JOANA UCHOA
O início da pandemia se mostrou extremamente desestabilizante. Claro, pelos motivos óbvios e já muito discutidos socialmente, mas, pessoalmente, havia um tempero a mais. De repente, me deparei com uma parede colocada entre mim e a produção da pesquisa artística que vinha desenvolvendo há alguns anos, esta extremamente embebida no calor dos encontros e do afeto a partir dos registros memoriais.
Os “Roubos”, como os nomeei, são uma coleção heterogênea de registros dos momentos que vivi ao lado das pessoas que escolhi me rodear. O conjunto é formado por pinturas, desenhos, fotografias, vídeos, esculturas, lambe-lambes, áudios e qualquer outro suporte que se mostrasse conciso e necessário. Sua produção, apesar de ser organizada e estruturada no espaço do atelier, acontecia mesmo na rua, acompanhada desses outros corpos que permeavam meu cotidiano e que preenchiam meus afetos. A partir do momento que iniciei minha quarentena, lembro de encarar o mundo através da rede da minha janela e me perguntar: “O que vai acontecer agora?” – Algo irá, disso eu não tinha dúvidas. Porém, desta vez e depois de muito tempo, eu pisava em solo desconhecido. E, neste caso, refiro-me tanto ao processo artístico quanto à minha própria vida, daqueles que tanto apareciam representados em meus registros, e mesmo daqueles que fogem a eles.
A forma que cada produção tomou sempre era guiada pelo que ela pedia, mais do que a partir de uma concepção e planejamento posteriores. Em todos os casos, eu não sabia exatamente onde iria parar até sentir que: “Pronto. Aqui cheguei ao fim deste”. Em certos momentos, o processo estava focado em um aspecto específico que em outro momento já não se mostrava tão relevante.
Inicialmente, revisitei. Por dias e noites, revisitei a última sexta-feira que vivi antes de entrarmos em quarentena — Sexta-feira 13. Felizmente, esta havia sido uma noite em que produzi muito material fotográfico e audiovisual, e assim essa noite foi gerando seus frutos e me aproximando da linguagem do vídeo. Todo o material estava em meu celular, e foi utilizando-o como ferramenta que editei e manipulei todos os Roubos para então se tornarem trabalhos finalizados.
Com o desenrolar da quarentena, a nova realidade começou a sobrepor o processo de revisitação, e a pesquisa começou a se transformar. Novos roubos e elaborações foram colecionados, e assim, me deparei com uma cambalhota gigantesca que dei sem se quer perceber.
Meus primeiros vídeos nasceram a partir dos registros daquela noite, exibidos com a leitura de um texto escrito por mim quando já reclusa em minha casa. Neste momento, a saudade era enorme, principalmente por ter passado os quatro primeiros meses completamente sozinha. Já o terceiro vídeo foi uma junção de outro texto com uma gravação de tela que fiz durante uma videochamada com dois amigos, onde experimentei uma forma dos Roubos ainda acontecerem de forma remota, a partir das ferramentas disponíveis de aproximação distante.
Após uma longa temporada em que havia apenas a mim mesma como companhia, fui morar duas semanas no prédio de meus amigos-vizinhos, pois a solidão já começava a mostrar suas garras. Prédio esse que aparece como personagem em meu trabalho há um tempo, pois cada um de seus sete apartamentos é habitado por amigos em comum a todos. Dessa forma, a construção funciona como uma grande casa dividida em pequenos núcleos, e lá eles passaram a quarentena sempre unidos — e, dessa vez, também me abrigaram. A relação com eles e, por conseguinte, com seus registros, agora se mostrava levemente mais temperada, pois o encontro era excepcional. Durante os 14 dias, fiz uma série de pequenos vídeos de nossa convivência, que resultaram em um videotexto e um mini doc de 33 minutos.
A forma que cada produção tomou sempre era guiada pelo que ela pedia, mais do que a partir de uma concepção e planejamento posteriores. Em todos os casos, eu não sabia exatamente onde iria parar até sentir que: “Pronto. Aqui cheguei ao fim deste”. Em certos momentos, o processo estava focado em um aspecto específico que em outro momento já não se mostrava tão relevante.
Em “Outra Carta”, as imagens serviram como ilustração para um texto escrito posteriormente em formato de carta a uma amiga durante o isolamento. Ambos trabalham juntos e se complementam. Já o mini doc “40tena–74, Jul 2020” possui muito menos interferências de edição, e se propõe a ser um compilado de vídeos seguindo a ordem dos acontecimentos. Dessa forma, chamando o espectador a viver um pouco conosco, escutar nossos diálogos e acompanhar o cotidiano afetuoso lá criado.
Após dias me perguntando para onde iria meu trabalho, descobri que, por mais comprido ou turbulento seja o novo caminho, não ia muito longe. Na verdade, permanecia bem perto. Quem sabe essa foi uma bela lição sobre amor.