Impressões da Coreia

Meu primeiro pouso na Ásia, nesta viagem sonhada por muitos anos, foi a Coreia do Sul. País que todo mundo sabe ser partido ao meio, entre dois regimes diametralmente opostos: o Norte, território culturalmente mais isolado do mundo, resíduo das ditaduras comunistas da Guerra Fria; e o Sul, um país capitalista, rico, com forte influência norte-americana, tanto econômica quanto militar. Por motivos óbvios, estou visitando a Coreia do Sul, exibindo um trabalho no Museu Schema de Arte, em Cheongju (ao sul da capital). Cheguei aqui junto com um grupo de artistas holandeses, participando do mesmo evento. Fizemos todos os passeios e refeições, todos os dias, junto com a equipe do museum, inclusive o diretor e alguns artistas locais. Eles foram de uma generosidade incrível, nos mostrando o que há de melhor na terra deles, ensinando algumas palavras do idioma Hangul e nos alimentando como reis. A seguir listei as primeiras impressões sobre esse país lindíssimo e hospitaleiro. Escrevo em estado de puro deslumbramento pela Coreia.

1 – Geopolítica

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Os coreanos do Sul não se consideram “Coreia do Sul”, mas simplesmente “Coreia” (o país oficialmente também é chamado República da Coreia), não reconhecendo portanto o Norte como outro país, nem como qualquer coisa explicável. Os coreanos conhecidos meus preferem nem falar sobre o assunto.

2 – Higiene

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As cidades são limpas, em geral. Os restaurantes e banheiros, inclusive de beira de estrada, são bem decentes, às vezes impecáveis. Penso que higiene é um lance cultural, por isso não julgo muito um país pela higiene. Cada qual tem seus padrões de limpeza. Enfim, para os meus padrões subjetivos, achei os hábitos higiênicos na Coreia bem mais cuidadosos que na Europa.
Assim como em muitos países, eles sempre – sempre – tiram o sapato ao entrar em casa, ou em templos, e na maioria dos restaurantes, casas de chá etc. Banheiros devem ser ‘pisados’ com um chinelo ou pantufa específica para o banheiro e este não deve ser usado no resto da casa.
O mais engraçado de tudo, claro, são os vasos sanitários com várias opções de lavagem: feminina, masculina e também tem chuveirinho instalado pra limpar o próprio vaso em si se necessário. No hotel em que fiquei em Cheongju, o vaso era da Samsung (!).
Outro detalhe: nas mesas dos restaurantes eles sempre colocam lencinhos umedecidos para se limpar as mãos antes de se comer. Guardanapos também são postos numa caixinha de madeira que é muito mais bacana que a maioria dos porta-guardanapos que eu já vi.

3 – Culinária 1

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A comida é servida em vários pratinhos e tigelas que são trazidos continuamente, e vão ocupando quase toda a superfície da mesa. O arroz é servido individualmente numa tigela de metal. Tudo vem quentíssimo. O ‘kimchi’ (repolho marinado com muita pimenta, super tradicional) é sempre servido, em qualquer refeição, sem exceção. Come-se bastante, parece, mas ainda não descobri se é mais educado deixar alguns restos ou se deve-se comer até limpar os pratos. A sensação que dá é que se a gente come tudo, eles pensam que a gente não teve comida suficiente. E é comida demais. Mas eu fico com pena de jogar fora. Ainda não entendi a lógica. Nossos guias coreanos simplesmente pediam comida sem parar.

4 – Culinária 2

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O café da manhã é uma refeição como todas as outras. Pode-se tomar uma sopa com frutos do mar, ou com tofu e algas, ou noodles com carne etc. O ‘kimchi’ é servido em pequenas porções, acompanhado de outros pratinhos com verduras, feijões, sopinhas, tudo sem acréscimo de preço. Não é preciso dizer que a apresentação é maravilhosa, os pratos e tigelas são feitos em bons materiais, muitas vezes de cerâmica tradicional. E os ingredientes são coloridos, decorados com gergelim, cogumelos variados etc. Tudo altamente estimulante para os cinco sentidos.

5 – Gorjeta

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Não se dá gorjeta em restaurantes e em nenhuma transação comercial.

6 – Ficção e realidade

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Seul é uma cidade gigantesca, de 10 milhões de habitantes na área central e 25 milhões na região metropolitana. A modernidade e o antigo convivem na capital, onde vários palácios e arranha-céus compõem a paisagem urbana. Muita gente pensa que Seul é uma cidade futurística e organizadíssima. Mas depende muito de área para área. Ao chegar no nosso hotel, por exemplo, que fica numa área bastante turística, em processo de gentrificação (Insadong), passamos por vários becos, coroados por milhares de fios elétricos. Vimos pessoas sentadas à porta de casebres insalubres, catadores de papelão, gatos vadios etc etc. Qualquer semelhança com o Rio de Janeiro é mera coincidência. A diferença principal, é claro, no quesito segurança. A Coreia é extremamente segura. Roubos são raros. Assaltos provavelmente não existem. (Descobri mais uma verdades na vida, que ‘roubar’ também é cultural. Inevitavelmente voltamos a um tema recorrente, aquele de que muitos cariocas ainda não se deram conta, que o Rio é uma das cidades mais violentas do mundo e o Brasil em geral é um grande perdedor nas listas de educação, segurança e direitos humanos. É só sair do Brasil para se enxergar isso.)

7 – História

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A história da Coreia remonta à China antiga e foi se desenvolvendo durante séculos pelas dinastias locais. Não conheço toda a história. Mas é importante saber que os japoneses ocuparam a Coreia mais de uma vez, pilhando bens e até sequestrando profissionais importantes, como os mestres de porcelana de outrora. A porcelana japonesa deve muito à técnica coreana por exemplo. O trauma mais recente com o vizinho japonês é sem dúvida a ocupação na Segunda Guerra Mundial e que ainda está por ser desculpada (coisa que o governo japonês se recusa a fazer), que foi o abuso sexual de centenas de mulheres pelos soldados japoneses. Conhecidas como ‘comfort women’, essas mulheres perderam suas vidas depois da guerra e sobreviveram marginalizadas ou se retirando do convívio social, pela vergonha que terem sido usadas pelos inimigos. Hoje elas são poucas, já velhinhas, na faixa dos 93 anos. Semana que vem vamos visitar o museu sobre o tema. Portanto, falar no Japão com os nossos amigos coreanos é tocar numa ferida aberta. E o pior é que meu próximo destino é exatamente o Japão – daqui a duas semanas. Portanto estou contente de ter vindo à Coreia primeiro, para descobrir as semelhanças e diferenças, e entender melhor os dois países. Acredito haverem muito mais aspectos em comum, mais do que eu e muita gente pensa. Veremos.

8 – Cultura

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Das muitas semelhanças com o Japão (país que ainda não visitei) são os inúmeros templos budistas espalhados de norte a sul. Grande parte deles é patrimônio histórico internacional e portanto muitíssimo bem conservados. Outra semelhança pitoresca é a cultura ‘cosplay’, os notórios grupos de jovens que saem fantasiados pelas ruas, também são vistos por aqui em Seul, todo dia pelo centro histórico. Eles saem para tomar um café, um sorvete, com seus selfie-sticks, registrando tudo, na maior placidez. Os coreanos também apreciam tomar chá sentadinhos numa esteira no chão, cercados de jarras e copinhos de cerâmica lindíssimos, sem dever nada às famosas cerimônias japonesas.

9 – Paisagem

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Você viaja a Coreia do Sul inteirinha e vê montanhas ad infinitum, 360º de floresta temperada, com algumas plantações de arros e algumas fábricas.

10 – Triste constatação 1

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Algumas grandes corporações dominam diversos setores comerciais. Por exemplo, a Hyundai, a LG, a Kia, etc são também empreendedoras imobiliárias, possuem canais de TV, times de basebol etc. A Samsung também constrói prédios e fabrica vasos sanitários eletrônicos. A Hyundai ainda por cima tem postos de gasolina. Toda essa promiscuidade empresarial assusta. Grandes conglomerados como estes são uma ameaça à autodefesa da sociedade. Eles formam uma força política muito poderosa. Além deste perigoso cenário, pelo país todo se veem torres residenciais, aos moldes das cidades mais novas da China e também do Brasil. O modelo de condomínios fechados estilo Barra da Tijuca não foi inventado por nós. Foi a lógica neoliberal, que esvazia a vida pública, em sociedade, e promove a privatização do espaço público. E este processo acontece no Brasil hoje também, infelizmente.

11 – Triste constatação 2

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Eu não poderia deixar de mencionar a minha profunda dó em ver a condição dos animais em geral na Coreia. Vi muitos cães presos pelo pescoço, na coleira, em quintais, lojas e até em oficinas de carro. Cachorros de médio porte são usados para vigilância e não tem qualquer vida social. Os cães de pequeno porte são mais comuns como animais de estimação e gozam de um pouco mais de carinho. Mas ainda assim estes são vendidos como brinquedos, em vitrines, desde a mais tenra idade. A gente passou por uma rua onde os filhotinhos pulavam, dentro das gaiolas de vidro, desesperados por um pouco de atenção e de socialização. Eu não quis fotografá-los pois sei que as imagens tem um poder de impregnar nossas emoções.
Já os mercados de peixe também não me enganam. Todo mundo, inclusive eu, adora comer frutos do mar e, claro, estando na Ásia, todo mundo quer se esbaldar em todas as possibilidades gastronômicas possíveis. Há muitos anos que eu busco não comer animais, ainda que gostando de carne e peixes, exercito um equilíbrio entre o autocontrole e a tolerância. Se os nossos guias coreanos faziam questão de pedir um prato com peixe ou carne, eu acabava comendo um tanto e provando um pouco de tudo. Mas quando posso escolher, não peço animais. Se a gente para pra calcular o holocausto que se pratica todos os dias, a todas as formas de vida consideradas ‘comestíveis’, aí sim a gente consegue fazer uma reflexão. Não tem como curtir nenhum mercado de peixes hoje em dia, sabendo que a vida marinha está se esvaindo dos oceanos. É claro que são criaturas fascinantes, exóticas, e saborosas. Mas quero um mundo mais responsável, menos egoísta. Vamos repensar urgentemente a ideia de ‘cultura’ para incluir todos os seres viventes num mundo mais harmonioso. E assistir a todos aqueles seres se debatendo, sufocados em bacias abarrotadas, sendo cortados e comidos vivos, no banquete sinistro de todo dia, é praticamente sadismo ao meu ver. Sim, é possível modificar a cultura. Os peixes estão desaparecendo a olhos nus, galera. Não tem vazão para tanto prazer gastronômico. Pense nisso.

12 – O povo

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Não gosto de generalizar, mas com a minha experiência de dois meses convivendo com coreanos e conhecendo alguns há mais tempo, permito-me generalizar aqui e agora: este é um baita de um povo gentil, divertido, educado e lindo!

© Fotos: Ludmila Rodrigues

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Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues é carioca, artista plástica, cenógrafa e professora, radicada em Haia, nos Países Baixos. Seu trabalho une a dança à arquitetura, construindo pontes entre os cinco sentidos e a arte, entre a experiência individual e a coletiva. Ludmila também é apaixonada por kung fu e por cinema.

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