Aldo, um remanescente oriundo da internet a cabo, precisou aprender a lidar com tanto poder. Antes eram horas jogando paciência à espera dos ponteiros do relógio que custavam a dar meia noite, ou a temida semana que não passava até chegar ao seu final trazendo, após o meio dia do sábado, liberdade para acessar o mundo on-line por custo de apenas um pulso. MIRC, Messenger; mais um mundo para descobrir que ia além daquela sua solidão por trás dos óculos. O Aldo digital era carismático, popular, entendia de sexo, política, drogas, rock and roll, tocava guitarra e tomava absinto. Era de longe muito mais interessante ser digital.
A internet banda larga ampliou os seus horizontes. Deixou mais largo e mais curto o caminho que dava acesso à felicidade. Ele digitalizava as suas fotos e dava mais RGB ao seu rosto. Conversava, aos domingos, 20 horas por dia, comia pouco e abria um vinho. As 4 horas de sono eram mais do que suficientes, porque o melhor sonho era realizado entre duas telas. O nome dela era Gabriela. Rafaela… Maristela… Cada dia ele falava com uma garota, o maior pegador no raio de 100 metros.
“As conversas, os encontros, a música, o cheiro de café, as notícias, os jogos de tabuleiro, estão cada vez mais digitais.
O seu vizinho Magno amava fotografia, então em cada viagem que fazia ele levava um filme de 36 “poses” para selecionar os melhores ângulos, momentos, pessoas e acontecimentos. A volta para casa era sempre alimentada pela curiosidade de saber como as fotos tinham ficado. O tempo entre deixar o filme no laboratório e chegar em casa cheirando aqueles papéis cheios de momentos registrados e cheiro de tiossulfato de sódio – produto químico que fixa a imagem no papel – para Magno era uma eternidade. Para amenizar a ansiedade criou o hábito de visitar o Portinari Café. Localizado em um casarão do século XIX, onde um amigo espanhol servia um café cremoso que mais parecia um mousse de chocolate. Tá aí, se o cheiro das fotos reveladas era marcante, ele estava no mesmo grau de importância que o aroma do café que Adamastor aprendeu a fazer com o seu avô.
Em um quarto do mesmo casarão do Portinari moravam dois irmãos universitários vindos do interior, que estavam na cidade para “tentar a sorte”, “ser alguém na vida”. João cursava o 4º período de Letras e Paulo estava começando Educação Física. Nas horas vagas gostavam de ouvir música, mas com a “grana curta” não havia nem como cogitar a possiblidade de ter internet a cabo em casa e ir à lan house só era possível por 3 horas semanais. O rádio toca fitas que o pai dos garotos os presenteou era a salvação. Na época a música mais tocada era “Não Uso Sapato”, da banda Charlie Brown Jr e os rapazes ficavam atentos à programação afim de apertar o REC e gravar para a posteridade. A expectativa era grande, às vezes uma ida ao sanitário era decisiva, mas quando conseguiam gravar ouviam e curtiam diversas vezes.
O latido do Aladim, o cachorro da casa vizinha, avisava que o jornal tinha acabado de chegar. Seu Tom e Dona Bela moravam ao lado do Portinari e sempre liam sentindo o aroma de café. Era o momento em que se conectavam às notícias do mundo. Depois, como outros donos de cachorros, colocavam as folhas para Aladim poder fazer xixi. Terminavam o dia conversando com os vizinhos na Praça Aurora. Tom era o melhor jogador de dominó daquela geração.
E aqui estou. Escrevendo essas histórias que vi há alguns anos. O meu notebook está com a bateria baixa, então não posso me demorar. Escrevo enquanto ouço a minha música predileta da semana no letras.mus.br. Gosto desse site porque tem o “botão mágico” que clico e ele repete a música infinitas vezes, enquanto faço Selfie e apago até finalmente gostar de uma para postar no meu Instagram, após usar o filtro certo, é claro. Geralmente uso o Valência, ou o Mayfair, quando quero deixar a foto com um Q de enigmático. Inclusive, esse final de semana foi o aniversário da minha filha, então daqui a pouco vou imprimir as fotos que coloquei no meu HD Externo. Não sei se vocês conhecem, mas adoro usar o Quiosque Kodak que tem no mercado aqui perto de casa. A sensação é de estou em um Self Service. Escolho o papel, o efeito, a moldura e o formato. Posso até fazer um livro, coloco tudo no “prato” e imprimo as fotos em segundos.
Oi, meu notebook acabou descarregando. Nesse tempo eu pude perceber como Mel cresceu. Nas fotos ela ainda parece aquele bebê de um ano atrás. Vi também uma queimadura no rosto da minha mãe, ela disse que faz cinco dias, mas acho que exagerou. Nesse intervalo entre pegar o carregador e plugar no computador eu me senti igual a Aldo, Magno, João, Paulo, Seu Tom e Dona Bela, naquele intervalo precioso entre um desejo e outro, a espera da realização. Foi como viver a experiência de esperar por um café, sentindo o aroma e poder contemplar o mundo off-line, ou melhor, o mundo real. Perdi as contas de quantas refeições eu solicitei pelo aplicativo do iFood, perdendo de visitar algum restaurante interessante e até conhecer um padrasto para Mel.
Nesse pequeno intervalo, percebi também, que a velocidade tem criado cada vez mais pessoas ansiosas e egoístas. Pessoas que não podem esperar a sua vez numa fila, ou mesmo no trânsito. Tudo é para ontem e na velocidade “banda larga”. O tempo está voando e quando o sinal fica um pouco ruim nos estressamos e reiniciamos o IPhone para voltar tudo ao “normal”. As conversas, os encontros, a música, o cheiro de café, as notícias, os jogos de tabuleiro, estão cada vez mais digitais. Os sentimentos estão nas nuvens, junto com as informações guardadas por senhas. As pessoas têm senhas e para acessá-las você precisa estar em algum grupo no Whatsapp. E pasmem, eu me toquei, mas não mudei. Mel está com sono, louca para dormir e eu não consigo largar esse texto. A verdade é que os meus, os seus e os nossos sentimentos estão cada vez mais digitais.