Em 1994, Chico Science e Nação Zumbi lançavam um de seus grandes sucessos, intitulado “Banditismo por uma questão de classe”. Com essa música, retratavam a lógica anti-sistema por trás de ações ilegais praticadas como forma de subsistência e ato de rebeldia contra um status-quo imposto de cima para baixo. Assim como a música da Nação Zumbi, a nova produção da O2 filmes para a Netflix, Irmandade, também se passa em 1994 e traz à tona algumas realidades pouco contadas na história da sociedade brasileira.
A série estabelece sua trama com a história de Edson Ferreira (Seu Jorge), preso em um presídio em São Paulo por um crime menor — fumar maconha. Após anos na prisão e cansado de sofrer injustiças nas mãos dos guardas, Edson lidera um grupo de detentos que fundam uma facção criminosa, a Irmandade. Este nome nos indica outra trama da obra: a relação de Edson e Cristina, sua irmã mais nova. Para contar este enredo, já um tanto cliché nas telas de cinema e televisão, o criador Pedro Morelli utiliza de uma ferramenta um tanto quanto engenhosa.
Escapando do cliché, Irmandade segue a trilha de Cristina Ferreira (Naruna Costa), advogada e funcionária do Ministério Público que, ao descobrir o que o irmão passa no presídio, resolve mudar toda a sua vida para poder ajudá-lo.
“Quando a gente decidiu falar sobre facções, havia abordagens dramatúrgicas possíveis. A mais esperada e a menos bacana seria por meio de um policial investigando uma facção. A segunda era colocar o líder da facção no centro da trama. Até que surgiu a ideia de fazer a série tendo uma mulher protagonista, que é a Cristina, e abordar esse universo das facções através da ótica da mulher”, diz Morelli em entrevista dada ao site do Correio Brasiliense.
Em meio às tentativas de salvar o irmão, Cristina acaba sendo forçada a colaborar com o detetive Andrade, que investiga o caso. A personagem então segue trabalhando tanto para a polícia quanto para a Irmandade, o que nos permite assistir a toda a história do irmão e da construção da facção pelos olhos dela. Ao optar por esse caminho, a série se torna a primeira produção nacional da Netflix protagonizada por dois negros, sendo uma mulher e um homem.
“Me sinto muito honrada de poder estar ocupando esse papel com uma personagem que tem uma complexidade, que vai além da figura social que ela pode imprimir. Ela não está grudada em estereótipos de uma visão sobre a negritude no Brasil. Ela tem subjetividade, complexidade, dilemas profundos”, diz Naruna Costa em uma matéria do site de notícias Uol.
Tratando de diferentes facetas do crime organizado nos anos 90 em São Paulo, em alguns momentos somos levados a acreditar que a história contada faz analogia ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Pedro Morelli, que dirigiu alguns dos episódios da série afirma o contrário, dizendo não haver relação direta com nenhuma facção específica, já que a série foi construída se baseando em diferentes pesquisas de diversas organizações criminosas na época.
A primeira metade da série, constituída de oito episódios, escolhe uma linguagem exageradamente simplificada, o que torna a narrativa um pouco fraca. Quem assiste apenas aos primeiros episódios sai com a sensação de que há algo de mal trabalhado na produção. Isso se dá pela vontade dos criadores de, ao tentar falar sobre uma realidade com pouca ou nenhuma visibilidade, alcançar o maior número de espectadores possível, buscando atingir diferentes públicos.
Porém, com a direção alternada, os quatro últimos episódios trazem um ritmo totalmente diferente dos anteriores. Aly Muritiba, diretor de três destes episódios, parece alcançar maior coesão na história e intensifica bem a construção do universo, indo mais à fundo no que a linguagem cinematográfica pode proporcionar para a narrativa.
Para que ambos os estilos funcionem bem e dialoguem entre si, não pense que o trabalho foi pouco. As direções de arte e fotografia trabalham muito bem durante toda a série para garantir um certo nível de qualidade que amarra todos os episódios de forma menos discrepante. Na atuação, que também não deixa a desejar, a aposta em rostos conhecidos como Seu Jorge também contribui para prender a atenção do público.
Independentemente de todas as críticas aos fatores técnicos e cinematográficos é importante ressaltar que, assim como toda obra, Irmandade traz seus pontos positivos e negativos. Sabendo da escolha dos criadores em optar por uma construção mais simplificada e, a princípio, menos elaborada, o blog do Correio Brasiliense traz 5 motivos para assistir a série. Dá uma olhada!
A obra, que teve lançamento em 2019, cumpre um papel importante no momento em que estamos vivendo. A série traz, em seus temas principais, questionamentos éticos e morais sobre as relações raciais históricas que construíram e constroem até hoje grande parte da sociedade brasileira, com críticas ao racismo institucional encorporado pelo sistema carcerário, legislativo e judiciário. Em tempos de “Bandido bom é bandido morto”, Irmandade nos faz perguntar: por quem e para quem são feitas as leis?
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