Precisei legalizar um documento no Ministério das Relações Exteriores. No Rio de Janeiro isto é feito no Palácio Itamaraty, um deslumbrante sítio arquitetônico esquecido no centro do Rio. Poucas pessoas que ali entram, no entanto, e modestamente percorrem os seus jardins, experimentam o que uma boa arquitetura tem a oferecer. Sob os olhares desconfiados dos seguranças, a maioria que ali se espreme na fila, está com pressa. Comunicam-se com os funcionários locais através de grades e são orientados a aguardar em pé até que gritem os seus respectivos nomes. Não estou exagerando, eu o vivi literalmente na semana passada. Esses visitantes então mergulham em seus telefones celulares, olham para o infinito, o chão. Ignoram as colunas onde se encostam, ou os desenhos da cerâmica em que pisam. A poucos metros dali, os cisnes se limpam ao sol, a luz é filtrada pelas palmeiras e pelas arcadas deste edifício neo clássico concebido com amor e precisão. Um funcionário passa pelo outro lado do lago, os seguranças permanecem sisudos e tristes (por quantas horas por dia?) e ninguém percebe o óbvio. Ninguém repara e nem quer saber que espaço é aquele. Na apreensão do dia a dia, quase ninguém tem o tempo de se admirar.
Ter esse ‘tempo’ não significa necessariamente ‘tomar tempo’, interromper um projeto ou um compromisso importante. Tem algo por trás disso que remete à formação da sensibilidade. Entrar num edifício como este deveria ser sempre um instante de arrebatamento. E se isso não acontece pode ser porque estejamos embrutecidos. A arquitetura clássica sempre foi pensada para enobrecer a experiência humana. A forma como os trajetos, a perspectiva, a presença da luz e as proporções da estrutura nos afetam, não é uma questão intelectual. É uma experiência estética que todos nós poderíamos ter, intuitivamente, se estivéssemos suficientemente porosos, sensibilizados. O edifício do Itamaraty pede para ser percorrido, tocado, explorado. Não falo por romantismo ou por um gosto elitizado, mas falo de uma sensibilização que se pode ser desenvolvida desde a infância. O corpo é equipado para ver, ouvir, cheirar, mover-se, sentir, de forma rica e prazerosa. Em casa, na escola e em toda a cidade, deveríamos nos desenvolver como seres sensíveis e sempre aprimorar nossos sentidos. Mas isso requer intenção e dedicação. Uma tomada de consciência que muitas vezes é tida como futilidade.
Existem prazeres que custam quase nada, uma fruta, um passeio a pé, dançar, mas nos acostumamos a reconhecer como prazer aquilo que nos é oferecido para consumir. Até porque uma cidade como o Rio hoje não nos permite fazer escolhas, para tal precisaríamos de uma consciência mais ou menos tranquila. Vivemos envoltos em tamanha hostilidade urbana, que sentir tornou-se um luxo. A administração da cidade do Rio de Janeiro é baseada na emergência e não tem uma intenção, uma missão. Ou se tem, deve ser a da distração. Somos tão oprimidos pela violência, a corrupção, o consumismo, que não percebemos que de fato estamos deprimidos. Tudo cansa e por isso buscamos nos distrair, na televisão, no futebol, porque é o que temos como identidade cultural. E porque pensar outras vivências não está em questão, aliás daria muito trabalho.
Para chegar ao Itamaraty, o pedestre precisa atravessar a barreira do mau cheiro e do abandono. Confesso ter tido medo de ser assaltada, cheguei de ônibus e fui praticamente correndo pela Av. Marechal Floreano. O estado de conservação do edifício também não é dos melhores. Além das fachadas deterioradas, veem-se instalações elétricas e encanamentos improvisados ou quebrados. Enfim, isso não importa, o cidadão não é bem vindo. Parece que o Itamaraty oferece visitas guiadas (oportunidade que nunca tirei) e volta e meia abriga conferências. Mas não encontramos informações concretas no seu website, só em sites sobre turismo no Rio. Como o do Rio de Janeiro Aqui:
Av. Marechal Floriano, 196 – Centro
Tel. 2253-2828 Fax. 2253-7691
Seg, Qua, Sex, 14h, 15h e 16h – Visitas guiadas
Visitas monitoradas com duração de 45 minutos
Entrada franca
Os indivíduos que vão por motivos burocráticos nos dias úteis e encontram este santuário perdido, deveriam no mínimo ter o direito de sentar-se ou aguardar seus processos de forma proporcional à beleza do edifício. Por que será que não existem assentos ou mesmo um salão inteiro para aguardarem à sombra? Por que não adotaram um sistema de senhas e não deixam o público aproveitar um pouco daquela espera, ao ar livre, usufruindo daquele jardim? Mas claro, na cidade partida isso não interessa. Vivemos a cultura do medo e da opressão. Somos todos ameaçados, somos todos suspeitos, somos vândalos. O Palácio Itamaraty, como edifício público e como legado arquitetônico, com todo o seu aparato de segurança, tinha o dever social de ser exposto e explorado para fins culturais e educacionais. Ele precisa ser descoberto por cariocas, brasileiros e estrangeiros que tenham dois olhos, dois ouvidos e uma pele de qualquer cor.
Em tempo: o neo clássico foi uma estilo adotado no século XIX para edifícios públicos então construídos nas grandes capitais do mundo, tendo como referência a arquitetura clássica (da Grécia e Roma antigas). São mais ou menos do mesmo período no Rio, a Biblioteca Nacional, a câmada dos vereadores, a assembleia legislativa, o Museu de Belas Artes, o Theatro Municipal etc. Muitos deles baseados em modelos franceses do mesmo período. O Palácio Itamaraty foi construído entre 1851 e 1855.
Boa, Lud. Por uma vida mais sensível e prazerosa!
Que bom que você gostou do Palácio Itamaraty. Pena que você só tenha vindo durante a pandemia, quando as visitas estão suspensas. Mas, como chefe do Escritório, terei muito prazer em recebê-la para uma visita mais extensa em que possa explicar a você como andam os projetos arquitetônicos de restauração do complexo, que, entre outras coisas, eliminarão os horríveis dutos aparentes e criarão uma sala de espera para o público consular.
Caro Eduardo, obrigada pela atenção e a oferta da visita. Será um prazer, quando eu puder ir visitar o Itamaraty novamente. Sou arquiteta de formação, hoje artista plástica e educadora. Na verdade estive no Palácio há anos atrás, tratando de um documento que precisava levar aos Países Baixos, onde vivo há 12 anos. Esse texto aliás foi escrito em 2013, quando estive aí exatamente tratando da documentação para o meu casamento. Depois da pandemia, eu quero muito mesmo de ir visitar a família, o Rio e quem sabe o Itamaraty. Podemos tentar marcar, daqui a um ano. Espero. Grata, Ludmila — http://www.ludmilarodrigues.nl