Antes que me falhe a memória

Relembrando a gravação do curta “Lambari” e os 10 anos do rompimento da barragem de Mariana

Vou me permitir recontar um fato histórico por meio da minha memória pessoal, e sei que por vezes falha. Afinal, quem não lembra, esquece mesmo. Novembro faz 10 anos do rompimento da barragem de Fundão, que ocorreu na cidade de Mariana, Minas Gerais. Tal crime foi considerado como o maior desastre ambiental com barragens do mundo nos últimos 100 anos. Você leu certo: maior do mundo nos últimos 100 anos. Esse dado chocante mobilizou a mim e três amigos universitários a organizar uma expedição de baixo orçamento para documentar essa tragédia anunciada há décadas, que resultou no curta-metragem Lambari (2016).

Não vou falar sobre a proporção da tragédia em si, para isso sugiro uma leitura mais especializada para entender todas as nuances. Minha preocupação aqui é deixar registrado esse momento marcante em minha trajetória pessoal e profissional, antes que um dia eu esqueça. E 10 anos já é tempo demais.

Diante da grandeza das cifras da destruição, o objetivo do filme foi ouvir as pessoas afetadas, no íntimo, no singular. Entender suas histórias com o território e suas dores diante da trágica transformação que o desastre estava promovendo. Por quatro dias, eu (câmera), Rodrigo Freitas (direção), Matheus Plastino (câmera) e Lorena Santiago (som) gravamos em Barra Longa, cidade muito afetada pela lama tóxica.

A empreitada só foi possível graças ao apoio da ADUFF (Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense) que patrocinou com R$2.885 após apresentarmos uma proposta à diretoria. Estávamos cursando a graduação na época e sem dinheiro para custear. Alugamos um carro e saímos de Niterói (RJ) rumo à Mariana (MG) sem hospedagem, personagens ou locações definidas. E isso foi intencional. Nossa premissa foi a do inesperado: a proposta de direção de Rodrigo era deixar a história nos encontrar. Confiamos no “risco do real” e apostamos no “cinema verdade” que tanto marcou e marca o documentário até hoje.

Esse processo de realização deu origem a minha monografia “Entre rio e memória: um olhar cinematográfico sobre os impactos afetivos do rompimento da barragem da Samarco em moradores da cidade de Barra Longa, Minas Gerais”. Aí que descobri com a pesquisadora Manuela Penafria que essa linguagem utilizada por Jean Rouch lá atrás e por nós agora, é conhecida como “documentário interativo”: onde há uma “relação próxima entre o autor e o tema do filme. Esta relação passa pela presença física do autor no próprio filme.”

E de fato nosso filme se construiu como uma constante incidência de bons encontros. O primeiro foi com José Ricardo dos Santos, o “Seu Cadinho”, um pedreiro ribeirinho de 63 anos de idade. Explicamos brevemente nossa ideia e, sobretudo, nossa urgência em encontrar um lugar para se hospedar. Não havia espaço que considerássemos seguro para acampar. Só havia um hotel da cidade que parecia estar lotado. A cidade recebeu um acréscimo de mais de 500 trabalhadores da Samarco desde a chegada da lama tóxica.

De algum modo, “Seu Cadinho” se compadeceu com nossa proposta de trabalho. No meio da conversa, ele disse: “Se não encontrarem lugar pra ficar, podem ficar aqui em casa, uai.”  E assim ele abraçou nossa história e em seu lar. Conversamos e gravamos com vários moradores até que tivemos outro importante encontro: o personagem principal do filme. Era Seu João, pescador de 75 anos cuja especialidade era o peixe lambari.

Lambari, esse peixe icônico dos rios brasileiros, vivia tranquilo na cidade, alimentando a fome e a alma de muitos moradores, como a de Seu João. Ao longo das conversas, ele nos contou sobre a chegada da lama e sua relação com o rio. As perdas materiais da família foram reveladas por sua irmã, Eponina Rosa de Freitas, enquanto as perdas afetivas descobrimos por meio de sua filha Cláudia Mol de Freitas. “Ele criou uma barreira, mas por dentro está sofrendo muito”, revelou Cláudia. Desse modo, descobrimos um João oculto por ele, um personagem desnudado por um membro de seu convívio familiar. Talvez esse tenha sido o momento mais intenso dessa experiência fílmica, uma revelação íntima que talvez só tenha sido feita por se tratar de um trabalho audiovisual imersivo. Visitamos a cidade e alguns locais onde Seu João e seus amigos tinham histórias pra contar, como a ponte e o encontro entre os rios Gualaxo e Carmo, locais onde João costumava pescar seus lambaris.

Às vezes o fazer fílmico pede tempo, paciência, pesquisa. Já outras vezes é necessário ser urgente, pois a vida passa. E a memória também.

No dia 05 de novembro de 2025 fez 10 anos do rompimento da barragem de Fundão da Samarco Mineradora S/A, controlada pela Vale S.A e BH Billiton, que ocorreu no distrito de Bento Rodrigues, na cidade de Mariana, Minas Gerais.  Estima-se que 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram liberados na região e atingiu uma extensão de 663 quilômetros até a foz do rio Doce na cidade de Regência, no Espírito Santo. O valor conquistado após anos de luta por reparação foi de R$170 bilhões. Apesar de 22 pessoas e 4 empresas terem sido denunciadas pelo Ministério Público Federal, até hoje ninguém foi condenado.

“Lambari” teve diversas seleções em festivais ao redor do mundo:

11º AtlanticDoc – Festival Internacional de Cine Documental de Uruguay
34º Festival de Cinema de Bogotá
24º Festival de Vitória

Recebeu prêmios em importantes festivais ambientais, como:

22º Cine’Eco – Festival Internacional de Cinema Ambiental
23º EcoCine – Festival Internacional de Cinema Ambiental e Direitos Humanos

Rodrigo Freitas teve apoio da Ancine para apresentar o filme no Festival de Bogotá.

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Wesley Prado
Wesley Pradohttps://wesleyprado.rec.br/
Fotógrafo, produtor e educador audiovisual. Millennial com rabiscos contemporâneos entre a necessidade do trabalho e o desejo da criação artística. A palavra me intimida, mas mesmo assim sigo em busca dela.

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