Curto-circuito Camicase

Se você é uma pessoa obtusa, que vive sua vidinha gregária em um eterno efeito manada, adora receber ordens despropositadas, acredita em autoajuda e jovens místicos, têm frases do Bial espalhadas pela casa em papéis de parede fofos, encontra-se hodiernamente encaixotada em um embrulho da Amazon, ufa, o livro em tela não é um bom lugar para você! Não é. Não perca o seu tempo, sério. Vá ler um Nicholas Sparks, vá bater palmas para o pôr do sol, escutar um Sambô ou comprar um quadro do Romero Brito.

Na verdade, esqueça tudo o que eu disse nesse preâmbulo cruel e indelicado, você deveria ficar. Afinal, você precisa disso mais do que ninguém. Sim, conheço muito bem o “ninguém”.

Enfim, vocês já foram advertidos. Aviso de Gatinho. De gatilho? Se eu fosse um cowboy no Velho Oeste meu gato se chamaria “Gatilho”. E o meu cachorro, se chamaria “Cão”, claro.

Olha só, desculpe-me pela insistência, mas esse livro pode ser sua ruína. Quase foi a minha, e eu jamais estive na casa do Sol Nascente. Bem, o aviso do autor é mais do que ostensivo. “Curto-circuito Camicase” do Luis Brás, cria tantas sinapses que pode causar um curto, uma pane, um derrame. Talvez você sobreviva, quem sabe?

Importante dizer que o Luis Brás é um alter-ego, um pequeno grande avo, do Nelson Oliveira, na verdade, um dos. São várias personalidades que habitam esse corpo, numa espécie de consórcio de autores, um cortiço de contadores.

Pois bem, trata-se de um livro de contos publicado pela Editora Caos e Letras. Na primeira história, é apresentado um mundo segregado e fisicamente separado, onde a favela está inserida em uma redoma. Ali, dois chefes lutam pelo controle do local, enquanto, misteriosamente, pedaços de corpos biônicos surgem nos lixões da região.

Vejam, apesar da trama envolvente e criativa que explode em cada página, o que sustenta esse conto com extrema competência são os personagens e os diálogos sagazes, precisos e ágeis. Mas o que realmente fascina nesse conto, além do absurdo, por vezes cômico, e do nonsense delicioso, é o tom lacônico em determinados momentos. Nesse hiato, surge a curiosidade pelo que não é dito. O leitor fica com a sensação de estar vendo apenas um pequeno recorte de um mundo imenso. Dessa forma, Luís Brás não se preocupa em esmiuçar as coisas, garantindo certa autonomia ao leitor. Ah, e há uma reedição do cavalo de Tróia como você nunca viu. A verdade é que eu poderia ler mais sobre esses personagens por horas, dias e meses, não fôssemos todos malditos proletários.

Outro conto que merece destaque é ‘Cubo Mágico‘, uma narrativa de bonecas russas com diversos focos narrativos vorazes e autofágicos, onde cada um engole o anterior. Nesse canibalismo narrativo, o autor usa e abusa da forma, imprimindo originalidade estética que, evidentemente, reforça o conteúdo. Em ‘Uma constelação de estrelas adormecidas‘, existe um poliamor com toda sua absurda funcionalidade, ainda que brutal, onde três homens dependentes partem em uma jornada em busca da mulher amada. Imagine Paris, Menelau e Heitor juntos em uma missão de resgate.

E o impressionante é que aqui cada conto conversa e complementa o conto anterior. Não há subordinação entre eles, mas juntos formam algo maior. São, digamos assim, autônomos, tanto quanto possível dentro do determinismo cruel de uma cadeia alimentar. Tá ligado no Sin City, aquele mundo peculiar cheio de noir? Aqui é um Sin City maior, misturado com Macunaíma, num futuro inevitável. “Anacrônicos” traz uma escolha ousada e muito difícil de sustentar, que é o narrador na segunda pessoa do singular. Algo que, em mãos destreinadas, pode cansar o leitor sobremaneira. Joca Reiners Terron fez muito bem em “Noite dentro da Noite”, Chuck Palahniuk em “Diário” também acerta. Alegria e ousadia, camaradas. É, de fato, um pesadelo malthusiano, no qual somos apresentados a dimensões temporais de um mesmo mundo sobrepostas. É um “leftover” ao contrário e muito melhor. Com quebra da quarta parede:

“’Esse lugar é um depósito de ausências’. As pessoas vem atrás de um pouco de conforto espiritual e o que encontram? O desconforto de um encontro desmarcado em cima da hora. Nossos mortos não vieram, estão longe, em casa” 

Os “anacrônicos” do título têm algo de fantasmagórico, mas também um quê de projeções sistemáticas e repetitivas. São os mortos voltando, atazanando os vivos com sua simples e inconveniente presença. Assim, acompanhamos também o retorno dos “anacrônicos” famosos, como Elis, John Lennon e Michael Jackson. Eles começam a entulhar o mundo e a atrapalhar a rotina dos ordinários. Se Saramago voltasse, certamente aplaudiria de pé essa história. Outro traço marcante desse texto é a tensão crescente e o afunilamento do mundo sensível, que não deixa nada a desejar ao Focus de Miller e ao Diário da Guerra do Porco de Bioy.

Portanto, declaro solenemente o seguinte; serei eu, até o fim dos meus dias, um propagandista descarado deste conto!

“Em ‘Salvem as Crianças’ continuamos, embora em uma versão variável, nesse inferno neo-neo-malthusiano, onde há um claro intento de uma solução final. Vemos sósias que me fizeram lembrar do romance ‘Espere Agora Pelo Ano Que Vem’, de Philip K. Dick. É frenético e divertido. Como diria Pelé, que também é um alter ego de Edson Arantes, ‘salvem nossas criancinhas’.”

“Vita brevis ars longa” traz uma consciência coletiva como narradora, mostrando a perspectiva das árvores, em especial a ótica a respeito do tempo-espaço. Explica uma espécie de conexão entre homem e árvore, e as influências que cada ente exerce no outro. “Como atormentar um ente perene?” Talvez você se lembre das árvores do Tolkien, do Despertar da Octavia Butler. Seria o planeta terra um grande minhocário? Eu não sei!

Na obra “Grandessíssima Filha-da-Puta”, temos uma revolução restauradora finalmente fazendo justiça social. Inteligência artificial (ou melhor, inteligência auto-adquirida), políticos velhos, brancos, ricos, e um plano nefasto. Um humor mordaz, cáustico, que desafia o status quo. Pronto! É tudo o que você precisa saber. Não vou revelar mais nada porque não sou atendente da Kodak.

Whao Bam Bom” é o êxtase da palavra. Uma viagem lisérgica pelo universo além do universo deste livro. Uma diatribe do personagem narrador ao autor e suas reclamações justas. Porradas bem encaixadas, atingindo inclusive o leitor. Tal qual um enigma em cascata, você desvenda página após página as agruras do tira. Na mente, no peito e na medula espinhal, a sensação de uma epifania, tal qual a expectativa nos filmes mudos antigos, com legendas entre as cenas. E agora, o que vai acontecer?

Sim, como adverti no início, esse livro pode causar um curto circuito em seu cérebro, fritar sua rede neural, porém, se ainda assim você quiser ler, bem-vindo ao clube dos Camicases.

É difícil abraçar o caos e arrancar humor desse vórtice voraz. Ainda mais difícil é trazer poderosas reflexões e deixar tudo muito divertido. No entanto, afirmo sem melindres, aqui o autor consegue.

Afinal, como diria Paul Cezanne “A vida é um arco íris de caos” ou algo do tipo.

Ah, vale destacar que Nelson Oliveira é o Sindico desse Condomínio de Escritores, mas quem manda no “Curto-Circuito Camicase” é Luis Brás.

Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️

Todos os átomos do meu ser encarcerados como cativos, embasbacados ao melhor estilo Alex de Large. Reféns das malditas páginas. Impossível não sorrir, seja por genuína alegria, seja por angustiante contemplação.

Siga o TREVOUS ⚡️ nas redes sociais: InstagramTwitter e Facebook.

* * *

Título: Curto-circuito Camicase
Autor: Luiz Bras
Editora: Caos e Letras
Ano: 2021

Compre o livro de Luiz

Siga o TREVOUS ⚡️ nas redes sociais: InstagramTwitter e Facebook.
Artigo anterior
Próximo artigo
Rafael Sollberg
Rafael Sollberg
Rafael Gondim D`Halvor Sollberg tem nome de príncipe escandinavo, mas é plebeu latino-americano até a raiz dos ossos. Antinatural em qualquer lugar, embora nascido no Rio de Janeiro, é um sociopata com consciência social, ateu pouco convicto, escritor moderado e leitor radical. Integrante proscrito do Podcast “Esculachos Cacofônicos” e vídeo-resenhista de clássicos clandestinos da literatura nacional no Canal do Youtube: “Adorei! Nota 2.”.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui