Botafogo fairy tale

Um pouco de ficção: Esta semana compartilho com os leitores do Trevous, pequeno conto escrito por mim. O texto foi originalmente publicado na seção Prosa do site literário Cronópios e posteriormente selecionado para publicação no livro-revista Arraia PajeúrBR nº4, lançado dia 17/07/2012 na sede da FUNARTE em São Paulo.

***

Por volta de meio-dia, quinze para uma. Em frente ao prédio, ela de vestido florido, comendo biscoito araruta. Ela e o cachorro grande, dourado, de pêlo comprido. Estava com o ar dos que descansam o almoço, esperando que o mundo se acabe em barrancos para poder morrer encostada. O pensamento longe. O cachorro rosnava, babava, pulava de lado a outro, enrolava-se na coleira; girava, gastava forças para se libertar, correr o mundo, cheirar os cantos.
Bastou um pombo mais ousado para ter início uma confusão de penas, pêlos e manchas no vestido. Embolaram-se ela, o pombo e o cão.

Quando ele surgiu.

Não se sabe de onde nem quando, cavaleiro sem cavalo branco. E com nobreza de fato: Antônio Nobre de Souza, a seu dispor. Herança do avô, o sobrenome aristocrata de origem questionável fazia sucesso, principalmente nos jogos no campinho da rua E. Ponta-direita de primeira, o Nobre.

Prontificou-se a ajudá-la. Ela, de bom grado, retribuiu apresentando-se: Neuza.

O nome ribombou dentro de seu aparelho auditivo, sílaba por sílaba, neu-za, neu-za, ouvido adentro, neu-za, neu-za, orelha, martelo, bigorna, neu-za, neu-za, estribo, labirinto, cóclea, neeeeeu-zaaaaa…

O cachorro mordendo o vento, atrás de borboletas.

Tá tudo bem? Agora sim. Cachorro grande, né? Ô. Deve dá um trabalhão, né? Hã… Ah! Sei não… deve dar. Ué?! Que foi? Né meu não, é do patrão. E eu lá tenho dinheiro pra ter um bicho desses… imagina, eu hein… só de xampu é mais que meu salário. Te derrubou mesmo. Isso é um boi de pesado, ó o tamanho da pata. Pois é. Inda bem queu vinha passando. É. Bom mesmo. Trabalha aqui então? Neste prédio, desde anteontem, apartamento 504. Ui! Que foi? Hehehe… nariz gelado. Ah, tá. Todo cachorro é assim, acho. E você? Eu o quê? Faz o quê, ué?

Fazia o de sempre. Aliás, fazia há tanto tempo, que nem se dava conta mais. De família de retirantes, muitas bocas e pouco espaço, num primeiro momento trabalhou nas ruas vendendo bolo de aipim, cocada; depois, as construções, os andaimes da vida. Arriscando-se como pingente nos trens cheios, feijão com arroz e ovo na marmita, adquiriu profissão: pedreiro & marceneiro.

Ela, cor de jambo, pai do Ceará e mãe do Maranhão; adora comer açaí, mas o não o nosso, pura água-com-açúcar. Sonhava ser professora, na sua cidade não havia moça mais bonita, rainha da primavera; aqui, anda de cabeça baixa no corredor, só entra pelo elevador de serviço, sem viço nenhum.

Já passava de uma e meia. Rolava o capacete da mão daqui para mão de lá. O olhar vigilante, atento a qualquer pombo que se atrevesse aproximar. Ela apertava e afrouxava a guia do cão, liberando e reprimindo na medida certa, o olho procurando – sem achar – o de Antônio.

Olha… eu tenho que ir, tá quase acabando meu almoço. Uma pena. É. Tome cuidado com esse cão. Pódeixar, tomo sim. E muito obrigado, viu. Não há de quê. Como? Não precisa agradecer. Ah, sim… educação a gente traz de casa, minha mãe sempre disse. Verdade, verdade. Bom… O quê? Vou indo. Tá certo. Tchau. Tchau.

O cão girava e girava, correndo atrás do rabo.

Mas… Oi? É que… Diga. Pensei se… Fale. Eu trabalho aqui perto e… Hum. É pertinho mesmo, aqui ó, do outro lado da rua, na esquina. Certo. A gente, talvez, pudesse, sei lá, tomar um café com bolo e… Ih! Quase esqueci! Tenho que pegar o menino na escola, lavar roupa, um montão assim, nem posso mais papear. Ah, tá. Mas continuo gostando de café. É? Saio às seis. Eu durmo aqui, mas o patrão não liga não, deixa eu sair. Que bom. Então tá. Combinado? Combinado. Seis e meia aqui. Tudo bem, Antônio. Tchau. Beijo.

Beijo? Sim, beijo. Beijo ouvido adentro, beijo, beijo, orelha, martelo, bigorna, beijo, beijo, estribo, labirinto, cóclea, beijo, beijo, faringe, trompa de eustáquio……………………………………. coração.

Ficou ainda um tempo observando-o se afastar. Com certo esforço e boa vontade, seu capacete e ferramentas brilhando ao sol, poderiam passar por escudo, espada e armadura reluzentes.

Voltou-se em direção a portaria. Ao chegar aos degraus da entrada, suspirou. Nem reparava mais nos solavancos do cachorro. A cabeça girava, girava e girava. Em anjinhos, heróis e fadas.

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Douglas Evangelista
Douglas Evangelista
Ansioso, acredita sinceramente em panaceias que salvem o mundo e aceita de boa a pecha de tio fracassado em festas infantis. Escreveu aqui e ali na web e sonha um dia comprar um dálmata de nome Billy e descobrir o que é certeza.

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