Nos últimos anos foi possível notar um boom surpreendente da inteligência artificial em vários seguimentos, principalmente em relação a arte. A tecnologia que antes ameaçava os empregos de serviço apenas, pegou a classe artística de surpresa ao mostrar habilidades em “criar” imagens, desenhos, músicas e até vídeos.
Tendo isso em vista, antes de montar suas plaquinhas e marchar pelas ruas pedindo a regulação de mais um artifício que o diabo criou, é importante tentar entender a situação. Sim, inteligências artificias e suas tecnologias trazem certo risco pra forma tradicional de criação de arte e mídia. Porém as possibilidades do seu uso atual criam questões que antes eram inimagináveis para a sociedade. Algo que torna o cenário atual meio caótico e confuso para usuários, políticos e até mesmo os próprios artistas.
Sendo assim, trago aqui 4 casos que levantam questionamentos sobre o uso de AIs na criação de arte e mídia:
Caso 1: Frankenstein e o prêmio Jabuti
Além da autenticidade, o uso de AI na criação de artes levantou bastante questionamentos sobre o valor do trabalho produzido. Sobre isso, no começo de novembro do ano passado o cartunista André Dahmer relatou uma situação curiosa que perpassa justamente sobre essa questão.
Ao ser convidado para ser juiz da categoria de “ilustrações” do Prêmio Jabuti, maior prêmio de literatura do país, André foi incumbido de dar sua opinião sobre uma nova edição de Frankenstein. O clássico de Mary Shelley tinha ganhado uma roupagem soturna e pálida que já tinham passado pelo crivo inicial da Câmara Brasileira do Livro (CBL), organizadora do evento, e agora seguia para o julgamento de Dahmer e mais dois jurados.
A questão começa quando foi descoberto que toda a arte da obra fora feita com o auxilio do Midjourney, plataforma digital que gera imagens a partir de inteligência artificial. André, que não conhecia o site até então, refletiu sobre o assunto e decidiu notificar a Câmara e ao seus colegas jurados. Como relatou num fio no Twitter/X, ele entendeu que não se tratava de um caso de má fé, visto que o ilustrador, Vicente Pessôa, havia grifado tanto ele quanto a ferramenta como “coautores” das ilustrações.
Da mesma forma, Dahmer não desvalorizou o trabalho apresentado. Ressaltou as questões éticas e jurídicas que isso implicava, mas também elogiou de certa forma a obra, chegando a sugerir a criação de uma classificação nova para o prêmio que acomodasse tal “tipo de arte”. Também não quis levantar polêmica ao postar seu relato, disse que essa questão necessita de um debate mais aprofundado. A Câmara analisou o caso e no dia 10 de novembro decidiu suspender a obra da competição. Em entrevista ao jornal O Globo, Vicente acusou a pressão pública sobre o assunto como principal causa da sua desclassificação. Destacando, ainda, que não usar AI em artes se trata de um atraso.
Caso 2: George RR Martin vs Open Ai
O processo criativo, independente de qual seja o meio, envolve muita inspiração. Ler livros, ouvir musicas, ver filmes. Tudo isso faz parte de um procedimento natural que o cérebro humano faz de colher informação, gerar conhecimento e fazer novas associações que resultam em uma criação. Porém, será que o mesmo pode ser dito de uma maquina?
Foi seguindo esse princípio que o escritor George R.R. Martin (As Crônicas de Gelo e Fogo, Wild Cards) junto de outros 16 colegas do Sindicato dos Autores decidiu mover um processo contra a OpenAi, empresa responsável pelo ChatGPT. A alegação do grupo, que na época fora inédita, diz que ao alimentar a IA do Chat com livros de tais autores, a empresa não só estaria quebrando o copyright deles, como abrindo a possibilidade de “plágio” gerado pela própria máquina.
Com o estabelecimento da plataforma de geração de textos, nota-se certo movimento de comercialização de obras geradas por inteligência artificial. Como citado pela organização do sindicato em matéria à Variety, é possível achar exemplos de livros escritos em “estilo” semelhantes a escritores conhecidos sendo vendidos em grandes e-comerces, como a Amazon.
Esse processo, mesmo que ainda não concluído, já garantiu que a classe dos roteiristas dos Estados Unidos se precavesse. No acordo que deu fim a greve dos Sindicato dos Roteiristas (WGA) aprovado em 26 de setembro, existe uma clausula que protege roteiros de serem utilizados no treinamento de inteligências artificiais.
Caso 3: Dublagens de presidentes e artistas
O interessante do surgimento de novas tecnologias, é como elas podem mexer com aspectos de diferentes áreas de uma mesma indústria. No caso do audiovisual, um dos primeiros setores a sentir a presença das inteligências artificiais é o da dublagem.
Além de tecnologias cognitivas de texto (ChatGPT) e imagem (Midjourney e etc), agora também existem softwares que permitem se utilizar de uma “cópia” da voz de uma pessoa para que ela leia algum texto disso. O uso mais banal disso está presente por exemplo no TikTok, no qual é possível ter uma narração feita pelo Galvão Bueno, por exemplo. Porém, com a facilidade de gerar narrações com vozes de outras pessoas, surge um risco para a classe dos atores dubladores.
Um dos primeiros a questionar sobre esse assunto foi o Youtuber Felipe Castanhari. Em entrevista ao Podpah, ele apontou para o possível risco visto a facilidade de acesso de tais recursos entre criadores de conteúdo. Como citado pelo mesmo, o canal Manual do Mundo, já usa uma ferramenta do tipo, disponibilizada pelo próprio Youtube. Além disso, já existem serviços de vídeo que permitem você gravar uma voz, e utiliza-la para dublar em outras línguas, como é o caso da plataforma Captions.
Uma outra questão sobre o assunto se trata dos direitos das pessoas pelas próprias vozes e sobre problemas o uso não autorizado pode infligir. Isso se dá porque tais plataformas não tem um mecanismos que julgue o uso autorizado ou não de uma voz. Assim já é possível ver diferentes exemplos que vão desde dublagens de memes brasileiros em outras línguas, até o caso de jogos falsos sendo “divulgados” por personalidades, como: Anitta, Virgínia Fonseca e o jornalista Cesar Tralli.
Vale ressaltar que existem poucas bases legais sobre o assunto. O exemplo mais concreto até então está no acordo de conclusão da greve dos Sindicato dos Atores dos Estados Unidos (SAG-AFTRA), que prevê autorização prévia e remuneração pelo uso de replicas de voz e imagem de seus filiados. Porém, enquanto não houver uma regulação mais ampla, ficamos com os memes inusitados (e meio assustadores) de ex-presidentes jogando Minecraft:
@joerizzington TRUMP, OBAMA, AND Biden Discover the OTHERS #aivoices #ai #minecraft #funny #obama ♬ original sound – Joe Rizzington
Caso 4: Beatles e a sua nova música
Não necessariamente, o uso de automatização pode significar a substituição total de uma pessoa no processo de trabalho. Fora da arte, várias industrias já se utilizam de maquinas com o principio de complementar e auxiliar o ser humano. No final do ano passado, o uso simples de uma inteligência artificial ajudou os Beatles a lançar sua ultima música.
O quarteto que era formado por Paul McCartney, John Lennon, Ringo Star e George Harrison teve tamanha fama na década de 1960 que não conseguiu se desprender da imagem que criaram. Mesmo após a sua separação em 1970, muito se especulou durante anos sobre a possível volta da “maior banda de todos os tempos”. Tal evento, infelizmente não ocorreu como o esperado. Após o assassinato de Lennon em 1980, os outros três membros acharam que era o momento de por as desavenças de lado e tentar se unir para preservar seu legado. O resultado disso se deu no “Anthology” que contava com as ultimas gravações inéditas da banda. As últimas, com exceção de uma: “Now and Then”:
Com a ajuda do diretor Peter Jackson (cujo trabalho com inteligência artificial vale um texto a parte), foi utilizada uma das AIs treinadas para a parte de som do filme Get Back. Isolando a voz de John do restante dos ruídos da gravação de uma gravação em fita K7 que o mesmo tinha feito pouco antes de morrer. Tendo vocal separado e remasterizado, Paul e Ringo o juntaram com a gravação de guitarra de George, feita ainda na época do Anthology, fizeram o resto da instrumentação e voilà: Nasceu uma música. Uma obra completamente nova que não fora gerada do zero de uma maquina, mas que não seria possível sem um inteligência artificial.