A loucura de que todos somos feitos e o legado de Hilda Hilst

Vida e obra de uma das melhores e mais desconhecidas escritoras brasileiras

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Hilda Hilst sempre foi uma incógnita para a grande maioria dos leitores, dos críticos de literatura e inclusive de muitos escritores. Considerada incompreendida, herege, pervertida, louca, bruxa — como tanto relatou nas entrevistas reunidas no belíssimo volume Fico Besta Quando Me Entendem —, de fato eram poucos aqueles que a compreendiam, ou melhor, que conseguiam entrar em contato, sentir, arrebatar-se pela grandiosidade, pela beleza, pelo mistério e pela divindade da obra de Hilda Hilst, esta grandiosa escritora brasileira.

A paulista Hilda Hilst dominou com maestria todos os grandes gêneros da literatura brasileira. Excelente poeta e ficcionista, contudo, apenas teve algum reconhecimento ao final de sua vida — principalmente após a morte, inclusive — quando passou a ser mais editada e lida. Alguma curiosidade, finalmente, talvez tivesse sido suscitada após o lançamento de sua tão ousada “Trilogia Pornográfica”. Hilda queria ser lida, queria ser levada a sério, mas cedo percebeu que grande parte do público leitor não estava interessado em suas obras mais profundas e complexas. É óbvio, então, que ela queria chamar a atenção do mercado editorial, escrevendo livros que chegaram a causar até mesmo repugnância e asco nas pessoas, como é o caso do “Caderno Rosa de Lory Lamb”, livro de difícil digestão. Não é de se negar, então, que até para causar repugnância Hilda o soube fazer com maestria. Como ninguém. E é possível compreendê-la: quão triste para um escritor sentir que não foi suficientemente lido ou apreciado ainda que tenha dedicado sua vida inteira para isso. Mas Hilda foi coerente com o seu desejo, foi até o final em busca do que queria.

Ela também colecionava histórias de apreciação aos mortos e aos seres extraterrestres. Tratava-se de um ser humano fantástico, com muitas camadas. Escreveu por mais de 30 anos isolada na fantástica Casa do Sol no interior de São Paulo, onde viveu com dezenas de cachorros; renunciou a tudo para escrever. Mais do que isso, cultivava um fascínio incrível pela vida, fascínio este sem o qual eu acredito que não se possa nomear alguém como escritor de fato. Pois algo de loucura deve haver para que possa existir o desejo de transcender a realidade e reconstitui-la, transformá-la, reacende-la e contorná-la pela via das palavras.

O escritor sempre busca ultrapassar alguma barreira pela escrita, e muitas vezes a vida e a morte são vistas como barreiras intransponíveis. Mas sempre há algo além. E é isso que a escritora — ou melhor dizendo, uma escritora transgressora — deseja capturar. Aqui não tem história da carochinha, fábula simples, com início, meio e fim. O fim torna-se o início e o meio está contido no fim e no início. Foi a impressão que tive quando li Hilda pela primeira vez, ainda no calor da minha adolescência. Entendi muito pouco, fiquei quase assombrada pela minha ignorância, mas a voluptuosidade, o tesão que saía daquelas páginas acendeu algo dentro de mim. Uma enorme pulsão de vida aquela leitura me trouxe. De cara, já pude reconhecer toda a grandeza de Hilda, mesmo que eu ainda fosse uma leitora muito imatura. Na realidade, sempre seremos imaturos diante da vida e da morte, e é sobre esses mistérios que Hilda repousa suas mãos nada sutis.

O primeiro amor que dela veio para mim, como uma mensagem entrecortada, foi “Tu não te moves de ti”. O livro me capturou pelo título. Eu, que tantas vezes me senti presa em meu próprio corpo, consegui fazer, naquela leitura, com que minha alma viajasse para outro lugar. Depois desse, li muitos outros livros dela. Hilda conseguiu. E ainda consegue com tantos de nós. Muitos. Mesmo que ainda sejamos poucos diante da vastidão de leitores que gostam de ler apenas histórias com início, meio e fim, romances chatérrimos, com linguagem bem mastigadinha, chiclete que já entra dentro da boca mastigado mesmo.

Nada contra, de vez em quando é bom. Mas a literatura que sempre me interessou foi outra. É aquela com uma linguagem cheia de camadas, aquela que revela, confunde, mistura e traz à tona nossas minúsculas peças interiores.

Em “A obscena senhora D” — o livro que recomendo para quem deseja iniciar esta viagem ao desconhecido de Hilda —, “D” de derrelição, de abandono, Hillé é uma senhora que está sozinha numa busca incansável pelo sentido das coisas, pelo sentido da vida e do mundo, pelas coisas mais banais e mais complexas. Ela é um ser cheio de questionamentos e de dúvidas, como é comum a todos nós, seres humanos. Após sessenta anos de vida, Hillé decide morar no vão da escada de seu apartamento, para desagrado do seu ex-marido e de toda a vizinhança, sendo taxada como louca por recortar peixes de papel para colocar em um aquário, conversar sozinha, proferir frases “desconexas”, usar máscaras e fazer caretas para assustar os vizinhos.

A personagem principal se encontra em um processo de vertigem ao se questionar sobre os objetos, os sentimentos e as pessoas, questionamentos que levam, sucessivamente, a outros questionamentos, criando, assim, uma torrente de pensamentos que não pode ser contida:

“Hillé, andam estranhando teu jeito de olhar
que jeito?
você sabe?
é que não compreendo
não compreende o quê?
não compreendo o olho, e tento chegar perto.
Também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nessa vila onde moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, o que é ir e vir, para onde Ehud, o que são essas senhoras velhas, os ganidos da infância, os homens curvos, o que pensam de si mesmos os tolos, as crianças, o que é pensar, o que é nítido, sonoro, o que é som, trinado, urro, grito, o que é asa hein? Lixo as unhas no escuro, escuto, estou encostada à parede no vão da escada, escuto-me a mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não compreendo, pulsam, respiram, há um código no centro, um grande umbigo, dilata-se, tenta falar comigo, espio-me curvada, winds flowers astonished birds, my name is Hillé, mein name madame D, Ehud is my husband, mio marito, mi hombre, o que é um homem?”

Hillé questiona-se acerca de aparentes simplicidades: o que é casa, o que é olho, o que é o som. Uma vez que o ser humano nem sempre está acostumado a refletir sobre tais questões — que já vêm “prontas” de significado aos olhos e aos sentidos — passa a ser desconcertante para o indivíduo a ruptura com os saberes já preestabelecidos. Isso seria loucura ou lucidez?

Hillé é bastante parecida com a própria Hilda, como se percebe em uma das entrevistas de “Fico besta quando me entendem”:

Em “A obscena senhora D”, Ehud, marido de Hillé, a todo tempo tenta “arrastá-la de volta a uma vida medíocre, pacífica, que não exige tanto em termos de busca e reflexão e que não convida o espírito a sair de sua zona de conforto. Uma vida mais “terrena”, mais “pé no chão”. De acordo com ele:

“Não pactuo com as gentes, com o mundo, não há um sol de ouro lá fora (…) Senhora D, a viva compreensão da vida é segurar o coração, me faz um café (…) um dia me disseram: as suas obsessões metafísicas não nos interessam, senhora D, vamos falar do homem aqui agora”

O “me faz um café”, presente em inúmeras passagens ao longo do livro, seria um convite a retornar para uma vida mais tranquila, menos sábia e com menos preocupações, isto é, o mundo terreno. Entretanto, uma vez o Homem saído da caverna, não é possível mais que retorne ao mesmo estilo de vida, pois, ao vislumbrar o outro lado, já sabe e conhece coisas que antes não sabia e nem conhecia. Não há retorno para o conhecimento, trata-se de um caminho sem volta, e Hillé não possui escolha, pois não vê as coisas mais da mesma maneira:

“Não venha, Ehud, posso fazer o café, o roupão branco ainda está aqui, os peitos não caíram, é assustador até, mas não venha Ehud, não posso dispor do que não conheço, não sei o que é corpo mãos boca sexo, não sei nada de você Ehud a não ser isso de estar sentado agora no degrau da escada, isso de me dizer palavras, nunca soube nada, é isso nunca soube”

Na verdade, Hillé é lúcida, muito lúcida em sua insensatez, em seu inconformismo, em cada uma de suas dificuldades. Até mesmo porque a loucura é um conceito totalmente moldável, que sempre está sujeito a prejulgamentos e nunca está acabado. Será que loucos não seríamos nós, que acordamos sempre no mesmo horário, tomamos café, pegamos um ônibus lotado, vamos trabalhar todos os dias e fazemos sempre as mesmas coisas sem nenhum tipo de questionamento?
Ao final da narrativa, o menino-porco, com quem tanto Hillé conversa durante a obra, ao final, profere a uma vizinha, ao ser questionado sobre a sanidade da obscena senhora:

“Hillé era turva, não?
um susto que adquiriu compreensão.
que cê disse, menino?
o que você ouviu: um susto que adquiriu compreensão. isso era Hillé.”

Hillé foi isso: um susto que adquiriu compreensão. O susto de conhecer e deixar-se perturbar pelo novo, pelo desconhecido. Assim também foi Hilda. Assim também desejo a você, caro leitor, a disponibilidade para permitir perturbar-se pelo que ainda não sabe e ter suas certezas abaladas como eu também as tive e tenho. Afinal:

In: “Presságios”

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Carolina Schittini
Carolina Schittini
Uma idosa no corpo de uma jovem adulta, apaixonada por literatura e cultura, formada em Letras pela UFMG. Mineira exilada, sempre com saudades da praia. De mente acelerada e senso de humor incompreendido, escrevo desde novinha, e pretendo só parar quando morrer (ou mandar umas cartas lá do além).

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