Sexto mês de quarentena. A mãe de Maricléia chega em casa e, ao correr para desinfetar as mãos no banheiro, se depara com uma cena que automaticamente atribui aos demônios do filme Exorcista: um corpo levitando em sua sala. “AAAAAH”, grita a senhora. E o espanto só aumenta quando a mulher percebe que aquele corpo, na verdade, é a própria filha Maricleia, que está subindo pelas paredes. E do susto vem a fúria. “Desce daí agora, menina, que loucura é essa? Vai sujar minha parede todinha” berra ela, abanando seu pano de prato do Smilinguido no ar e sem questionar sobre as capacidades aéreas da filha. “Nunca vou entender essa menina”.
Exorcizada das paredes da sala, Maricleia corre rastejante para seu quarto e, envolta pela penumbra do isolamento-dentro-do-isolamento, abre a lista de contatos do celular. Ela havia cumprido corretamente todos os protocolos da quarentena, inclusive até julgara quem não o fez. Porém, a carne é fraca. Era chegada a hora dela abandonar os protocolos quarentênicos (e furar para furunfar). Ela vê o nome de Haroldo e se anima, ele é de confiança e tem um bom condicionamento físico, a quarentena não deve ter tirado isso dele.
Maricleia pensa: seria esse malhado o escolhido? Mas, numa rápida ida ao Instagram do pretendente, a primeira tristeza coital. Inúmeros stories com os amigos em bares. Ele fazia parte dos furadores-oficiais. Próximo! E o Figueiredo… Hmmmm… Parece que está tudo de acordo com o Instagram. Ele está fazendo crossfit no quarto, cuidando da avó, ainda não fez nenhuma live entrevistando os amigos do mercado financeiro. Tudo o que a Maricleia precisa para esquecer que 2020 é o ano em que as coisas sempre dão errado.
“Oi sumido” escreve ela num direct semi-indecente e, depois de algumas trocas fotográficas, rola o convite. ‘E aí, vamos?”. Entretanto, ao invés de uma resposta, ela recebe a notificação de que foi marcada em um stories. Figueiredo postou a conversa dando exemplo para seus seguidores do crossfit de que não é só porque você está num bom webnamoro que é pretexto para furar a quarentena. E, depois desse golpe no senso de moral, Maricleia se desespera. Chega até a pensar em adotar as dicas da prefeitura de Nova York e transar através de buracos na parede. Mas desiste quando percebe que a parede de seu quarto é uma parede estrutural do prédio. Maldita arquitetura. Nessas horas nem o Niemeyer ajuda.
Assim, entre devaneios com Chay Suede sem camisa e pesadelos com seu funeral por zoom, Maricleia seguia confusa-até que finalmente a sorte a sorri. Quando a nossa fogosa-heroína menos esperava, chega a mensagem de seus sonhos. Vinícius diz: “bora se ver?” e ela sente que finalmente o mar estava peixe (e como Maricleia queria pescar).
Eles marcam o horário e o local, tudo bem até aí, vão se ver logo logo. Maricleia se arruma, passa seus cremes. Mas, como eu disse ali em cima, 2020 é o ano em que as coisas sempre dão errado. E, para Maricleia, não seria diferente. Na hora em que a garota ia saindo para o encontro, outro berro de sua mãe. “AAAAH. PRA ONDE VOCÊ VAI, MENINA?” e a senhora, mais uma vez acompanhada de seu pano do Smilinguido, fala que não vai deixar a rebenta sair. “Eu sou grupo de risco, esqueceu? Pode tratar de ir para o seu quarto A-G-O-R-A”.
E a menina, sem argumentos para validar a fugidinha quarentênica, novamente corre em direção a seus aposentos. Porém, dessa vez, 2020 iria longe demais. Porque, sem querer, destrambelhada que era, Maricleia acaba incendiando o quarto ao entrar nele e, consequentemente o apartamento, (de tanto fogo que tinha).
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Ilustrador convidado:
Insano nas horas vagas, decifrador de sonhos e amigo relapso. Uso arte para decifrar as mentiras do mundo, que muitas vezes são mais saborosas que as verdades. Petropolitano por não ter escolha, existo.