O carnaval subversivo na terra ancestral pau-brasil

Uma releitura cultural entre o clássico e o ridículo brasileiros em “Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas”, de Bruna Kalil Othero

Não é de hoje que são quase sinônimos o Carnaval e o Brasil. Antes, ressaltemos suas origens africanas: África, berço do mundo. No Brasil, o samba, herança do povo negro, popularizou-se na década de 1930. Em 1941, foi instaurada a “lei da vadiagem”, que perseguia os sambistas de rua, de maioria negra. Percebe-se que a alegria do povo sempre incomodou: não era bem-vinda a felicidade, o samba no pé, os sambas-enredo. Mesmo assim, o carnaval vingou; o povo brasileiro vingou, a despeito de toda a repressão. Antes de ser considerado apenas uma desculpa para a liberação de nossos instintos, o carnaval tem origem subversiva, ligada às religiões de matriz africana.

O samba enredo da Unidos de Padre Miguel deste ano, por exemplo, homenageia os 200 anos do mais antigo terreiro de candomblé do brasil, a Casa Branca do Engenho Velho (ilê axé iyá nassô oká), que leva o nome de Iyá Nassô, uma princesa africana trazida para o Brasil escravizada e grande responsável por semear o culto aos orixás em nosso país. Não podemos esquecer que o Brasil é terra de resistência de muitas realezas que plantaram a semente da libertação.

Awurê obá kaô, awurê obá kaô
Vila Vintém é terra de macumbeiro
No meu egbé, governado por mulher
Iyá Nassô é rainha do candomblé

Vovó dizia
Sangue de preto é mais forte que a travessia

Saudade que invade
Foi maré em tempestade
Sopra a ancestralidade no mar, ê Rainha
Preceito é herança sem martírio
Airá guarda Seus filhos no Ylê da Barroquinha

Quando falamos de carnaval, então, falamos de resistência, de samba, alegria, bravura, pulsão de vida, êxtase, coração vibrando e corpo arrepiado. É impossível deixar de participar — a cidade adquire outro ritmo, uma atmosfera diferente paira no ar. São os dias mais vívidos e bem-vividos do ano. Não há limites para o fervor do povo brasileiro, que labuta o ano inteiro e precisa extravasar de alguma forma tudo que acumula dentro de seu peito.

O Carnaval nunca foi festa dos ricos, muito pelo contrário, sempre foi festa do povo, construído e celebrado pelo povo. O mesmo povo que dita a cultura é aquele que fala a língua popular, o falar de todo dia. Não os cabeçudos presos em grandes edifícios que falam a língua erudita e se acham mais especiais que o restante da população. Estes não pulam carnaval; achando-se superiores, perdem todas as bençãos da festança.

Disso já sabiam os modernistas, os disruptivos, chamados futuristas: os ousados que buscaram os elementos mais puramente nacionais, dentre os quais está o Carnaval. Em carta a Manuel Bandeira, o escritor Mário de Andrade, grande articulador cultural, escreve sua surpresa e alvoroço interno diante da beleza do carnaval do Rio de Janeiro:

“Meu Manuel… Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas… que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! […] Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar um Carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistamente. […] Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um samba num café. Entrei. Outra hora se gastou. Manuel, sem comprar um lança-perfume, uma rodela de confete, um rolo se serpentina, diverti-me 4 noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido. E aí está porque não fui visitar-te. Estou perdoado.”  – Manuel Bandeira

Fonte: (MORAES, M. A.(org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EDUSP, 2002, pp.84-85).

Manuel Bandeira, confidente sincero de Mário, por sua vez, publicou, em 1919 — durante a efervescência das ideias modernista — o livro de poesias “Carnaval”. O poema “Bacanal” nos prova que até mesmo o mais melancólico dos poetas modernistas queria curtir o carnaval:

Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco…
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em douro assomo…
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos…
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
além de versos e mulheres?
– Vinhos!… o vinho que é o meu fraco!…
Evoé Baco!

Ou seja, até mesmo o poeta mais erudito dá um descanso na labuta e na intelectualidade para viver as “serpentinas dos amores”, “cantar asneiras” e beber vinho. Todos nós somos vulneráveis ao carnaval. Apesar de cultos, esses escritores também se permitiram viver intensamente o carnaval brasileiro. De menos Drummond, o mais tímido deles (mineiro incurável), que certamente ficaria na sombra, sem graça, rindo bobo e refletindo sobre tudo. Mas estaria lá.

Não se enganem: não é porque Drummond era tímido que era puro. Pelo contrário: possuía certamente os seus “podres”, como Bruna Kalil Othero — escritora e pesquisadora de literatura brasileira de quem sou fã — bem discorre em um dos poemas de seu livro lançado em 2019: “Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas”, premiado pelo Ministério da Cultura. O livro é uma paródia bem-humorada do projeto modernista da nação e rediscute conceitos cristalizados como o que é “clássico” e o que é “cânone”. São poemas subversivos sobre a cultura nacional e que trazem à tona aspectos ridículos, antes impensados, sobre esses mesmos poetas modernistas em torno dos quais se coloca uma grande aura. Os intocáveis.

O tempo é como uma lente que muda a perspectiva, e Bruna Kalil Othero favorece e acompanha o tempo na medida em que abaixa as calças dos modernistas diante da plateia e revela o ridículo que ninguém quer ver. Abaixando essa calça, ela retira o véu do misticismo da poesia e mostra: olha lá, a bunda deles, como é peluda! Todo mundo pelado é parecido! Não há letras bonitas escritas na cueca de nenhum deles.

Muitos homens de seu tempo possuem seus defeitos. Homens de todos os tempos, defeitos de todos os tempos. Poetas ou não, cheios de equívocos, de “ismos” de todas as espécies.

A alegria do carnaval não existinguiu a tristeza da escravidão. Não existingue a tristeza dos trabalhadores humilhados. No carnaval, o assédio às mulheres ainda impera. Depois do evento mais esperado do ano, a vida volta a ser o que era antes, como bem coloca Bruna Kalil:

Mas, pelo menos, a alma está mais aliviada, os instintos foram exorcizados e o corpo já sambou bastante.

É bem verdade que no meio da multidão suada do Carnaval somos todos ainda mais humanos, bem humanos, suados, dançando, curtindo, sambando, exalando álcool, mil odores diferentes. E, no meio do som do tambor, da cuíca, do pandeiro, do agogô, do maracá, debaixo do sol de 40 graus, ninguém está nem aí se você é poeta ou não, modernista ou não.

E viva o Carnaval!

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Carolina Schittini
Carolina Schittini
Uma idosa no corpo de uma jovem adulta, apaixonada por literatura e cultura, formada em Letras pela UFMG. Mineira exilada, sempre com saudades da praia. De mente acelerada e senso de humor incompreendido, escrevo desde novinha, e pretendo só parar quando morrer (ou mandar umas cartas lá do além).

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