Feche os olhos

O ser humano é um animal visual, e isto não é um fato cultural, mas biológico e evolutivo. Nossa visão sobrepuja todos os nossos outros sentidos e testes científicos demonstram que ao receber informações conflitantes de diferentes órgãos sensoriais, nosso cérebro tem tendência a privilegiar o que vemos (e não o que ouvimos, cheiramos, provamos ou tocamos) e interpretar a imagem como sendo a “realidade”. Com isso não é de se espantar que nós humanos tenhamos criado ao longo dos milênios uma cultura visual que reflete justamente esse fato biológico; se nosso sentido mais desenvolvido fosse a audição ou o olfato, por exemplo, certamente teríamos construído sociedades completamente diferentes.

Ok, desculpas evolutivas à parte, as sociedades humanas contemporâneas têm sistematicamente supervalorizado a visão, a imagem, e negligenciado os outros sentidos. Somos desde cedo treinados a diferenciar formas e cores, mas não sons, cheiros, sabores ou texturas. Para a maioria das pessoas no gozo pleno de sua faculdades visuais (sorry, daltônicos…) será muito óbvio perceber que dois objetos possuem cores ou formas diferentes, mas ao mesmo tempo teremos a impressão de que são necessárias habilidades excepcionais para distinguir e classificar dois sons diferentes. A maioria das pessoas quando instigadas a distinguir e classificar os sons que ouvem, sentem grande dificuldade em constatar mesmo as coisas que parecem mais óbvias a ouvidos minimamente adestrados; por outro lado, aqueles que tiveram contato relevante com a música e desenvolveram sua acuidade auditiva são colocados como “especiais”, portadores de um “dom”, quando na verdade são simplesmente pessoas que em algum momento de suas vidas tiveram a oportunidade de desenvolver a audição e a musicalidade. Vivemos uma verdadeira endemia de “atrofia auditiva” por falta do uso da faculdade de ouvir, consequência triste de uma sociedade dominada pela monocultura sensorial (Ludmila Rodrigues já falou disso aqui no Trevous, mas puxando brasa pro olfato); em nosso mundo existe um verdadeiro monopólio da imagem, e negligenciamos os sons, cheiros, sabores e texturas ─ reflexo de outras monoculturas e monopólios aos quais somos submetidos, e que os mais canalhas ou os menos inteligentes chamarão de “globalização”, esse eufemismo infame e capcioso para o assassinato da diversidade humana e natural.

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Houve um tempo em que o primeiro contato de um cantor com seu público era através do som, e não da imagem.

No vácuo dessa atrofia vem uma indústria fonográfica, selvagem e temente da ferrugem da ganância a lhe corroer as engrenagens, nos empurrando goela abaixo artistas que nada tem a oferecer musicalmente, cuja sobrevivência se apoia exclusivamente em marketing pesado e investimento na “imagem”. Nesse contexto, os mais bonitos segundo o padrão vigente chegam mais longe. Beyoncé ou Shakira teriam alcançado o status de estrelas pop globais se não fossem bonitas? Alguém acredita mesmo que suas famas são diretamente proporcionais aos seus dotes como cantoras? Não se trata aqui de um ode ao desprezo da imagem em favor do som, mas da busca de um equilíbrio entre os dois. O gestual e a imagem de certos artistas é, de fato, hipnotizante: Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Yamandú Costa, Freddie Mercury, Jimi Hendrix, Elis Regina, são exemplos de extremo carisma em sua misancene, só para citar alguns. Mas nesses artistas há um ponto fundamental: a música está ali, sempre em primeiro plano, a música é a essência, e a música é boa demais! A imagem é, sim, atraente, é bom vê-los, mas é melhor ainda ouvi-los. Suas performances no palco são apenas o acabamento visual caprichado a uma música de alta qualidade, que tem valor por si própria, que se sustenta e fala por si própria. Mas isso não é verdade para todos, infelizmente; tire a superprodução, os palcos gigantes com dezenas de bailarinos e efeitos pirotécnicos, os videoclipes com orçamentos milionários e carregados de apelo visual e sexual, tire isso tudo e o que restará de certos nomes da música pop? Pouquíssima coisa, eu garanto.

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Britney Spears nunca cantou bem, mas era a maior estrela pop no fim da década de 1990 e começo de 2000. Mas aí se envolveu em “escândalos”, envelheceu e ganhou peso; estragou a “imagem” e virou carta fora do baralho da indústria fonográfica.

A partir da década de 1980 o videoclipe se tornou um veículo obrigatório para a divulgação da música pop americana e inglesa, e o resto do mundo não teve alternativa a não ser seguir o mesmo caminho dos donos da máquina da indústria fonográfica. O advento da MTV e os clipes superproduzidos de Michael Jackson (com seu milionário “Thriller” estabelecendo um novo patamar de produção) provavelmente foram o impulso inicial da tendência que atualmente faz da música uma refém da imagem, tendência essa que contaminou também os palcos, com shows que parecem cada vez mais um espetáculo do Cirque du Soleil e cada vez menos um concerto musical. No centro dessa “arte” não está a música, a criação do artista, mas uma imagem fabricada pela indústria; Beyoncé, Shakira, Rihanna, Kate Perry… todas facilmente substituíveis, todas filhas da mesma fórmula: pegue uma menina bonita que tenha uma mínima qualidade vocal e aptidão para a dança, encontre sua fatia do mercado baseado em pesquisas, invista pesado na produção, faça um clipe cheio de apelo sexual e imagens vibrantes, um show com dezenas de coisas acontecendo ao mesmo tempo no palco e pimba! Nasce mais uma estrela fabricada, com sua arte estéril e vazia, sem essência nem sabor. A chamada música pop é o exemplo máximo dessa “linha de montagem” de “artistas”, mas a mesma metodologia, com maior ou menor flexibilidade, é usada na fabricação de nomes em outros gêneros, inclusive na atual MPB (que de “brasileira” só tem o nome); os artistas transgênicos estão por toda parte! Como um livro ruim que precisa de uma edição luxuosa para conseguir alguma atenção, a música pop e a indústria do entretenimento seguem adiante; a música não é mais a musa, o centro das atenções, a essência do espetáculo, mas apenas um plano de fundo para uma apresentação circense erótica. E nós seguimos cada vez mais surdos, olhos vidrados, ouvidos atrofiados, a coreografia é mais importante que os acordes do refrão, o clipe pode ser visto com ou sem som, tanto faz…

Então fica meu apelo: feche um poucos os olhos. Apenas ouça. A verdadeira música independe da imagem.

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Diego Cavalcanti
Diego Cavalcanti
Músico, violonista, guitarrista, compositor, arranjador e professor. Gosta de música brasileira, especialmente Choro e Samba. Acredita que escrever na internet vai levar ao mundo a genialidade de sua obra, ainda restrita ao seu quarto, meia-dúzia de amigos compassivos e dois ou três alunos bajuladores.

2 COMENTÁRIOS

  1. Muito bom, Diego… Melhor exemplo dessa “contracultura” no cenário brasileiro, na minha opinião, é a Martnália. Adoro a voz dela, adoro o jeito que ela canta, amo ouvir, só me dá coisa boa. Não tem super produção, não tem roupa com brilho (e também não tem sutiã, o que me agonia um pouco), não tem formalidade, é só cantar, é só musica e é maravilhoso! Juliana Alvim

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