplicada a Lei 11.769? A educação musical é importante e disso ninguém duvida, mas o buraco é mais embaixo. Uma educação musical equivocada, falha ou ineficiente pode ser um tiro no pé, e afastar mais do que aproximar as pessoas da música. Um mau músico pode tornar a música uma experiência desagradável para algumas pessoas, mas um mau professor de música pode tornar a música uma experiência desagradável para muitas gerações, e o resultado disso é ter uma arte sublime (aliás, sublime como qualquer outra arte) transformada em mais uma ferramenta de alienação, servindo somente aos interesses dos donos do mundo do capital, quando na verdade deveria ser uma ferramenta de construção e libertação do gênio humano. Aí já viu, dá-lhe mediocridade, esperem por mais especialistas falando da incrível revolução artística da obra de Lady Gaga, mais prêmios para os virtuosos instrumentistas do Restart, e mais comentários técnicos da grande cantora Preta Gil em competições musicais domingueiras.

Então, caros colegas que estão pleiteando a causa da educação musical, não comemoremos antes do tempo, pois a lei 11.769 é apenas o primeiro passo; é necessário e urgente um debate amplo, profundo e detalhado no sentido de definir as metas e métodos dessa educação.

Não vamos esquecer: o buraco é mais embaixo! O célebre samba-enredo da Mangueira de 1988 chama-se “Cem anos de liberdade: realidade ou ilusão?”, é de autoria de Jurandir da Mangueira, Hélio Turco e Alvinho da Mangueira, e serviu de inspiração para o título deste artigo. E também devo mencionar meu professor Ian Guest, autor de uma frase genial que utilizei no texto: “Professor formar músico é paradoxo. Ensinar de verdade é pôr o instrumento na mão e a canção na boca de todos, e a música a todos pertencerá. Daí nasce o músico.”

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Diego Cavalcanti
Diego Cavalcanti
Músico, violonista, guitarrista, compositor, arranjador e professor. Gosta de música brasileira, especialmente Choro e Samba. Acredita que escrever na internet vai levar ao mundo a genialidade de sua obra, ainda restrita ao seu quarto, meia-dúzia de amigos compassivos e dois ou três alunos bajuladores.

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