Edite Coqueiros

Ilustradore convidade: Lua

Como sou formado em publicidade, meu curso me obrigou a aceitar que o trabalho criativo é algo incontrolável. Tão imprevisível como o tempo no Rio de Janeiro. Ele pode vir em questão de segundos, mas também pode demorar mais que aquelas filas de banco onde só chamam o preferencial – tente pagar uma conta em Copacabana, onde a faixa etária dos moradores deve ser por volta dos 104 anos. Por isso, fazer hora extra é algo extremamente corriqueiro nesse ofício. E você não tem como reclamar. Afinal, sua incumbência ainda não foi feita, pois aquele bicho de sete cabeças chamado Criatividade não apareceu.

Apesar de o funcionário não ser liberado da agência caso acabe seu trabalho antes do previsto, o tempo extra que se permanece na frente do computador com algum dos programas do Pacote Office ou Adobe aberto também não é recompensado. Imaginar uma “hora extra paga” para um publicitário é que nem um daqueles cachorros olhando o frango girar na vitrine da padaria. Você chega a salivar, mas sabe que nunca vai acontecer. Trabalhando num escritório de pequeno porte em Botafogo, faltando 5 minutos para o fim do meu expediente de estagiário (as fictícias 6 horas), a gerente de atendimento me pediu ajuda na criação de peças para um cliente-chato-mas-que-enche-o-nosso-bolso. Impossível falar não. Já havia fechado os programas e a seta do mouse estava pronta para ser clicada naquele belo e famigerado botão vermelho, o “Desligar”. Porém, a vontade de causar uma boa impressão e o medo de ficar mal-visto falaram mais alto. “Claro que ajudo”, eu respondi, mesmo querendo ter um pequeno ataque cardíaco. Qualquer motivo era válido para fugir dali e encontrar meus amigos na Voluntários para mais uma noite de chope. Fiquei duas horas a mais editando fotos de coqueiros para pessoas que provavelmente nem iam dar atenção àquilo. Para mim, era normal ficar a mais que o previsto e não receber extra ou ser recompensado por isso. Eu me acostumei com agências pedindo “só mais uns minutinhos”. Tanto que a minha surpresa foi imensa quando ela disse que estaria tudo bem eu sair duas horas mais cedo no dia seguinte.

Como assim? Depois de quatro anos ouvindo que meu curso, apesar de ser de humanas, me deixaria ocupadíssimo e sem recompensa nenhuma, vem minha gerente e quer me gratificar por dar uma ajuda extra? Mal sabia ela que quebrava o ciclo vicioso quase escravagista no qual eu vivia.

O tempo deixa a gente dormente. Acostumamos com injustiças ou situações que não deveríamos suportar só pelo que nos é sujeito pelo dia a dia. Pegar dengue é menos perigoso que se acostumar com a rotina, porque enquanto a primeira tem sintomas claros e tratamentos, a segunda não é diagnosticada tão facilmente. Se nos distraímos, não percebemos que os ponteiros do relógio nunca param de avançar. Quando caímos na real, já se passaram alguns minutos, algumas horas – ou algumas vidas.

Fiquei extremamente feliz de ter recebido esse “prêmio”. Agradeci pelo brinde, já imaginando as infinitas possibilidades de coisas que poderia fazer com aquele tempo extra. Tomar um sol. Aprender a fazer origâmi. Passear de bicicleta pela orla. Não tinha ideia do que o destino me reservava. E, depois de muito ponderar, usei essas duas horas para assistir Esquadrão Suicida no cinema ao lado da agência. O filme foi horrível. Preferia ter ficado editando coqueiros.

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Ilustradore Convidade:

Lua

Sou artista lésbica não binário. São catarinense, atualmente radicado em São Paulo. Formado em Artes Visuais, Todas as minhas obras desde desenhos e quadrinhos até zines são um reflexo das minhas vivências como pessoa queer. A paixão por transitar entre estilos, misturar técnicas e cores é uma marca registrada nas minhas artes.

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Gustavo Palmeira
Gustavo Palmeira
Estudou em colégio de padres, era 90% sexy no Orkut, mas hoje infelizmente, alem de roteirista, se apega fácil a qualquer um que der moral no Tinder.

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