O mês de junho de 2013 ficará marcado na história do Brasil. Manifestações iniciadas por conta de um indecente aumento no preço das passagens de ônibus em todo o país tomaram proporções gigantescas, e acabaram por abarcar demandas diversas (das mais legítimas às mais absurdas) e também pessoas diversas (das mais politizadas às mais alienadas). Passado quase um mês do momento de explosão nacional do movimento, o furor daqueles dias parece ter se acalmado um pouco, as manifestações prosseguem em muitos lugares, mas certamente têm sido menores em tamanho, ainda que maiores em foco político. Alguns bons frutos já foram colhidos imediatamente, e o maior e mais simbólico deles com certeza foi a revogação do aumento dos ônibus, razão inicial dos protestos, muito embora essa revogação tenha sido meio “Mandrake”, ao menos na cidade do Rio: o preço final não aumentou, mas o subsídio às empresas de ônibus, sim… Apesar dessa e outras traquinagens de Paes e Cabral (ah, danadinhos!), é inegável que a classe política recuou perante a revolta popular, e já não parece tão tranqüila e glamourosa a arte de roubar com nariz em pé e gravata no pescoço. Nesse complexo contexto político não faltaram críticas aos grandes eventos empresari… digo, aos grandes eventos esportivos que vão acontecer no Brasil nos próximos anos, e a Copa da Confederações que acontecia (com a bola rolando macia enquanto o gás lacrimogêneo ardia do lado de fora dos estádios superfaturados) foi um dos alvos do povo protestando nas ruas. E aí é que entra outra vitória nossa, além da revogação do aumento. Uma vitória na base da sorte, sejamos francos, mas ainda assim uma vitória. Então, caros amigos, pra quem ainda não sabia dessa, aqui vai o episódio que nos livros de História dos nossos filhos e netos será chamada de “a queda da caxirola”.
Lá pelos idos de 2012, quando a Copa do Mundo não estava tão próxima, e as obras dos estádios estavam longe de terminar, Carlinhos Brown mostrou ao mundo, com as bênçãos da presidente Dilma e dos cartolas da Fifa, seu novo invento musical. O genial cantor, percussionista, compositor, jurado de programa de calouros, representante da Bahia no Oscar e genro de Chico Buarque, tinha durante meses e meses se enclausurado em seu estúdio para criar o instrumento musical que seria a marca de seu povo nos jogos da Copa. Com a colaboração de técnicos especializados, engenheiros de áudio, físicos e publicitários (não podemos esquecer deles!), Carlinhos chegou ao formato final de seu novo e originalíssimo instrumento: a caxirola! A voz do povo brasileiro, um instrumento que toca as raízes afro-indígenas do nosso país, a síntese perfeita da nossa música cabendo na palma da mão de nossas crianças.
“Como se não bastasse, pirateou até o nome, de “caxixi” para “caxirola” e ainda teve a cara-de-pau de dizer que seu “invento” causa menos impacto ao meio-ambiente do que o caxixi. Um objeto de plástico é mais sustentável que palha e sementes secas?! Ah, sei…
A caxirola foi apresentada como o equivalente brasileiro das vuvuzelas sul-africanas que tanto irritaram na Copa de 2010, mas o detalhe que a maioria esmagadora da grande imprensa esqueceu de mencionar (ô, memória ingrata!) é que o “invento” de Carlinhos Brown não tinha absolutamente nada de original, nem mesmo o nome. Qualquer pessoa que tem o mínimo contato com instrumentos de percussão conhece o caxixi, um chocalho de palha trançada em forma de cestinha, com uma alça e recheado com sementes secas. É um instrumento sem patente, de domínio público, não é invenção de ninguém porque é invenção do povo, pertence a todos, e é tocado por músicos brasileiros desde tempos imemoriais. Quando você vai a uma loja de instrumentos musicais e compra um caxixi, não paga direitos de patente à ninguém, porque não existe patente. Obviamente seria diferente com a caxirola: licenciado pela Fifa como produto oficial da Copa, as vendas renderiam uma boa grana (e bota boa nisso…) para seu “inventor”. Ou seja, Carlinhos Brown foi pilantra o suficiente para se apossar de um instrumento que já existe, colocou umas alças a mais e pintou de verde pra legitimá-lo como seu invento e com isso entrar na seleta fila pra pegar uma fatia do bolo de dinheiro que a Copa do Mundo no Brasil representa. Como se não bastasse, pirateou até o nome, de “caxixi” para “caxirola” e ainda teve a cara-de-pau de dizer que seu “invento” causa menos impacto ao meio-ambiente do que o caxixi. Um objeto de plástico é mais sustentável que palha e sementes secas?! Ah, sei…
Estava tudo certo para o assalto à cultura, e os dedos de Carlinhos, calejados de tocar timbau, já estavam preparados para contar o dinheiro das vendas da caxirola, pirataria oficial assinada em baixo pela Dilma e com o consentimento silencioso da maioria dos veículos da grande imprensa. Mas o destino foi irônico, sábio, e sobretudo, foi debochado demais, como se uma entidade de rua tivesse se incumbido da causa e prometido “Ah, isso não vai ficar assim não!”. Durante a reinauguração do estádio da Fonte Nova, em Salvador, Bahia, num domingo dia 7 de abril desse ano, um Exú-caxixi começou a fazer seus truques pra acabar com a palhaçada; o jogo foi um clássico regional, Bahia e Vitória, Ba-Vi, evento-teste para o estádio e para a caxirola, que fez sua estreia na mão dos torcedores. No segundo tempo da partida, irritados com a apresentação pífia do seu time, os torcedores do Bahia começaram a demonstrar sua revolta atirando em campo as caxirolas, uma chuva delas, só comparável à chuva de garrafinhas plásticas que Carlinhos levou no Rock in Rio 2001, quando criou caso com o público. As caxirolas inundaram o gramado e por conta do episódio a dona Fifa — que gosta muito de dinheiro mas não admite bagunça sob os holofotes e lentes das câmeras de TV — resolveu proibir a entrada do objeto nos estádios durante a Copa das Confederações e a Copa do Mundo. De um modo inusitado parecia que a justiça estava sendo feita, e diga-se de passagem, pelas mãos do povo baiano, para dar um tapa com luva de pelica no bairrismo idiota de Carlinhos, bairrismo esse muito comum entre alguns artistas cujo maior mérito artístico é o de serem baianos, e disso se gabam, como se isso por si só fosse sinal de alguma qualidade, e também presente entre alguns cariocas. Exú-caxixi deve ter assistido tudo de camarote, gargalhando satisfeito.
Já tivemos a Copa da Confederações, em um ano teremos a Copa do Mundo, e as implicações práticas e negativas desses eventos antidemocráticos no cotidiano da população já se fazem sentir. Além disso, cada vez mais fica claro que quem ganha e ganhará com os eventos são os mesmos de sempre: os donos do dinheiro. O apoio popular (ou seria melhor dizer consentimento?) angariado com a falsa promessa de oportunidades de ganhos com o turismo, com a igualmente falsa promessa do “legado” de bem-feitorias que um evento de porte mundial deixa para os países-sede ou na base do apelo publicitário ao patriotismo alienado, já começa a cair por terra, e os protestos recentes nas proximidades dos estádios deixam claros a insatisfação de uma parcela significativa da população com tais jogos. Aqui no Rio tenho acompanhado as movimentações em torno da Copa, e a verdade é que a cidade virou um balcão de negócios, o bem-estar da população está descaradamente em segundo plano. Se apoiando numa questionável “ordem pública” o governo não hesita em usar força policial para fazer valer os interesses particulares dos empresários envolvidos direta ou indiretamente nos negócios da Copa.
Nesse contexto de roubalheira engravatada, onde reformar um estádio sai mais caro que construir um novo, a lógica de exploração de muitos por poucos é reafirmada e aperfeiçoada. No que diz respeito à classe musical, circulam notícias de que a Fifa cadastrará músicos voluntários para tocar durante a Copa, sem cachê, obviamente, em palcos montados nas cidades-sede; ou seja, o bolo é grande, mas só as cartas marcadas receberão sua fatia. Carlinhos Brown podia aproveitar sua fama e visibilidade para levantar a voz contra esse abuso, mas fez exatamente o contrário: com muito oportunismo e nenhuma ética, roubou um instrumento popular e entrou na fila do bolo. Quis o destino que ele ficasse com cara de bobo, o prato e o garfinho de plástico na mão, vazios. Mas não se engane: ele (e outros) vai dar um jeito de pelo menos malocar uns brigadeiros na cabaça do seu berimbau, porque festa grande assim não acontece todo dia.
Diria Chico Buarque na graciosa toada Paratodos: “Para um coração mesquinho / contra a solidão agreste / Luiz Gonzaga é tiro certo / Pixinguinha, inconteste.”
Então, Carlinhos, seguindo a receita do seu ilustre sogro, para curar seu coração mesquinho deixo aqui o “Um a zero”, choro imortal de Pixinguinha, para lembrá-lo do um a zero do caxixi sobre a caxirola, o um a zero do Brasil sobre a caxirola, da cultura artesanal sobre a cultura industrializada, do ser humano sobre o dinheiro, com meus sinceros votos de mais luz, criatividade e generosidade nos seus dias de agora em diante. Um abraço!