Um silêncio servindo de amém

20 de Junho de 1970, um sábado tenso no Rio de Janeiro. Para alguns, a razão da angústia é a final da Copa no dia seguinte: Brasil e Itália, jogão, quem ganhar se torna o primeiro tricampeão mundial de futebol e leva pra casa a taça Jules Rimet. Para outros, a razão da angústia é o avanço da repressão do AI-5 no governo Médici: desde o começo do dia estão sendo cumpridos mandados de prisão para vários estudantes e ativistas envolvidos em passeatas e movimentos contra a ditadura militar. A polícia entra nas casas, revirando cada canto em busca de qualquer coisa que possa se tornar uma prova: bandeiras, jornais, panfletos, livros de capa vermelha, qualquer coisa que possa sugerir, mesmo que de forma esvaecida, um grupo terrorista, designação genérica para enquadrar os inconvenientes aos militares. Em uma das incursões, bingo!, encontram um revólver, tudo o que queriam para dar o mínimo respaldo à acusação de “grupo terrorista armado”. O revólver, velho, não pertence à nenhum dos indiciados, mas ao pai de uma das estudantes, e na verdade é uma arma legalizada, apenas com o registro vencido. Mas não tem problema, a imprensa não precisa comentar esse detalhe. No dia seguinte está estampado em caixa alta na capa de um dos jornais de maior circulação do país, apenas um pouco abaixo da manchete sobre a final da Copa: GRUPO TERRORISTA PRESO NO RIO. Na foto, a mesa da sala do DOPS com as “provas” (o revólver em destaque); na matéria, as palavras do chefe da polícia em negrito e entre aspas, afirmando que o grupo planejava atentados terroristas durante o jogo do Brasil. Alguns dos presos, no entanto, nem sequer se conhecem.

Assim eram os anos de chumbo da ditadura. Eram? Eram não… São. É com grande tristeza que vos revelo que o parágrafo anterior não é histórico e nem fictício: é um fato da atualidade. Tudo nele é real e atual, apenas adaptando datas e nomes para nossos dias.

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Uma imagem emblemática da ditadura instaurada em 1964 e a agressão sofrida por um documentarista canadense durante manifestação no dia 13 de julho desse ano: mórbida semelhança.

12 de Julho de 2014, sábado, véspera da final da Copa, Alemanha e Argentina, jogão, no Maracanã. A polícia civil do Rio cumpre uma série de mandados de prisão expedidos contra 26 manifestantes e ativistas. O motivo das prisões, segundo o texto do próprio mandado: “indícios suficientes de autoria do delito previsto no art. 288 (…), e sérios indícios de que está sendo planejada a realização de atos de extrema violência (…)”. O artigo 288 do código penal trata de “associação criminosa” (antes chamado de formação de quadrilha) que é a associação de três ou mais pessoas para a prática de crimes; alguns dos ativistas presos, no entanto, sequer se conheciam. Além disso, parece razoável a prisão de alguém devido à indícios do planejamento de atos de extrema violência? Isso tem algum cabimento lógico? Ou, ainda mais objetivamente, tem algum cabimento jurídico? Segundo a OAB, não. Um juiz carioca chegou a chamar a polícia do Rio de “polícia Mãe Dinah” por “prever” o futuro e prender pessoas por crimes que não aconteceram, mas que – jura essa polícia clarividente – vão acontecer! Afinal, como não confiar nos “sérios indícios do planejamento de atos de extrema violência”?

Provando a inconsistência e arbitrariedade das prisões, no dia seguinte, 13 de julho, dia da final da Copa, aconteceu uma manifestação na praça Saens Peña, a despeito de todos os “líderes” do movimento estarem presos. Curioso, não? Mais curioso ainda é que os “atos de extrema violência” ficaram (adivinhem?!) por conta da PM. Manifestantes e jornalistas agredidos, com vídeos e fotos das agressões rolando aos montes nas redes sociais, e a praça sitiada; até os moradores foram impedidos de circular. Na semana subsequente, as prisões seguiram repercutindo: Anistia Internacional, OAB e diversas universidades cariocas lançaram notas de repúdio à postura da polícia e do juiz que assinou o mandado. Um habeas corpus chegou a ser dado à maioria dos presos, mas em pouco tempo o Ministério Público lançou denúncia pedindo novamente a prisão deles, depois de receber o inquérito da polícia civil. A denúncia causou espanto geral, uma vez que foi apresentada apenas duas horas depois de recebido o inquérito gigante, de duas mil páginas. Duas opções: ou o Ministério Público possui funcionários mutantes capazes de ler e analisar dezesseis páginas por minuto, ou quase nada foi lido e a agilidade foi apenas uma forma arbitrária de manter na cadeia os “indesejáveis”. Em qual você aposta? Na segunda-feira, dia 21 de julho, a advogada Eloísa Samy, uma das indiciadas, “acusada” de defender manifestantes, foi ao consulado do Uruguai para pedir asilo político e ter a possibilidade de responder em liberdade. A atitude levou o caso para outra esfera, mas o asilo foi negado no mesmo dia pelo presidente Mujica. Paralelamente a isso, a grande mídia cumpria seu papelão de sempre, criminalizando ativistas e contando sua novela bastante conveniente aos seus interesses, mas que quase nunca corresponde à verdade dos fatos. Para se ter uma ideia, nem mesmo os advogados dos manifestantes presos tiveram acesso a algumas das informações do inquérito divulgadas pelo Jornal Nacional da rede Globo. Isso condiz com o princípio do amplo direito de defesa?

As "provas" dos crimes que não aconteceram. Jornais, bandeiras, panfletos e equipamento de proteção. A arma, legalizada, nem sequer constava do inquérito e pertence ao pai de uma menor indiciada. Num dos panfletos é possível ler "20/06 - FESTA JUNINA FIFA GO HOME". Formação de quadrilha junina é crime?
As “provas” dos crimes que não aconteceram. Jornais, bandeiras, panfletos e equipamento de proteção. A arma, legalizada, nem sequer constava do inquérito e pertence ao pai de uma menor indiciada. Num dos panfletos é possível ler “20/06 – FESTA JUNINA FIFA GO HOME”. Formação de quadrilha junina é crime?

A conclusão do caso, ao menos temporariamente, se deu através da atitude imparcial e exemplar do juiz Ciro Darlan, que já tinha expedido o primeiro e expediu o segundo e definitivo habeas corpus que libertou todos os manifestantes. Sua justificativa, que talvez tenha sido o choque de realidade para os que já tinham comprado o discurso reacionário da televisão, foi a seguinte: mesmo que venham a ser condenados, as penas seriam pequenas e os bons antecedentes permitiriam a todos os indiciados cumprir a sentença em liberdade, portanto não havia nenhum sentido em mantê-los sob prisão preventiva. E acrescento um detalhe que talvez tenha sido perdido de vista em meio a esse circo de absurdos: estamos falando de crimes que NÃO aconteceram. E, afinal, o que está sendo investigado? A agressão à qual policial, a destruição de qual vidraça, o incêndio de qual carro? Nada, absolutamente nada específico foi divulgado até agora, tudo muito genérico e subjetivo, de modo a poder enquadrar qualquer um que incomode. Enfim, como diria Caetano, tudo certo como dois e dois são cinco.

E por falar em Caetano…

Onde estão eles?

“Onde estão Chico, Caetano, Gil, artistas de imensa popularidade que tiveram que se exilar, tiveram que abandonar por um tempo sua terra natal por causa da antiga ditadura, onde estão?

Os músicos da minha geração cresceram fascinados com a música da chamada “geração dos festivais”. Chico, Caetano, Gil, entre outros, nos inspiravam não só pela música mas também pelo engajamento político durante os anos de chumbo da ditadura militar. Agora vivemos novamente à sombra de outra ditadura (o meu relato dos últimos dias no Rio não te convencem disso?!) mais dissimulada que aquela instaurada em 1964, mas que vem mostrando cada vez mais sua face desde junho de 2013. Uma ditadura que escancara o quanto são superficiais as diferenças entre os partidos, uma vez que ações de repressão earbitrariedade tem sido executadas por governos estaduais sob diferentes legendas. Uma ditadura em que o lucro de grandes empresas (concessionárias de serviços públicos, grandes empreiteiras, etc.) está acima do bem estar social, acima da dignidade humana. Uma ditadura onde a cidade é mero balcão de negócios, em vez do espaço comum e democrático ocupado pelo cidadão. E nesta conjuntura que dá margem a previsões muito tenebrosas, eu pergunto: onde estão eles? Onde estão Chico, Caetano, Gil, artistas de imensa popularidade que tiveram que se exilar, tiveram que abandonar por um tempo sua terra natal por causa da antiga ditadura, onde estão? E onde está a classe artística de nosso país, porque se cala sobre o absurdo que se desenrola ante nossos olhos?

Cláudia da Silva foi baleada e arrastada por um carro da polícia. Todos os PMs envolvidos na morte já voltaram a trabalhar e nenhum deles foi alvo de reportagem especial do Fantástico. O tratamento com manifestantes supostamente envolvidos em protestos violentos, no entanto, não tem sido tão complacente.

O país caminha triste e velozmente para os braços da tirania e tudo que se ouve da grande classe artística é um silêncio servindo de amém. Enquanto isso, em Brasília, a mulher que sentiu na pele as torturas de uma ditadura, tem contribuído (tanto pela ação como pela omissão) para a consolidação de outra. Eu poderia falar muito mais sobre este assunto, mas vou encerrando por aqui: já ouço os gritos histéricos dos tucanos que se aproximam como abutres e cinicamente se apresentam como “a” mudança. Mas a mudança não se encontra sob nenhuma sigla, sob nenhuma patente, sob nenhuma toga. A mudança se encontra dentro de nós.

[infobox bg=”black” color=”white” opacity=”on” subtitle=”O primeiro preso das manifestações que começaram em junho de 2013, Rafael Braga Vieira, segue preso há um ano. Seu crime: foi encontrado com uma garrafa de pinho sol e outra de água sanitária, com os quais iria fazer coquetéis molotov. A polícia Mãe Dinah não é nenhuma novidade.”]Em tempo:[/infobox]

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Diego Cavalcanti
Diego Cavalcanti
Músico, violonista, guitarrista, compositor, arranjador e professor. Gosta de música brasileira, especialmente Choro e Samba. Acredita que escrever na internet vai levar ao mundo a genialidade de sua obra, ainda restrita ao seu quarto, meia-dúzia de amigos compassivos e dois ou três alunos bajuladores.

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