Ah, o Carnaval. Época do ano em que até um eremita digital misantropo e cínico abre mão de suas convicções morais e metafisicas em nome do prazer efémero e salgado. Sim, período em que hipocritamente me permito frequentar espaços que desafiam os conceitos estabelecidas pela boa ciência. Data em que comungo com os jovens e imito suas certezas, exaltando os equívocos há muito conhecidos, bebendo cervejas quentes, respirando o doce ar da imbecilidade, enquanto canto canções ruins. Por esse breve momento, transformo-me em um tresloucado gregário que é basicamente o sujeito que mais odeio. Talvez resida justamente ai, a tal magia da festa da carne, especialmente para alguém abstémio em proteína e intolerante à apoteose.
Em franca sintonia ao espírito festivo e sem consequências, quebro minha premissa de resenhar aqui apenas autores proscritos da flora nacional, para trazer algumas linhas de reverência ao “O Sonho dos Heróis” do argentino bacana Adolfo Bioy Casares.

Importante destacar que o livro de Bioy eleva a literatura fantástica ao mais alto patamar. De início, o leitor é envolvido em uma trama mundana, ordinária, num estilo bem semelhante ao “O Sol também se levanta” do Hemingway. Porém, em determinado momento, somos alertados pela seguinte advertência:
“Agora é preciso andar devagar; com muito cuidado. O que vou contar é tão estranho que se eu não explicar tudo com muita clareza não vão me entender nem acreditar em mim. Agora começa a parte mágica deste relato, ou talvez todo ele fosse mágico e só nós não tenhamos percebido sua verdadeira natureza.”
Buenos Aires, verão de 1927, uma trupe bem boêmia se esbalda torrando um prêmio, que o protagonista, Emílio Gauna, ganhou em uma corrida de cavalos, em pleno Carnaval argentino. Três anos depois, Emílio permanece preso aos episódios desse evento, buscando em suas reminiscências desvendar o que realmente ocorreu na última noite da festividade, que por uma estranha razão entende ter sido o apogeu de sua vida. (Para os cinéfilos de gosto duvidoso, imagine o famigerado “Cara, cadê meu carro?” só que com toques fantásticos, uma narrativa sofisticada, envolvente, e sem personagens muito idiotas no caminho.) Aos poucos percebemos pequenas doses que flertam com o insólito, embora todas essas pontas mantenham laços com o real. Diante dessa atmosfera estranha, Bioy nos conduz por vielas sujas e ruínas oníricas, onde destino e premonição se enroscam.
Forças antagônicas como o Bruxo Taboada e o Professor Valerga duelam em segundo plano, com uma sofisticação narrativa sem precedentes. A incompreensão do amor e a brutalidade gregária equilibram reflexão e imagem. Destaque para a violência do episódio de sadismo contra um cavalo, que serve justamente como uma revelação da real natureza dos personagens.
No final, precisamente em sua última página, o autor descortina o mistério e oferece um vislumbre de toda sua genialidade. Enfim, descobrimos o verdadeiro significado do “Sonho dos Heróis”.
Definitivamente é um livro que marca, que desperta e que com extrema competência te convida para uma nova leitura.


Não obstante acreditar que não se deve estabelecer patamares entre obras do mesmo autor, sob pena de parecer um tiktoker literário que distribui notinhas como um professor do primeiro ano, creio que o esplendor do “O sonho dos Heróis” está ligeiramente acima do incrível “A invenção de Morel” e bem ao lado do fascinante e cruel “Diário da Guerra do Porco”.
Em suma, viva a literatura Latino-americana.
Ps: Por fim, longe da maestria de Bioy, ou de qualquer escritor que consiga conjugar um verbo e unir duas ou três palavras formando um frase, confesso que certa vez também me aventurei em uma trama de Carnaval. Num Rio de Janeiro que jamais existiu, anacrônico por excelência e serventia, pelo realismo mágico das inigualáveis ruas da Lapa, juntei Glauber Rocha e um irritante Woody Allen para um perseguição ao famoso Saci Pererê. O conto foi publicado na antologia “Devaneios improváveis” do Entrecontos.
(caso tenham porventura e por ventura um inexplicável desejo de ler essa modesta estória, prometo que vou pensar em um jeito de publicar, gratuito, claro!)
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