Meu enredo tem axé

Reflexões sobre o carnaval - parte 3/4

Imagem de capa por: Mariana Rosa

Faz tempo que perdi a paciência para embates em redes sociais. Aqueles argumentos de que causam ansiedade sempre se comprovavam ao me aprisionar em discussões acaloradas. Certa vez, ao reativar uma conta após sair para respirar, decretei: exerça o direito de ler, jamais faça um comentário. Segui a nova regra por longos anos, mas esse “autoacordo” foi quebrado nos últimos dias.

Era quase madrugada de segunda-feira, você há de entender. Sabe aquele momento do domingo em que desperta certa insatisfação com o início da semana? Pois bem, considere esse intervalo. Tinha acabado de chegar dos ensaios técnicos na Marquês de Sapucaí e, antes de dormir, aquela olhadinha interminável no feed me colocou cara a cara com uma influenciadora que tem por atividade dar dicas sobre lugares para ir no Rio de Janeiro. Descolada, sempre com tom festivo, revelando os territórios imperdíveis de uma cidade imperdível. Na postagem, falava sobre a alegria de ver as arquibancadas do sambódromo lotadas este ano, uma surpresa. Nas palavras dela, “os ensaios ficavam praticamente vazios”. Aqui é preciso entender um contexto: a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA), que organiza os desfiles, elegeu um novo presidente no último ano, que chegou com um plano de comunicação voltado para fora, visando novos públicos. Neste projeto, a influenciadora alcançou o posto de embaixadora da Rio Carnaval, marca criada para reposicionar a festa no mercado. Sua chegada se alinhou com o discurso da gestão, de ressaltar feitos jamais alcançados pelo mundo do samba. Será?!

Os ensaios técnicos existem há duas décadas no carnaval carioca. Para o sambista, é um dos momentos mais aguardados do ano. Uma parcela considerável do público, por conta dos valores de ingressos e produtos para consumo dentro da Sapucaí, vê no “técnico” a oportunidade única de se aproximar das escolas em uma configuração similar aos desfiles oficiais. O evento é um caso de sucesso há duas décadas. Famílias, amigos, turistas e comunidades inteiras sempre lotaram as arquibancadas. Talvez a nossa amiga nunca tenha ido ver de perto esse acontecimento. Ou pode ter usado da estratégia que circula pelas redes, de “revelar” lugares “secretos”, inexplorados, que seus seguidores precisam conhecer.

Aquilo me tirou do sério. Como adiantei a vocês, quebrei meu contrato e escrevi um comentário sobre o óbvio. Em poucos minutos uma notificação saltou na tela, com uma resposta da responsável pelo perfil, que destacou estar vendo muitos comentários do gênero, com menosprezo ao trabalho de influenciadores. Respirei fundo e repliquei, sem perder a calma. Afinal, não é um menosprezo à existência da figura dos influenciadores, que já são parte da realidade desta geração. É um alerta à responsabilidade do comunicador.

No centro desse discurso de que agora temos visto algo nunca experimentado, existe uma violência contra as comunidades que sempre estiveram ali. Comunidades que fazem a festa acontecer, doando seu tempo, sua paixão e sua arte. O verdadeiro sambista precisa lidar com a figura que vem de fora, entra em sua casa, se apropria do seu bem mais precioso, um patrimônio imaterial, e vai embora espalhando aos quatro ventos que o sucesso só existe porque as redes revelaram o tal segredo. Um manifesto agressivo de que a validação da arte popular só acontece quando um formador de opinião de fora, alheio àquela força, afirma que devemos considerá-la.

É importante dizer, como respondi para a própria, que todos são bem-vindos no democrático mundo do samba. Mas é fundamental respeitar a história e a ancestralidade. É preciso pisar devagar naquele chão sagrado, com reverência e relevância ao passado e aos mais velhos, que são os alicerces das escolas de samba, responsáveis por proteger e difundir os saberes.

Foram três minutos até a interação com a influencer ser deletada. Lembra da responsabilidade do comunicador? O aprendizado é a base. Ninguém é capaz de saber tudo, mas não deve desperdiçar a oportunidade de aprender, em vez de deletar. Afinal, mais importante do que saber o que fazer no Rio, é saber como fazer, pois a nossa cidade é cheia de símbolos e códigos que, decifrados, a tornam ainda mais fascinante.

Eu sei que você está se perguntando o que isso tem a ver com o nosso aquecimento para o carnaval. E eu lhe digo: tudo a ver! O planejado para este terceiro texto era falar sobre a importância das temáticas negras e os enredos que tratam de religiões de matriz africana. Afinal, dentre as doze escolas do Grupo Especial, dez vão desenvolver histórias sobre suas raízes.

É importante destacar a questão, pois existe um grupo grande que reclama de um “mais do mesmo”, de abordagens e estéticas repetitivas, como se as crenças e os mitos de todo o continente africano fossem resumidos a uma única história. Isso é resultado, verdade, de um apagamento histórico da trajetória do negro no Brasil como formador da identidade nacional. Não temos nos livros os registros das origens dos escravizados, da cultura praticada em suas estruturas sociais e de como contribuíram para construir a nossa cultura.

O carnaval olha para esse lugar. Visita os terreiros e decifra neles a ancestralidade. Resgata uma mitologia potente, rica e nossa. É claro que isso incomoda uma parcela da população acostumada a um olhar eurocêntrico das coisas, colonizado, em que todo o conhecimento e potencial civilizatório deve ser branco. Remando contra a maré, as escolas de samba vão atravessando o oceano, em um caminho de volta para as origens africanas. Mas as figuras alheias a essa importância continuam a se apropriar da festa e a exigir dela uma branquitude que não tem. Escola de Samba é arte preta. Tem a força do axé.

A origem das agremiações está diretamente ligada aos terreiros. Este era, inclusive, o nome que as quadras carregavam no passado: terreiro. As baterias nascem dos tambores de fé, todas com um toque característico que as comunicam com seu santo de devoção, o protetor da sua bandeira. Quando o tambor toca, leva uma mensagem ao sagrado. Com as bênçãos das mães de santo, ainda representadas pela ala das baianas — quesito obrigatório no julgamento—, os rituais religiosos se desdobraram, sem nunca se dissociar, ao que conhecemos hoje como escolas de samba.

Essa relação é preciosa. O carnaval assume traços africanos em suas manifestações. É a cultura da diáspora. E assim como nos terreiros, precisa lutar diariamente contra o racismo, que muitas vezes vem daqueles que dizem admirar a expressão cultural, desde que fale de um ponto de vista distante de suas origens.

Ao olharmos para o passado entendemos um pouco da expectativa por enredos embranquecidos. Nos anos 1930 a questão racial era ainda mais violenta. O samba era sinônimo de vadiagem, tratado como crime, e a cultura negra, combatida. Para garantir a sobrevivência, as escolas adotaram temáticas brancas e discursos oficiais em seus desfiles. Isso ocorreu por muitos anos. Mas o fundamento sempre se manteve negro. Somente em 1960 o Salgueiro defendeu o enredo, Quilombo dos Palmares, com a história de um espaço de resistência que só tinha registros sob a ótica da marginalização. Foi o samba que nos fez acreditar no quilombo. Isso abriu portas para que outras vivências fossem buscadas e, finalmente, as agremiações pudessem olhar para dentro, para os seus. Foi um processo lento, construído passo a passo e que ganha ainda mais força a partir dos anos 2010. Diante da crescente intolerância religiosa, a resistência vem na arte. E é o samba que, mais uma vez, nos ensina a presença africana entre e dentro de nós.

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Imagem de capa por:

Mariana Rosa

Acredita que a vida sem a arte seria um erro. Dito isso, tem a necessidade de consumir e de produzir arte de todo o tipo. É do audiovisual, das artes visuais e da escrita, mas o teatro pulsa também. Faz Comunicação Social na UFRJ e fica igual pinto no lixo na natureza.

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