Máscara de oxigênio

Beatriz esteve durante cinco décadas cuidando das dores do mundo. Chorando frustrações alheias e enxugando lágrimas de amados. Economizou energia, fechou a torneira aos escovar os dentes e apanhou todas as fezes que Tobias fez nas ruas do Recife em cada passeio matinal. Ela era a irmã mais velha de outros cinco. A que ajudava a mãe nos afazeres domésticos, apartava a briga dos gêmeos caçulas e pagava a conta da bodega no final do mês com o seu salário de auxiliar de professora no colégio Liceu.
Desde a adolescência, se tornou a referência de ombro amigo para irmãs e colegas.

Ao completar vinte e cinco anos, Beatriz alugou um apartamento no edifício Olinda, na Avenida Mário Melo, onde do décimo terceiro andar via a Veneza Brasileira se colorir ao por do sol. De manhã, ela pegava o elevador para levar Tobias ao Parque Treze de Maio e lá eles contemplavam mais uma manhã. Pelo menos uma vez na semana, ela recebia uma visita inesperada, que já tocava o interfone perguntando se podia subir prometendo não demorar. Afogar as lágrimas ao som das doces palavras de Beatriz e com Elis Regina de fundo – esse com certeza era o programa predileto de muitas jovens daquela época. Às vezes eu penso que algumas nem sofriam tanto assim, queriam mesmo era se perder na voz de Beatriz, no vento da rua da Aurora e no chá de erva doce com hortelã, costume que ela aprendeu com sua tia avó Lucinda. Essa atmosfera ia madrugada adentro. O cobertor azul com borboletas amarelas ouvia tudo o que se passava naquele quarto e sala e, se fosse espremido, inundaria o Rio Capibaribe de lágrimas e histórias tristes com cheiro de pipoca de chocolate, que sempre eram oferecidas após o chá.

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Semanas antes de completar cinquenta anos, Beatriz resolveu ousar e marcou uma viagem para visitar sua prima Odete no interior de Alagoas, dessa vez ela não iria de carro. Todos sabiam do seu pavor em viajar de avião, mas ela disfarçava colocando mais chá na caneca. Ela era uma mulher muito prática, objetiva nas suas obrigações e sabia que seu lugar era com os pés firmes no chão.

“Todo esse tempo Beatriz veio se anulando e colocando primeiro a máscara de oxigênio nos outros e depois em si.”

Depois do check in, a dama das palavras agora estava gaguejando várias vírgulas e tentando disfarçar as mãos trêmulas. Durante décadas ela foi o porto seguro de muita gente e no fundo era infeliz. Beatriz tinha as palavras certas para todo mundo, mas nunca conseguiu acertar os ponteiros da sua vida. Ao pensar em como faria quando o avião subisse já estava no segundo comprimido de Rivotril com soda. Ao som das instruções dos comissários de bordo uma frase ficou presa entre um ouvido e outro e não parou de ecoar: primeiro coloque a sua máscara de oxigênio e só depois ajude a pessoa ao lado. Essa frase se repetia e um filme passava em sua cabeça. Quantas lágrimas foram enxugadas às pressas cada vez que o interfone tocou, quantas dores foram abafadas para poder curar os anseios das amigas. Todo esse tempo Beatriz veio se anulando e colocando primeiro a máscara de oxigênio nos outros e depois em si.

Quando Beatriz conseguiu dormir era hora de atacar novamente os cintos. Odete olhava ansiosamente o painel e entre tantos voos cancelados, o da sua prima tinha pousado no pátio. Minutos depois, entre malas e casacos, renasceu um abraço, aquele esperado por quase uma década, encontrou uma nova mulher. Decidida a nunca mais largar a máscara de oxigênio por nada, nem ninguém. Marcar a próxima viagem era só o começo. E abandonar o Rivotril o segundo voo.

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Leila Perci
Leila Perci
Pernambucana, publicitária, curiosa, ansiosa e ainda mãe. Descobriu nesse último papel o prazer de realizar todos os outros. Viciada em cordel, crônica e poesia. Amante das palavras dá um boi pra entrar em uma conversa, e uma boiada pra não sair.

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