Está chegando ao fim a nossa série sobre o carnaval. O que não significa que este espaço vá deixar de lado o valor e a grandiosidade dessa festa magnífica. Apenas vamos desligar temporariamente as máquinas, vestir uma fantasia e partir para o furdunço, que já se encaminha para a sua reta final. Carregando certo cansaço no corpo e uma dose de ressaca, o tema do dia são as transformações adotadas neste ano de 2025.
Na Marquês de Sapucaí vimos a mudança mais relevante para as Escolas de Samba desde a inauguração do Sambódromo, em 1984: a abertura de uma terceira noite de desfiles. O processo foi iniciado no primeiro semestre do ano passado, com a eleição de Gabriel David – filho do presidente de honra e patrono da Beija-Flor de Nilópolis, Anísio Abraão David –, para a presidência da Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA). Sua ascensão ao cargo mais alto dentro da entidade que representa as agremiações do Grupo Especial veio acompanhada de medidas que tentam modernizar a festa. A mais controversa até aqui, a reconfiguração dos desfiles em três noites, sem um aumento no número total de escolas. Isto mesmo que você leu: uma ida a mais à Passarela do Samba, algumas escolas a menos por dia de evento.
Desde o anúncio os sambistas se agitaram. Ora, se você é um amante das Escolas de Samba e ganha mais uma noite para se esbaldar, alcançou o paraíso, certo?! Errado! A novidade caiu como uma bomba para a maioria dos frequentadores dos desfiles. Foram levantadas razões de cunho financeiro, vez que uma ida a mais resulta em um custo maior de deslocamento e consumo; tiveram aqueles que pensaram no desgaste físico de encarar uma maratona aumentada; e os que se preocuparam com as atrações, pois ao invés de prestigiar seis escolas, o público precisou lidar com a passagem de apenas quatro.
O discurso oficial defendeu ao longo de quase um ano a importância de reduzir o número de desfiles para que todas as agremiações se apresentassem à noite, sem o sol dar as caras. Uma atenção à, também controversa, iluminação cênica instalada ao longo da Passarela. Também deu conta de defender os interesses da TV por dinamizar o formato de transmissão. Mas como sabemos bem, discursos oficiais ocultam interesses. A nova noite representa uma alteração mercadológica que incrementou a receita da arena. Não é preciso ser um ás na matemática para realizar essa conta: mais uma rodada do evento com a casa cheia de público pagante. É de fazer os olhos brilharem. Para o desenvolvimento da festa, toda renda é bem vinda, não há o que se questionar. O problema começa, porém, quando o protagonismo deixa de estar nas escolas e nos verdadeiros sambistas, que estão ali por elas.
Na nova configuração, quem ficou rindo à toa foram os empresários dos camarotes, responsáveis pela maior receita na fatia de venda de ingressos na Sapucaí. Faturaram alto com as novas diretrizes. Desde os ensaios técnicos, aliás, em que as áreas VIPs, ainda inacabadas, abriram as portas com cobrança de ingressos para ver um evento que é gratuito. Cada vez mais resta o gosto amargo de que a festa agora é só deles. Ano após ano devastam setores inteiros de frisas, que pouco chegam ao grande público, pois os camarotes tem o direito de preferência na aquisição, antes das vendas. Assim constroem seus lounges à beira da pista, onde convidados e pagantes se amontoam para sequer olhar o que as Escolas tem a apresentar. Os shows rolam soltos, com artistas de gêneros variados. Tem batida eletrônica e acordes sertanejos invadindo desfile a noite inteira. A música nas alturas vaza e viola o solo sagrado do samba, o que reduz pouco a pouco o destaque das agremiações.
Diante das recorrentes reclamações, reduzir o tempo de desfiles foi um grande presente para acabar com esse inconveniente. Os camarotes contaram com intervalos menores de interrupção das suas atrações para a passagem das escolas de samba, o que garantiu tempo maior de livre execução das suas festas, que já costumam atravessar a manhã até quase a hora do almoço. Há quem chegue aos camarotes após os desfiles, para o after. Uma demonstração de que para parte do público que os frequentam, as escolas são irrelevantes àquele contexto. E assim, com sabor comercial, o samba vai perdendo a tradição.
Mas as mudanças não vieram apenas para a Sapucaí. O carnaval de rua também sofreu um grande impacto, com as severas e burocráticas exigências da prefeitura para a realização dos desfiles. Muitos blocos tradicionais, com décadas de existência, anunciaram encerramento das atividades já no pré-carnaval. Esse movimento é o reflexo de um descompromisso dos órgãos municipais competentes com a organização da festa. O carnaval de rua do Rio de Janeiro renasceu das cinzas no início dos anos 2000. O sucesso foi tamanho que reverberou em muitas cidades, que saíram do silêncio absoluto para a disputa de maior carnaval do país, ancoradas no nosso modelo de fazer a festa.
Com o crescimento desenfreado da quantidade de blocos nas ruas do Rio veio o ordenamento. A partir dele, o número de liberações foi limitado e caiu drasticamente. Muitos grupos se mantiveram à margem, longe das mãos pesadas da oficialização. Os que precisaram entrar para o clube dos oficiais, seja pelo tamanho ou por acreditarem na legalização e profissionalização da festa, começaram a enfrentar dificuldades no processo, um gargalo mais apertado a cada ano.
O problema começa na liberação dos desfiles, com o excesso de burocracia. A lista de exigências do Corpo de Bombeiros é imensa e, dentre outras coisas, impõe, por exemplo, projeto assinado por engenheiro ou arquiteto, com definição de projeção de público e rotas de fuga. Aqui é necessário reconhecer a importância das medidas de segurança, mas a quem cabe tal responsabilidade?
A estimativa é que o carnaval de 2025 gere uma renda de 5,5 bilhões para a economia do Rio. Não seria papel de órgãos municipais e estaduais, estruturados para pensar a cidade, prestar o plano de ações para que os festejos aconteçam e movimentem a nossa indústria do entretenimento? Os blocos de carnaval, diferentes de grandes eventos comandados por produtores experientes, surgem da espontaneidade, do desejo se reunir e se divertir. A determinação de uma profissionalização vinda de cima para baixo tem consequências drásticas para os organizadores. Muitos destes, sem perspectiva, decidiram por encerrar o sonho.
O carnaval de rua ainda enfrenta outro ponto sensível: sua comercialização. Uma empresa é escolhida pela prefeitura para construir um valor para a marca carnaval. Há alguns anos a Dream Factory é a responsável pela produção e comercialização do evento. Ao assinar o termo com a gestão municipal, fica responsável pela estruturação das ruas para receber os blocos, o que realiza a partir da busca por patrocínios. Mas o que há de sensível nisso? Primeiro temos um investimento direto da prefeitura para que a folia aconteça com impactos mínimos para a cidade. Em seguida a mesma faz uma concessão ao direito de explorar a marca, o que não é um problema, visto que a organização direta pelo município provocaria um remanejamento da mão de obra que custaria a eficiência de outros órgãos. O problema está na outra ponta dessa corda, que são os blocos.
A Dream Factory recebe o direito de comercializar a cidade, com aval e investimentos públicos, capta e conquista patrocínios fundamentais para estruturar a festa. Mas e os blocos, o que recebem? Um encargo de exigências que deveria estar sob o guarda-chuva desse grande produtor. O que acontece, entretanto, é o contrário. Enfrentam, solitários, o excesso de burocracia citado há pouco e a ausência de apoio à sua gestão. O patrocínio da festa não é direcionado ao financiamento dos grupos carnavalescos. Além de haver um obstáculo para estes na conquista de patrocínios próprios, dado que já existem empresas conflitantes estampando suas marcas pelas ruas.
O resultado dessas relações mal estabelecidas é a precarização. Caso nada seja feito, o carnaval de rua do Rio pode entrar em severo declínio. E isso, visto a quantidade de blocos que se despedem da folia este ano, pode não estar longe de acontecer. Falta diálogo entre a prefeitura, os blocos e os foliões.
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Imagem de capa por:
Mariana Rosa

Acredita que a vida sem a arte seria um erro. Dito isso, tem a necessidade de consumir e de produzir arte de todo o tipo. É do audiovisual, das artes visuais e da escrita, mas o teatro pulsa também. Faz Comunicação Social na UFRJ e fica igual pinto no lixo na natureza.
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