Lembrar do futuro, descobrir o passado

Poucos meses depois do período anual da seca e da horripilante nuvem de poeira que cobriu grande parte do Brasil, assistimos estarrecidos aos incêndios na Califórnia e agora às chuvas em São Paulo. As imagens de Los Angeles chocaram, eram cenários de verdadeira destruição.* Nem mesmo os ricos dessa vez puderam se salvar. Ao mesmo tempo que o fogo lambia as mansões americanas (e também muita gente pobre que vive em Los Angeles, que tem uma esmagadora população em situação de rua), fomos lembrados pelo noticiário que a mesma região foi banhada por chuvas recordes poucos meses antes. Trágica ironia, toda a água que lavou a Califórnia escorreu de uma vez só para o Pacífico e não restou nem um pinguinho para aliviar a situação de janeiro. Depois da catastrófica enchente de Porto Alegre, agora as águas lavam a capital paulista. Imagens absurdas das estações de metrô mostram passageiros se equilibrando em parapeitos para não serem carregados pela correnteza subterrâneo adentro. Já disseram que todos nós, mais cedo ou mais tarde, nos tornaremos refugiados climáticos, a brevidade só dependendo da classe social de cada um. Claro, quem faz parte dos 0,001% mais ricos do mundo já deve ter solução em vista, com delírios de colonizar Marte ou se enfia num bunker no Havaí.

Todo ano os extremos climáticos parecem escalar, e em grande parte, graças a nós mesmos. Dois lados da mesma moeda, a seca extrema e as chuvas torrenciais, são manifestações do Antropoceno, período em que nos tornamos uma força geológica, resultado das múltiplas atividades humanas. Nosso impacto pode ser global, mas ainda somos incapazes de encarar as consequências, e quase nenhum governo parece querer tomar providências. Ricardo Nunes acabou de ser reeleito em São Paulo, aliás.

Pensar o Antropoceno envolve várias camadas de entendimento; o científico, o filosófico, o o político, econômico e até psicológico. Nesse cenário de imprevisibilidade, começamos a esperar pelo pior de cada estação do ano. Já provaram aliás que sofremos uma espécie de luto ecológico, uma forma de depressão que abate muita gente com alguma consciência ambiental (os artigos e discussões sobre esse fenômeno são abundantes). Há quantos anos não viemos nos deprimindo com o lastro dos incêndios no Brasil? A sensação de impotência é devastadora. Há uma nova corrente da psicologia que aborda a questão e de forma clinica, a ecopsicologia, que demonstra que além dos impactos físicos, hoje a nossa saúde mental também é afetada pelo aquecimento global. O fato é que ficou difícil vislumbrar um futuro habitável com um clima que a cada ano se comporta cada vez mais errático. E se você faz parte dos 99,999% da população mundial, provavelmente você já deve ter imaginado como vai ficar a sua casa, ou a de seus pais ou de amigos, quando as águas descerem, ou o fogo e a fumaça causarem outras reações em cadeia. Não quero falar dos malucos do movimento prepper, do sobrevivencialismo egoísta. Busco caminhos mais comunitários, e projetos mais eficazes. Quero beber de fontes comprovadas. Como por exemplo este, a seguir, que vem de uma galáxia muito, muito distante, de muito tempo atrás (quem lembra da abertura de Star Wars: “A long time ago in a galaxy far, far away….“?).

Cúpula sobre Manhattan, colagem de Buckminster Fuller e Shoji Sadao, 1960

Podemos vislumbrar novos caminhos em tempos de extremos? Às vezes a minha passagem de sete anos pela faculdade de arquitetura e urbanismo me faz fantasiar projetos à la Buckminster Fuller, o cara que desenhava em escala planetária. Nossa imaginação realmente não pode se limitar ao possível e ao realizável, mas deve sim ir muito além do que conhecemos. A inspiração aqui vem do oriente, da região que hoje conhecemos como a Índia. Já faz um tempo que venho pensando nos antigos reservatórios de água indianos. Matutando, por que será que não usamos métodos tão simples que algumas sociedades já haviam testado há tanto tempo atrás? Qualquer um que já tenha visto esses monumentais tanques espalhados pela Índia deve se perguntar “mas como não estamos construindo esses reservatórios até hoje em dia?”. Os indianos que conhecem bem os extremos climáticos, com as chuvas de monção, que lavam o país todo ano, podem nos ensinar muito. Essa civilização caleidoscópica, múltipla em culturas, fés, etnias e línguas, de uma culinária abençoada pelos deuses, a Índia além de tudo, abriga arquiteturas ímpares e deslumbrantes. Não falo dos templos e palácios suntuosos apenas, mas de outros edifícios e infraestruturas menos famosas, que só confirmam a genialidade dos antigos.

A primeira vez que vi um desses reservatórios indianos foi no filme de Tarsem Singh, “Dublê de Anjo” (“The Fall”, 2006) e foi amor à primeira vista. Aliás, a direção de arte e todas as locações deste filme são espetaculares. Uma produção sem precedentes, filmada em 28 países ao longo de 4 anos, “The Fall” é uma odisseia sensorial que mereceria muitas e muitas outras conversas por aqui. Enfim, em dado momento do filme há uma cena em que uma multidão de figurantes adentra um desses antigos receptáculos gigantes (um “stepwell” em inglês), cuja geometria parece ter inspirado o M.C. Escher séculos mais tarde.

 Cena de “Dublê de Anjo” (“The Fall”), 2006

A palavra “stepwell” é difícil de se traduzir. Ela descreve os poços que incluem degraus para se acessar a água à medida que o nível vai baixando. São como pirâmides invertidas. Os planos inclinados, rodeados de degraus de lances simétricos, vão formando uma repetição de padrões que faz a gente delirar. Logo depois de ver o filme há anos atrás, fui fuçar a internet em busca dessa arquitetura inacreditável. Desde então, guardo algumas dessas localizações num mapa que vou salvando no Google Maps, sonhando um dia em visitá-las.

Chand Baori, um dos reservatórios mais conhecidos da Índia. Construído no século 9, com 13 lances de escadas e 30 metros de profundidade.

Alguns reservatórios foram construídos há mais de cinco mil anos atrás, para fins sanitários, mas também religiosos. Como a água era entendida como a fonte de todas as formas de vida na mitologia Hindu, nada mais lógico conservá-la e reverenciá-la. Também considerada uma fronteira entre a terra e o paraíso na cosmologia indiana, a água é elemento de purificação e renovação, fazendo parte essencial de ritos e liturgias. Em todo subcontinente indiano se encontram muitos, aliás milhares, desses reservatórios. Alguns de formato mais rebuscado ainda, com colunatas, portões, séries de salões para serem inundados pelas águas das monções. Arquiteturas imersas que nossa imaginação, hoje poluída pelas imagens geradas por IA, não poderia acreditar. Parece que mesmo os engenheiros indianos contemporâneos estão tendo que estudar para resgatar esse conhecimento perdido. Segundo a BBC, muitos desses poços antigos estão sendo limpos e finalmente revitalizados, depois de séculos de esquecimento e abandono. A autora Victoria Lautman chama esses reservatórios de “gates to the underworld” (“portais para o mundo subterrâneo”, para outra dimensão) no livro “The vanishing stepwells of India” (“O desaparecimento dos poços da Índia”, tradução minha). Segundo ela, os “stepwells” são especiais pois normalmente olhamos para arquiteturas de baixo para cima e não de cima para baixo.

“Quando olhamos para a sequência de degraus em escala, as colunas se erguem, criando vistas cambiantes, ​​que vibram num jogo de luz e sombra fascinante e misterioso” – Victoria Lautman, “The vanishing stepwells of India”

Nunca tive a oportunidade de visitar a Índia, mas imagino como a experiência seria – algo como aterrissar em outro planeta talvez? (com pitadas de Star Wars, fantasia minha). Um universo, ou melhor, um pluriverso de histórias intrincadas, muito além do capítulo infeliz da colonização inglesa mais recente, mas também feito de paisagens luxuriantes e fauna abundante. Um país de que em geral conhecemos muito pouco, dada a distância física e cultural entre Brasil e Índia. Mas será que, não só nós, brasileires e brasileirx, mas todo o mundo, não poderiam aprender mais com a Índia?** E a dica fundamental dos engenheiros hindus? Será que além de preservar água poderíamos fazê-lo de uma forma mais impressionante e elegante; quem sabe até contribuir em rituais contemporâneos? Desde que a água seja reutilizável, para que se salvem nossas florestas, nossas casas, não vejo porque não.

Para ler mais sobre os Stepwells, clique aqui.

*Em tempo: A situação inaceitável de violência e de apagamento do povo Palestino dura mais de 16 meses de guerra, além dos 76 anos de ocupação ilegal por Israel. Agora vamos torcer para o cessar fogo dessa vez ser pra valer e dar algum alívio em Gaza. O povo palestino merece todo apoio e ajuda na luta contra o apartheid. Quem chama a questão de “conflito” ignora consciente ou inconscientemente a história desse povo que sobrevive a duras penas. Uma cultura maravilhosa que vem sendo invisibilizada, perdendo território, sofrendo empobrecimento, preconceito e racismo. A luta palestina é a mesma luta de tantos outros povos que foram colonizados e oprimidos. Suas casas tomadas, suas crianças mutiladas, sua terra envenenada há mais sete décadas. Entender os movimentos de resistência atuantes tanto na Palestina quanto no Líbano é entender História.

** Ironicamente a humanidade como um todo parece sofrer amnésia. O fato dos reservatórios indianos, por mais gigantescos que sejam, terem sido ignorados como método comprovado de combate à seca, evoca aquele dizer conhecido: “Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”, atribuído ao filósofo e poeta espanhol-americano George Santayana.

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Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues é carioca, artista plástica, cenógrafa e professora, radicada em Haia, nos Países Baixos. Seu trabalho une a dança à arquitetura, construindo pontes entre os cinco sentidos e a arte, entre a experiência individual e a coletiva. Ludmila também é apaixonada por kung fu e por cinema.

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