Se você nunca ouviu falar de Pose, não sabe o que tá perdendo! A série da FX se passa nos anos 80 e traz para as telas todo o glamour e drama do universo dos ballrooms. Em meio a uma epidemia de HIV negligenciada por uma sociedade transfóbica, homofóbica e ignorante, os personagens da série batalham por uma vida com dignidade e pelo direito de fazerem o que amam.
Para quem não conhece, os ballrooms eram grandes bailes com competições de dança, figurino, desfile e performance. Em um contexto profundamente marginalizado, muitas pessoas LGBT eram expulsas de casa e desde muito cedo viviam na rua. Por conta disso, eram criadas casas onde mães LGBT um pouco mais velhas abrigavam alguns desses jovens abandonados. Essas casas competiam entre si nos bailes, e essa é a história ilustrada por Pose.
A série conta com muitos qualitativos fortíssimos. Em primeiro plano, as atrizes. Muito se vê no mundo das artes, pessoas cisgênero interpretando travestis e transexuais. É impressionante a força que a série tem, e muito devido a verdade das atrizes. Todas elas brilham. Nesse sentido, é muito fácil acreditar e embarcar na vida daquelas personagens, que têm narrativas tão brutas e vivas. A relação das mulheres com seus corpos é discutida em diversas nuances, trazendo também conflitos de raça e classe, sempre com respeito e seriedade.
Ainda que se passe a quarenta anos atrás, infelizmente a série traz questionamentos muito atuais. No Brasil, por exemplo, pessoas morrem de doenças que já foram erradicadas em regiões mais desenvolvidas do país, uma vez que não se investe na profilaxia necessária pra que isso diminua ou pare de acontecer. Não há interesse econômico da parte de quem produz medicação, nem de quem teoricamente deveria garantir a saúde pública. Em Pose, isso se dá muito dramaticamente com a epidemia da HIV. As personagens se desesperam pelo descaso da sociedade e do Poder Público. Nada se fazia para curar uma doença que, erroneamente, se acreditava afetar apenas gays. A comunidade LGBT ia perdendo seus afetos quase que diariamente. Uma realidade de profunda tristeza e agonia. A série levanta muitas questões sobre amor. A angústia de não poder amar, ou de amar sabendo que pode ou vai perder quem ama.
A trama também levanta debates importantes sobre senso de comunidade. Primeiramente pelo próprio baile em si, que nada mais é do que a celebração de um corpo social. Mas também pelas casas. A ideia da relação familiar que é estabelecida entre essas personagens é emocionante, e cada mãe, à sua maneira, tem um papel muito influente na vida e entendimento dos filhos da casa. E de uma maneira geral, como uma comunidade em si, ainda que diversa de opiniões e posturas, quando atacada por alguém de fora, se mostra muito íntegra em apoiar os seus.
Dessa forma, a série traz alguns paradoxos interessantes de serem compreendidos. As supostas famílias de Deus são as que abandonam seus filhos, netos e irmãos nas ruas por conta sua orientação sexual ou identificação de gênero. Ao mesmo passo que as pessoas marginalizadas por terem “comportamento subversivo” são as que acolhem esses jovens desamparados e vulnerabilizados. Os homens brancos e ricos de Wall Street procuram nessas mulheres – em sua maioria, negras – todo o amparo proveniente das não-relações dentro de seus casamentos. A hipocrisia da sociedade burguesa é revoltante.
Em contraponto, a afetividade existente na vida dessas personagens só é encontrada entre pessoas do seu meio. E por muitas vezes passa muito mais pela forma de cuidado do que necessariamente por uma idealização romântica do carinho. O que é muito bonito, e fundamental nos dias de hoje, em tempos de tanto egoísmo. Mas também é importante que haja uma indignação acerca da necessidade de tamanho cuidado. Isso só se dá pelo simples fato da existência desses corpos já botá-los em perigo, e não há nada de bonito nisso. É simplesmente inaceitável. Ninguém jamais deveria temer por viver.
Por fim, é indispensável ressaltar a direção de arte, em especial os figurinos. Um trabalho absolutamente espetacular, como logicamente deveria ser, dada a estética dos ballrooms. Os figurinos fazem parte das competições, portanto representam uma parte significativa das performances. Cada episódio traz uma proposta mais esplêndida do que a outra. O trabalho é deslumbrante.
Os questionamentos que Pose traz são fundamentais para quem busca viver em uma sociedade mais justa para todos. É uma série de drama e entretenimento, mas também tem um valor político simbólico muito importante. Pela primeira vez pessoas transexuais estão ganhando espaço para se representarem na grande mídia e é urgente que sigamos dando esse espaço como consumidores e como cidadãos.
Para quem ainda não assistiu, a primeira temporada de Pose está disponível no Netflix e a série já está confirmada para uma terceira temporada.
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