Imagens do Inconsciente

Fernando Diniz – Em busca do espaço cotidiano

“Nas suas constantes idas e voltas, teve, porém, Fernando o privilégio de exprimir o destino que lhe coube, o pintor é feito um livro que não tem fim.
(Nise da Silveira)

Hoje se elogia um certo tipo de documentário dizendo coisas como “é quase um filme”, “é tão cinematográfico”, “tão dinâmico”. Palavras que hoje parecem ser definidoras do que é cinema, mas a trilogia documental “Imagens do Inconsciente” (1986) de Leon Hirszman, para além de uma análise artística/psicológica é um documentário rico, que não busca o “divertir” ou “fazer chorar”, mas, ainda assim, é capaz de causar emoções legítimas e  compaixão (nunca a pena)… Para além de uma defesa das ideias de Nise da Silveira, os três filmes tratam de conflito de indivíduos para se encontrar, pela unidade e pela cura.
A primeira parte dessa “série” documental – que será abordada neste texto – se foca em Fernando Diniz e funciona ora como um filme isolado, ora como uma introdução ao projeto como um todo. Podemos ver isso logo no início do documentário: depois dos créditos, a tela escura; aos poucos, como vindo de longe, uma voz feminina canta em forma de lamento. Lentamente, surge a imagem de uma grade, onde uma mulher se apoia, e entramos no universo que será abordado, o mundo das instituições psiquiátricas.

Imagens do inconsciente. (por trás da grade, dois internos observam a aproximação da câmera)
O primeiro plano do documentário, por trás da grade, dois internos observam a aproximação da câmera.

Em um determinado plano, a câmera acompanha (ou é acompanhada por) duas mulheres: a primeiro, com o rosto bem próximo da câmera lamenta algo que nem sempre podemos entender, a segunda parece entoar algo entre uma prece e uma pregação. Depois, em meio ao silêncio a câmera passeia pelo pátio da instituição, onde os internos vagam. Até o momento em que os internos atravessam um portão gradeado de volta para o interior da instituição psiquiátrica. Eles não estão livre: não só fisicamente, mas de outras formas, a câmera fica um tempo a mais sobre eles, o acompanham e, por fim, um fade.

“Hirszman, não só tesse uma defesa às ideias de Nise, mas também tenta nos revelar Fernando e o seu dilema particular e que de alguma forma toma aspectos universais.”

 

Apenas depois de 6 minutos e 19 minutos a voz de um dos narradores do filme (Ferreira Gular) resolve aparecer, junto ao plano contendo a placa de entrada do Museu de Imagens do Inconsciente. As imagens que se seguem fazem uma oposição óbvia ao que vimos antes, aqui internos dançam, pintam e desenham. Nesse momento o filme adota um ar de institucional até que, depois da câmera passear pelos corredores da instituição, chegamos ao personagem/indivíduo que será abordado no filme, seu nome é revelado por uma legenda: Fernando Diniz. Em seguida, o segundo narrador entra em ação, agora ouvimos uma voz feminina (Vanda Lacerda), uma forma de evocar a voz de Nise da Silveira. Ela nos apresentará ao histórico médico de Fernando e nos guiará pelo resto do percurso.

Imagens do inconsciente. As constantes idas e vindas entre a abstração e o figurativo na arte de Fernando.
As constantes idas e vindas entre a abstração e o figurativo na arte de Fernando.

A partir daí, o filme se volta para Fernando, não apenas como um interno, mas como artista/interno com motivos, temáticas e estilo próprio. Em seguida, a narradora nos conta como a evolução ou trajetória de sua arte revela os seus conflitos internos, a sua luta pela unidade e pela ordem interna. Vale mencionar que a narração, volta e meio, dá lugar as próprias palavras de Fernando, que comenta alguns quadros, isso apenas nos aproxima mais a ele e a sua forma única de ver o mundo.
O documentário, porém, não se limita a mostrar e explorar as obras de Fernando, mas, também, o registra o seu “presente” (momento da filmagem) e evoca o seu passado, que volta e meia se tornam concretos, ou por imagens de arquivo ou pela reconstituição/encenação dos locais e do próprio Fernando do passado. Por exemplo, quando a Narradora aborda a diferença entre o lar em que Fernando vivia quando criança e as casas ricas onde sua mãe trabalhava, Hirszman, por meio do visual, nos mostra “concretamente” as duas residências e as opõem, duas realidades que refletem o conflito de Fernando.

Imagens do inconsciente. Um dos muitos quadros de Fernando onde instrumentos musicais estão presentes.
Um dos muitos quadros de Fernando onde instrumentos musicais estão presentes. Foto: Marcos Tristão, Jornal do Brasil.

Ao que diz respeito ao “presente” de Fernando, se pode observar que ele ou é filmando caminhando pelos corredores da instituição ou trabalhando em suas obras, estes são momentos de concentração total por parte do artista. Um momento específico mostra, sem dúvida, como a articulação entre imagem e narração feita por Hirszman é forte em certo sentido: quando nos planos finais do filme, ouvimos a epígrafe desse texto dita pela narradora, ao mesmo tempo em que vemos Fernando lutando para manter uma de suas criações em pé, a câmera está bem próxima de forma que vemos a as mudanças as expressões faciais de Fernando, vemos suas mãos tentado salvar a estrutura. Em determinado momento, a voz se cala, mas a luta de Fernando continua. Essa cena parece mostrar uma distinção muito específica de certos documentários convencionais e o de Hirszman, este não se resume a contar uma história, mas sim uma busca por revelar algo mais.

Imagens do inconsciente. Fernando se esforça para manter sua escultura de pé.
Fernando se esforça para manter sua escultura de pé.

Neste filme, pelo menos assim me parece, o diretor se propõem, por um lado, mostrar um conflito propriamente humano, por outro, a busca de um momento de “verdade” que vai além do concreto (o inconsciente?). Mesmo nos momentos em que os locais da memória de Fernando se materializam em forma de imagem, há algo por se revelar, um mistério próprio, não há gente neles (com exceção de Fernando em alguns poucos momentos), os espaços são etéreos e concretos ao mesmo tempo, tal como em um sonho. Há uma tentativa de conciliação entre o objetivo e o subjetivo, entre o material e o poético.

Imagens do inconsciente. Antiga casa de Fernando materializada em imagem.
Antiga casa de Fernando materializada em imagem.

 

Imagens do inconsciente. Em oposição, a representação visual das casas onde a mãe de Fernando trabalhava.
Em oposição, a representação visual das casas onde a mãe de Fernando trabalhava.


Mas apesar de usar esses artifícios, junto com imagens de arquivo, a estrela do documentário é a obra de Fernando que ora parece revelá-lo, ora parece torná-lo um mistério. Por meio da observação do universo artístico, Hirszman, não só tece uma defesa às ideias de Nise, mas também tenta nos revelar Fernando e o seu dilema particular que, de alguma forma, toma aspectos universais. E ele faz isso, quase que totalmente, por meio daquilo que poderia ser considerado – pelo menos no senso geral – não cinematográfico: pinturas e esculturas (objetos). Mas, estes quadros e esculturas contêm na sua própria feitura, na sua própria matéria, as marcas de um conflito.


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José Luiz
José Luiz
Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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