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O Sol Nunca Esteve Tão Quente Sobre Nossas Cabeças

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Sempre me despertou curiosidade o fato de as culturas no Brasil serem tão distintas. Eu, por exemplo, nasci em Belo Horizonte, mas toda minha família de parte de pai é carioca. Crescer com essa diferença me fez reparar como o carioca é mais visceral, fala mais palavrão e é mais apaixonado e descompensado em tudo — na forma de falar, de elogiar, de xingar. O carioca fala com sensualidade, num dizer cheio de meandros e malandragem, diferente do mineiro, que fala manso, calmo e demonstra que é preciso paciência para descobrir o que há por detrás das montanhas.

Bom, ainda que o carioca seja apenas uma parte do todo do Brasil, mas sabendo que o todo não é todo sem a parte — como já escreveu Gregório de Matos, o famoso “boca do inferno”, em um de seus poemas mais célebres —, o carioca constitui uma parte marcante da construção da nossa brasilidade, ajudando a formar aquilo que os modernistas definiram como a nacionalidade brasileira, procurando aquilo que o brasileiro possuía de diferente dos demais povos e repensando como essa diferença poderia transparecer em nossa literatura, uma literatura que fosse essencialmente nacional.

Longe de qualquer nacionalismo, o Brasil nunca deixou de ser barroco e de apresentar muitas contradições. Essas contradições, paradoxos, apresentam-se na literatura e arte nacional até hoje, como reflexo da cultura brasileira. Um dos livros mais puramente nacionais, sobretudo locais, que li nos últimos tempos foi “O sol na cabeça”, do carioca Geovani Martins. Eu tenho um primo Geovani, nascido justamente na divisa entre Minas e Rio. De cara, esse fato já me chamou a atenção, pois tudo aquilo que nos atravessa é porque antes teve alguma ressonância com a nossa própria história. Afinal, somos todos brasileiros.

Foto de Geovani Martins por Pedro Garrido

Quer imagem mais brasileira que “O sol na cabeça”? Quem já foi ao Rio no verão sabe muito bem o que é chegar perto de descobrir o que só os loucos sabem. Uma loucura bem da boa, com bastante praia, sol e farra. Mas esse é o recorte do Rio que eu conheci, esse lado sedutor, um tanto apocalíptico, mas antes pacífico.

Geovani retrata, em seus contos tão atuais e nacionais, as contradições mais frementes do Rio de Janeiro. Luta e paz, guerra e amor, miséria e diversão, maconha e crack, policial e bandido, tudo junto e misturado.

No primeiro conto, “Rolézim”, já é possível perceber um ponto forte do livro de Geovani: uma capacidade ímpar de reproduzir, na escrita, o “carioquês”, seja nas gírias, nos palavrões, nos desvios de concordância para marcar a fluidez da fala — feito grandioso que faria certamente o linguista mais conservador revirar os olhos. Vitória para os que são a favor da cultura popular! É genial a forma como o autor escreve, você chega a conseguir ouvir o sotaque enquanto vai lendo e quase consegue responder mentalmente o personagem: — Dá um tempo, pô! Tá falando muito!

Saca só um trecho desse primeiro conto:

Trecho de O Sol na Cabeça

Perceba como o “sem neurose”, no conto, para o personagem representa, na verdade, a neurose total, cotidiana, o calor que mais parecia o  “bafo do capeta”, algo como “não é possível, eu te juro, fazia qualquer um ficar doido”. Uma gíria utilizada na ordem dos paradoxos, das antíteses. Só assim para dar conta de explicar o Brasil.

Ele retrata principalmente a vida na periferia, de onde veio. Os conflitos, a adolescência, a infância, a velhice, os valores, e como o contexto influencia a trajetória das pessoas. A desigualdade, a violência, as armas, os conflitos policiais, essa parte do Rio que eu, do alto dos meus privilégios, nunca nem conheci senão nos livros.

“O sol na cabeça” me fez lembrar de um livro igualmente incrível de uma das nossas maiores escritoras, Conceição Evaristo. Anota aí: Becos da memória, um dos livros mais emocionantes e carregado de ancestralidade, por isso sobretudo nacional. A periferia carrega muitas histórias, de muitas famílias. Algumas tristes, outras felizes, mas todas de resistência e de ambiguidades. Como o livro de Geovani.

Capa de "Beco da Memória" de Conceição Evaristo

Um dos contos, chamado “O cego“, trata de um idoso que, já tendo sofrido toda sorte de infortúnio ao longa da vida e já sem condição de se manter na velhice, passa a ter a ajuda de um menino mais novo para contar sua história e pedir dinheiro no transporte público. Esse velho cego, adulto solitário, um dia já foi também menino solitário:

“Quando tinha seis anos, o pai sumiu, desapareceu. A versão principal é de que o mataram por ter caído na vacilação. O que não é difícil de acreditar, levando em conta o estado que o sujeito ficava quando enchia a cara. Já tinha parado várias vezes na boca e, pelo andar da carruagem, seu lugar na vala já estava reservado há algum tempo. O que é estranho nessa história toda é que ninguém no morro falou nada, ninguém sabia de nada. Deixando sempre aquela coisa mal resolvida, um mistério no ar, por não acharem o corpo do homem”

Longe de qualquer romantização, mas sabendo que até o pior da nossa humanidade pode ser transformado em arte, é esse cotidiano — por vezes nada fascinante — o verdadeiro retrato do Brasil, onde as novas gerações se entrelaçam às mais velhas em uma tentativa de se manter de pé, de preservar o antigo ao mesmo tempo em que a esperança ainda teima em prosperar. Esta é a verdadeira ancestralidade, assim como em “Becos da Memória”, livro célebre de Conceição — eu arriscaria dizer o melhor — em que a narradora é uma criança, Maria-Nova, que vai contando as histórias de sua família, transmitidas por um boca a boca que vai ganhando corpo, contorno, na escrita.

“O sol na cabeça”, de Geovani, devorado por mim como num bom ritual antropofágico à la Oswald de Andrade, não foi lido em silêncio, e sim com as músicas que tocaram de fundo na minha mente (sempre tem algum barulho aqui dentro). De cara, já escutei atrás do cérebro o Black Alien — famoso Gustavo, carioca convicto, do qual sou a maior fã —, em Estilo do Gueto, música de seu primeiro álbum:

Você se assusta com o barulho da bala?
Eu aprendi desde moleque a adivinhar qual é a arma
Isso não é novidade nessa parte da cidade
A violência é comum e a paz é raridade
(…)
Conselho que eu lhe dou é não marcar por aí
A noite é traiçoeira, ela vai te engolir
Sem deixar nenhuma pista, sem vestígios, enfim
De onde eu vim, você também veio
Só que eu sou nascido aqui no Rio de Janeiro

LP Vinil Black Alien - Babylon By Gus Volume 1: O Ano do Macaco

Enquanto eu devorava os contos, tocava também Criolo em algum lugar do cérebro, uma música dele (Subirusdoistiozin) que uma vez eu levei para a sala de aula para discutir com meus alunos a variedade linguística:

“Mandei falar, pra não arrastar, não botaram fé, subirusdoistiozin
O baguio é loco, o Sol tá de rachar, vários de campana aqui na do campin
(…)
As criançada aqui, tão de HK, leva no sarau, salva essa alma aí”

Pegou a referência do sol rachando, né? O sol estralando mesmo no cuco e várias adversidades para enfrentar. Assim é o Brasil.

Nessa direção, então, Geovani retrata o cotidiano do pobre e do rico — o rico que tantas vezes é miserável e o pobre que tantas vezes é rico de espírito —, a batalha, as humilhações, as diferenças sociais, mas também aquilo em que somos bem semelhantes, a matéria de que somos feitos e aquilo que o carioca tem, ao mesmo tempo, de pior e de melhor: a malandragem, o suor, a graça, o gingado.

É de rir, chorar, suar e rir chorando de nervoso. É um misto de tudo que o carioca é e também de tudo que somos enquanto nação. Esse povo que aprende a rir no desespero, que anda quilômetros mesmo debaixo de sol quente a ponto de cozinhar o cérebro, que no final do dia só quer um sossego e um canto no mundo pra chamar de seu.

O Leilão da Sua Vida: Don L em Morra Bem, Viva Rápido

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Capa Morra Bem Viva Rápido

 

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Essa esmeralda maravilhosa. Um leilão. Tambores anunciando algo grande por vir. Tensão e jóias que lhe brilham os olhos só pela forma como são descritas. É assim que se inicia.

Alcançar nossos objetivos parece ser tudo o que precisamos para atingir a felicidade plena. “Quando tal coisa estiver resolvida, terei paz”. Isso é o que todos nós pensamos, achamos e sentimos frente às angústias e dificuldades que a vida apresenta. E só depois que estiver concluído, poderemos brindar.

Ué. Não é a vitória que você quer? Então por que não brinda? E aí, embarcamos num mar profundo de insatisfação e apatia interpretado por Don L na música Morra Bem, Viva Rápido.

Imagem de capa da mixtape Caro Vapor
Imagem de capa da mixtape Caro Vapor

Ele conseguiu. As marcas, as mulheres, as pérolas… suas rimas são tão preciosas quanto as taças de Chandon. Caras. Fizeram com que ele atingisse um patamar financeiro que não conhecia anteriormente. Mas então, por que seus sonhos continuam tão cinza? Don, viva! É o que ele pede para si mesmo enquanto observa letárgico tudo o que está a sua disposição.

Antigamente, ele até pensava onde poderia chegar se pudesse comprar aquelas joias que via na vitrine. E hoje, já sabe que o topázio azul piscina combina com as rodas cromadas do carro. A modelo sorri. Fez seu negócio virar, mas isso não aquietou as perturbações em sua mente. Cigarro, Dreher, cafeína… tudo o que for possível para expulsar seus demônios seria válido. E proclama:

Os versos finais soam como conselhos a quem quer ter essa luxúria. Aguarde, trabalhe e terá. Entretanto, o material não foi o suficiente para sanar a depressão que assola a mente de Don L. Então, qual seria o propósito afinal?

A busca incessante pela fama e o material é uma pauta recorrente entre artistas que estão em ascensão. Victor Xamã canta sobre isso em Garcia, com versos que dizem que, o que antes parecia excessivo, agora se tornou pouco. Mas ao mesmo tempo, não se reconhece mais.

Em Morra Bem, Viva Rápido, Don L explora muito essa dicotomia entre o sucesso monetário não suprir as lacunas de saúde mental que o assombram desde antes da fama. Quando não se tem nada, acredita-se que o poder aquisitivo lhe abrirá portas inimagináveis. E sim, isso pode realmente acontecer. Mas será o suficiente?

No clipe, temos uma criança andando acompanhada de mulheres em um carro chique com um chofer. Todos parecem insatisfeitos com o lugar onde se encontram.

Ali, vemos que toda a inocência do eu lírico foi corrompida por um universo noturno. Parece instigante, divertido, mas é possível sentir o cheiro de cigarro e álcool só de observar a cena. E o carro dá voltas e voltas, percorre toda a cidade, porém não chega a lugar algum.

Quando diz que tudo de bom que ele cita no som espera por você, não é como se a chave do segredo fossem todas essas coisas – no sentido mais básico da palavra. Você vai conquistar sim o que deseja, mas não pense que isso vai suprir seu vazio emocional. Tudo de bom que você quer, já é palpável.

Cena do clipe Morra Bem, Viva Rápido
Cena do clipe Morra Bem, Viva Rápido

É como uma grande enganação. O leilão atrai os compradores como se fosse a chegada até a fama. Porém, ao atingir aquele patamar, o que será leiloado é justamente sua própria vida, sua inocência. Isso corrói, faz com que sua mente procure propósito, vague incessantemente, até que pereça. E então, chega a próxima vítima a ser leiloada. Pois “quem chegou agora, não sabe a maluquice que fizemos. Quem chegou agora, vai realizar um sonho”.

A Mitologia Grega em Hozier

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Mais conhecido por sua música Take Me To Church, que pegou 2º lugar na lista da Billboard, ou, mais recentemente, Too Sweet, que recentemente conquistou o 1º, Hozier (ou Andrew John Hozier-Byrne) é, na minha opinião, um dos melhores letristas em meio aos que estão em alta na atualidade — sem precisar comentar, claro, da obviedade do seu talento como cantor e intérprete. Portanto, peço perdão desde já pelo tom bajulador que eu, quase como uma fangirl, vou assumir nesse texto.

As letras das obras de Hozier costumam ser construídas com camadas em cima de camadas, e, na maioria das vezes, se faz necessária mais de uma escuta para realmente captar as diferentes nuances de sentido com as quais ele trabalha. Até hoje, por exemplo, pessoas são pedidas em casamento ao som de Cherry Wine, uma música que soa romântica até uma rápida análise do sentido (e do próprio clipe) mostrar o subtexto do relacionamento abusivo que é retratado nos versos.

Nesse sentido, enquanto eu ouvia duas de minhas músicas favoritas da sua discografia, Sunlight e Talk, notei a semelhança temática entre elas. Essa não é a mais sutil e difícil de perceber de todas, eu sei, mas se conecta a um assunto que acaba que cai muito no meu gosto: as alusões mitológicas que o cantor faz nas respectivas letras.

A minha preferida e a mais subestimada entre as duas é Sunlight que, como em grande parte das músicas dele, apresenta um eu lírico apaixonado. Nesse caso, ele estabelece o seu contato com o amor e descreve o objeto dele como a luz do sol, o que já abre um pretexto de comparação com o mito de Ícaro — o filho do cientista Dédalo na mitologia, que, fugindo da prisão do Labirinto, voou perto demais do sol com asas de cera e acabou caindo em direção a sua morte.

Jogando com esse conceito e com os significados das palavras, o poeta, no decorrer da letra, nos leva a questionar se esse amor é realmente saudável — você é a luz do sol por iluminar a minha vida, por me atrair para você? Ou porque a luz do sol também pode queimar? Ou, ainda, por que eu sou dependente da luz do sol? Ou, é claro que é, tudo isso junto?

A letra deixa essa ambiguidade ainda mais embriagante quando acrescenta um pequeno detalhe, o “porém” no auge do refrão: o seu amor é a luz do sol, mas é a luz do sol.

“Oh, your love is sunlight
But it is sunlight”

“Oh, seu amor é a luz do sol
Mas é a luz do sol”

Quando o eu lírico se compara diretamente com Ícaro, nessa alusão de ser atraído pelo sol, ele deixa claro esse amor intenso, complexo, devastador e que, consequentemente, pode ser sua ruína.

“Each day, you’d rise with me
Know that I would gladly be
The Icarus to your certainty
Oh, my sunlight, sunlight, sunlight”

“Cada dia, você se levanta comigo
Saiba que eu felizmente seria 
O Icarus de sua certeza
Oh, minha luz do sol, luz do sol, luz do sol.”

E, enfim, nos mostra como está disposto a abraçar esse potencial destrutivo:

“Strap the wing to me
Death trap clad happily
With wax melted, I’d meet the sea
Under sunlight, sunlight, sunlight”

“Amarre a asa em mim
Armadilha mortal vestida alegremente
Com cera derretida, Eu encontraria o mar
Sob a luz do sol, luz do sol, luz do sol”

Em um sentido igualmente intenso, mas um pouco menos devastador, ele também traz uma tragédia mitológica como combustível para seu lirismo em Talk. Em uma pegada bem mais sensual, já no início ele estabelece na letra uma relação com a lenda de Orfeu e Euridice.

Resumindo uma das possíveis histórias que estão nesse imaginário: o herói realiza o caminho árduo até Hades, no Mundo Inferior, e faz um trato com ele para resgatar a alma de Eurídice, sua amada, para salvá-la. Nesse trato, ele seguiria o caminho para a saída, com ela seguindo-o, sob a condição de Orfeu não olhar para trás antes de, de fato, escaparem. Quase conquistando essa liberdade, já na porta, ele não se aguenta e cede à tentação de checar para ver se ela realmente estava ali e, com isso, a perde para sempre. Forte, não?

Hozier consegue beber dessa intensidade e dessa profundidade e derramá-las no eu lírico, que explora esse desejo dos personagens em comparação com o próprio desejo:

“I’d be the voice that urged Orpheus
When her body was found
I’d be the choiceless hope in grief
That drove him underground
I’d be the dreadful need in the devotee
That made him turn around
And I’d be the immediate forgiveness
In Eurydice
Imagine being loved by me”

“Eu seria a voz que incitou Orfeu
Quando seu corpo foi achado
Eu seria a esperança sem escolha do luto
Que o levou para o subsolo
Eu seria a necessidade terrível do devoto
Que o fez dar meia volta
E seria o perdão imediato
Em Eurídice
Imagine ser amada por mim”

O modo que ele usa essa bagagem histórica e literária para enriquecer ainda mais o sentido que ele quer dar à obra e a forma como ele consegue trabalhar e jogar com as palavras nesse contexto é um exemplo de como, pra mim, Hozier entra facilmente como um dos melhores compositores dessa década.

Por fim: não que ele seja um Super Artista Indie Desconhecido Underground, mas, visto que o conhecimento popular sobre ele normalmente se resume aos seus dois principais hits, recomendo muito a todos uma visitação ao resto da discografia de Hozier. Principalmente a obra de arte que é o Wasteland Baby!.

Edite Coqueiros

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Como sou formado em publicidade, meu curso me obrigou a aceitar que o trabalho criativo é algo incontrolável. Tão imprevisível como o tempo no Rio de Janeiro. Ele pode vir em questão de segundos, mas também pode demorar mais que aquelas filas de banco onde só chamam o preferencial – tente pagar uma conta em Copacabana, onde a faixa etária dos moradores deve ser por volta dos 104 anos. Por isso, fazer hora extra é algo extremamente corriqueiro nesse ofício. E você não tem como reclamar. Afinal, sua incumbência ainda não foi feita, pois aquele bicho de sete cabeças chamado Criatividade não apareceu.

Apesar de o funcionário não ser liberado da agência caso acabe seu trabalho antes do previsto, o tempo extra que se permanece na frente do computador com algum dos programas do Pacote Office ou Adobe aberto também não é recompensado. Imaginar uma “hora extra paga” para um publicitário é que nem um daqueles cachorros olhando o frango girar na vitrine da padaria. Você chega a salivar, mas sabe que nunca vai acontecer. Trabalhando num escritório de pequeno porte em Botafogo, faltando 5 minutos para o fim do meu expediente de estagiário (as fictícias 6 horas), a gerente de atendimento me pediu ajuda na criação de peças para um cliente-chato-mas-que-enche-o-nosso-bolso. Impossível falar não. Já havia fechado os programas e a seta do mouse estava pronta para ser clicada naquele belo e famigerado botão vermelho, o “Desligar”. Porém, a vontade de causar uma boa impressão e o medo de ficar mal-visto falaram mais alto. “Claro que ajudo”, eu respondi, mesmo querendo ter um pequeno ataque cardíaco. Qualquer motivo era válido para fugir dali e encontrar meus amigos na Voluntários para mais uma noite de chope. Fiquei duas horas a mais editando fotos de coqueiros para pessoas que provavelmente nem iam dar atenção àquilo. Para mim, era normal ficar a mais que o previsto e não receber extra ou ser recompensado por isso. Eu me acostumei com agências pedindo “só mais uns minutinhos”. Tanto que a minha surpresa foi imensa quando ela disse que estaria tudo bem eu sair duas horas mais cedo no dia seguinte.

Como assim? Depois de quatro anos ouvindo que meu curso, apesar de ser de humanas, me deixaria ocupadíssimo e sem recompensa nenhuma, vem minha gerente e quer me gratificar por dar uma ajuda extra? Mal sabia ela que quebrava o ciclo vicioso quase escravagista no qual eu vivia.

O tempo deixa a gente dormente. Acostumamos com injustiças ou situações que não deveríamos suportar só pelo que nos é sujeito pelo dia a dia. Pegar dengue é menos perigoso que se acostumar com a rotina, porque enquanto a primeira tem sintomas claros e tratamentos, a segunda não é diagnosticada tão facilmente. Se nos distraímos, não percebemos que os ponteiros do relógio nunca param de avançar. Quando caímos na real, já se passaram alguns minutos, algumas horas – ou algumas vidas.

Fiquei extremamente feliz de ter recebido esse “prêmio”. Agradeci pelo brinde, já imaginando as infinitas possibilidades de coisas que poderia fazer com aquele tempo extra. Tomar um sol. Aprender a fazer origâmi. Passear de bicicleta pela orla. Não tinha ideia do que o destino me reservava. E, depois de muito ponderar, usei essas duas horas para assistir Esquadrão Suicida no cinema ao lado da agência. O filme foi horrível. Preferia ter ficado editando coqueiros.

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Ilustradore Convidade:

Lua

Sou artista lésbica não binário. São catarinense, atualmente radicado em São Paulo. Formado em Artes Visuais, Todas as minhas obras desde desenhos e quadrinhos até zines são um reflexo das minhas vivências como pessoa queer. A paixão por transitar entre estilos, misturar técnicas e cores é uma marca registrada nas minhas artes.

👉  Conheça o trabalho de Lua no Instagram 

O arco-íris monocromático e outros fragmentos

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O horror sobrenatural ou ficcional, dependendo da sua credulidade, é sem dúvidas um elemento presente em nosso mundo. Se você não percebe o sombrio ao seu redor, sugiro espremer os olhos e dilatar as narinas. Repare no sorriso bizarro da criança que se lambuza com o sorvete na saída do colégio, a veia verde que tremula no pescoço longo da senhora bem vestida que aguarda seu pão na fila da padaria, o pé descalço que se entorta no sujeito sentado ao seu lado no trem, ou até mesmo essa mulher de branco pingando óleo no chão, que está atrás da sua cadeira exatamente agora!  Veja bem, como o perdão da confusão, o fato de não conseguir ver não significa que algo não existe. Quanto antes você perceber a mão ossuda do além em seus ombros, maior a probabilidade de sobrevivência nesse mundo caótico e perverso.

Devidamente advertidos, trago hoje um punhado de observações sobre o perigosíssimo “O arco-íris monocromático e outros fragmentos” do Gabriel C. Correia. Um livro criado para incomodar, ou alertar, vá saber, desde sua concepção ao seu conteúdo. Por óbvio, tudo se inicia na capa minimalista, cifrada, em um vermelho profundo e hipnotizante, com desafiadoras e provocativas letras minúsculas no título e na autoria, vilipendiando os ossos e as entranhas dos manuais de edição.

O tortuoso e bizarro caminho é composto por uma série de histórias que se conectam, ora de forma tênue, ora de forma agressiva, pelo oculto e estranho. São estilhaços de um mundo suspenso ligados, e religados, pela maldade intrínseca,  original e inescapável.

Não há maniqueísmo porque aqui não existe a presença do “bem”. Nesse universo que o autor construiu, só sentimos a presença do maligno, ganhando força ao virar das páginas.

Alguns símbolos conectam esses fragmentos, deixando perceptível uma engrenagem bem maior, embora não fique claro uma hierarquia diante dessas figuras. Portanto temos a presença constante do “rubro”, “desnascido”, “invertido”. Algo como o Randall Flagg do King, ou a serpente axial.  Mas Gabriel cria uma mitologia novíssima do além, flertando com o famigerado horror cósmico, que me remeteu ao genial “A história de lo oculto”, longa argentino de vanguarda. Na parte técnica, há de se destacar o desconforto proposital em invocar um paralelismo verbal, em especial nos primeiros “contos”. O jeito do contar traz confusão e espanto ao leitor, e justamente por isso ele é bom.

Nesse mosaico de cacos afiados, somos apresentados ao mal em suas mais diversas formas. O horror escondido nos recônditos da sociedade. Destaque extraordinário para o perturbador  “os sonhos da bruxa na casa”. O visivelmente impactante “canção do braço de pernas”, que me fez lembrar do “Beau tem medo” do Ari Aster.  Cabe mencionar também os divertidos e sagazes “O bem elaborado (porém pouco convincente) mundo imaginário da Sra Santos” que tem algo de “A Casa dos Budas Ditosos” do João Ubaldo e uma pitada de um Kafka pervertido, e “o Vampiro de Perus” que mistura traços de Dalton Trevisan com o corre do Ferréz.

Por fim, fico particularmente feliz em ler uma nova abordagem de contar num género como o terror, principalmente no Brasil. Se já me demonstrava empolgado com o vigor narrativo de Mariana Enriquez, o magnetismo do colombiano Mário Mendoza e a originalidade do cinema argentino, está ai o “Quando o Mal Espreita” que não me deixa mentir, sinto confiança para apontar o terror latino-americano como o melhor da atualidade.

Para acompanhar essa leitura, ao lado, juntinho, para criar aquela imersão, recomendo ouvir: “the man comes around” J. Cash

E “red right hand” do Nick Cave and The Bad Seeds

Avaliação:⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️
Tente correr para as colinas, talvez fique por último. Mas ao fim, a bruxa também estará dormindo ao seu lado. 

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Título: o arco-íris monocromático e outros fragmentos
Autor: Gabriel C. Correia
Editora: Editora M.inimalismos
Ano: 2023

Compre o livro de Gabriel

A Sombra de Vivian Maier

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O que alguns ousaram chamar de “pioneira da selfie”, erroneamente, – já que se tratam de autorretratos auxiliados por vidros ou espelhos. Vivian Maier era uma sombra com uma câmera em mãos. Dona de uma história extraordinária, a fotógrafa nova-iorquina trabalhou a vida inteira como babá, morreu solitária numa casa de repouso e guardou silenciosamente seus registros urbanos.

Um dos maiores nomes da fotografia atualmente, Vivian deixou seu legado em caixas que foram arrematadas num leilão em 2007 por um historiador chamado Maloof que, ao descobrir parte da sua história, resolveu produzir um documentário sobre sua vida dois anos depois, em 2009.

Me deparo com a obra de Maier pensando que tamanha genialidade viveu sob o anonimato por toda sua jornada em vida. Ainda que carregasse sua câmera para todos os lugares, pendurada em seu corpo, não dividia com ninguém sobre as fotografias ou experimentações. No fim, se aposentou como babá. Me pergunto: quantas mulheres são como Vivian Maier?

Fast Love

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Há muito tempo deixou de ser segredo de Estado o fato de o tempo passar cada vez mais rápido, da vida estar a cada segundo mais acelerada. Ninguém mais finge não saber que os dias vêm se encurtando, ao passo que os afazeres só se prolongam. Nesta cultura de eterna maximização do tempo em que estamos inseridos, é notório que os mais espertos ganham dinheiro com isso.

Apesar de o debate sobre a turbulência cotidiana na qual vivemos ter sido fomentado com o surgimento da Internet, vários empresários ao redor do mundo já haviam percebido a vontade humana de resolver mais questões em menos tempo. Os irmãos McDonald que o digam. Os inventores da maior rede de fast-food do mundo notaram, na Califórnia de 1940, uma vontade incutida em seus fregueses de se alimentar rapidamente e, assim, ter mais tempo para outras atividades. Com isso, eles ganharam não apenas rios de dinheiro, como fundaram um dos símbolos da cultura capitalista. Viva o Mc Lanche Feliz!

Nessa mesma visão econômica, foi criado o conceito do fast-fashion. Lojas como Zara e Forever 21 lançam roupas a preços mais “acessíveis”, mas que, em contrapartida, não durarão um trimestre no guarda roupa do cliente, seja porque a peça relaxou na quarta lavagem ou só por ter “saído de moda” mesmo. Você deve pensar: mas quem se sujeita a isso? Eu te convido a procurar na nossa dinâmica Internet: inauguração Forever 21 Rio de Janeiro. Mais de duas mil pessoas estavam acampadas na porta da loja para serem os primeiros a comprar produtos de design estrangeiro. Só me pergunto qual o contexto de entoarem o sem graça e eterno grito “eu sou brasileiro”.

Indo mais a fundo na cultura Fast, os aplicativos para encontrar pessoas a fim de transar demonstram que nem as relações sociais ainda são vistas como merecedoras do tempo do indivíduo. Esses chamados fast-fuck são forte evidência de que o que se busca hoje é a satisfação instantânea das vontades. Pois, com eles, torna-se obsoleta a necessidade de conhecer a pessoa para ir para cama com ela. Os dois só querem matar aquela vontade e pronto.

Fast Food, Fast Fashion, Fast Fuck, Fast Pass, Fast Line, Fast Car. Me preocupo com toda essa aceleração que buscamos. Me pego pensando se não estamos vivendo uma Fast Life. Talvez eu abra um serviço de Fast Love, em que você namora e ama intensamente um desconhecido por alguns dias e, depois da primeira briga, os dois não precisam mais se falar, ligar no outro dia ou fazer as pazes, basta contatar o serviço novamente e arrumar outro alguém. Talvez isso nem seja lucrativo, por já estarmos vivendo isso de graça. Sei que agora tenho que ir. Meu McCheddar ficou pronto.

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Ilustradora Convidada:

Karolline Queiroz

Desenho desde que me reconheci, e então me tornei ilustradora. Prazer, eu me chamo Karolline, nascida e criada na Baixada Fluminense do Estado do Rio de Janeiro. Cursei belas artes na UFRJ e me considero uma eterna e inquieta admiradora das artes visuais.

👉  Conheça o trabalho de Karol no Instagram  e no Behance

A Arte Escondida dos Pôsteres

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O pôster, é uma forma de mídia contemporânea que está aos poucos virando um formato de arte a parte. Essa foi uma reflexão que eu tive há um certo tempo quando chegou a mim pelo (embargado) Twitter o pôster do lançamento chinês de “Anatomia de Uma Queda” (2023). Não lembro de ter visto um material que fosse visualmente tão impactante e, para aqueles que viram o drama, que resumisse tão bem uma questão presente no subtexto do filme:

Essa peça me fez relembrar alguns (dos inúmeros) artistas gráficos que se dedicam a criação de pôsteres. Muitos deles fazem fora de contrato, no famoso estilo “fan-made” . E, quando a entrega é boa, conseguem até puxar uns jobs pra grandes estúdios, como a Disney por exemplo. Sendo assim, aqui vão alguns artistas que selecionei dos meus seguidos. Vale ressaltar que a grande parte deles não tem um estilo próprio ou um conceito que usa em seus trabalhos. O grande diferencial desses ilustradores e designers é a criatividade para explorar diferentes ideias e estilos em peças para divulgação.

Eileen Steinbach – (@sg_posters):

Edgar Ascensão – (@edgar_asc):

Rafał Rola – (rolarafal):

Matt Ferguson – (@mattfergusonartist):

C.A. Martin Art – (@camartinart):

Liza Shumska – (kino_maniac):

theboysinthelab – (@theboysinthelab)

Por fim, vale dar uma olhada também nas contas que divulgam esses materiais. Para além das páginas que só falam de cinema de forma repetitiva, vale seguir o Poster Escape, com a curadoria do Ozan (@Eqarti).

Rabiscando e pensando

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É claro que uma seção que se chama Figuras e Palavras tinha que ter Saul Steinberg, um cara fundamental para o desenho e para a arte de modo geral. Ele nasceu na Romênia em 1914, escapou do nazismo na Europa, acabou se naturalizando como cidadão dos EUA, e morreu em 1999. Todo mundo já deve ter visto alguma vez a sua imagem mais emblemática: aquela perspectiva do “mundo” a partir da ilha de Manhattan. Este desenho foi a capa da revista New Yorker na edição de 29 de março de 1976, depois virou pôster, camiseta e foi parodiada milhões de vezes.

Mas isso foi apenas um pequeno lance de um jogo muito maior. A produção dele foi enorme, variada e difícil de classificar, indo bem pra lá do simples desenho de humor. No nosso caso, vamos ficar apenas em alguns exemplos de uma série em que as palavras são objetos e personagens, atuando em situações assim…

E depois de passar um tempo vendo imagens deste tipo, me deu vontade de fazer um rascunho de um projeto de desenho no estilo Steinberg. E sai isso aí…

Para se ter uma visão panorâmica da gigantesca obra desta figuraça vale a pena uma visita ao site da Saul Steinberg Foundation: saulsteinbergfoundation.org

Tubarões

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A sinopse do documentário “O Homem Urso” ( Grizzly Man) do cineasta alemão Werner Herzog lançado em 2005, sobre o naturalista Timothy Treadwell, que costumava passar temporadas de férias em reservas canadenses convivendo com ursos pardos é clara, factual e sinistra. A paixão de uma vida teve um desfecho trágico quando em 2003, Treadwell e a namorada foram mortos e devorados por um dos ursos que ele estudava. Seu equipamento dentro da barraca captou o áudio do ataque. O diretor poupa o público do conteúdo e o registro é posteriormente destruído. Uma das resenhas à época usou uma belíssima expressão para descrever a mórbida história: “A frieza implacável da natureza”.

Existem incontáveis criações nas artes sobre o antigo mote Homem X Natureza, um entre tantos exemplos é a popular xilogravura de 1831 “A Grande Onda de Kanagawa” do artista japonês Hokusai. Mas para estabelecer a ideia da fragilidade do ser humano opto hoje por uma análise sobre “O Velho e o Mar”, último livro de Ernest Hemingway. Aqui também, a natureza é o que dela se espera, para o bem e para o mal, implacavelmente fria.

Santiago é um pescador veterano que vive no crepúsculo de seus dias, habitando sozinho uma antiga e precária casa em Havana onde dorme sobre jornais amarrotados e pensa sobre a falta de sorte que atravessa. Há quase três meses não consegue uma boa pescaria. Seu único amigo, o garoto Manolín, é forçado pela família a desistir de acompanhar Santiago para se juntar com gente mais afortunada. O Velho decide se lançar ao mar, com uma perseverança comovente, e após sofrer pacientemente sob o sol, consegue fisgar um enorme peixe-espada. A luta do homem contra o gigantesco animal é apresentada como algo épico. Um ancião que já perdeu seus melhores dias de força e resistência, que já vê o mar com os olhos muito cansados de quem batalhou por toda uma vida, e testemunhou a honra e a glória, a alegria e a desgraça dos dias, o esforço apaixonante de provar para si mesmo que ainda é capaz de algo grandioso, de fazer seus desafetos engolirem suas palavras, de encher Manolín de orgulho, culmina em três dias de duelo até que o maior peixe já pescado, finalmente se entregue. Santiago exausto cumpriu sua missão. Amarra ao lado da embarcação o Marlin de meia tonelada, tão grande quanto seu próprio barco, para regressar triunfante ao cais.

Hemingway possui uma escrita econômica em adjetivos mas sublime em significados. Nós podemos compreender facilmente o quanto a mensagem é universal, é preciso ter força sempre pra irmos em busca de nosso destino. E mesmo que estejamos já em nossa velhice onde os sonhos se acinzentam, é necessário sangrar as mãos, é preciso evocar o menino que vive no nosso coração, teremos que enfrentar a natureza.

Mas bravura e força de vontade não são amuletos que afastam os desafios e problemas da vida. A luta é constante, viver é trabalhoso e não há garantia de triunfo na linha de chegada, o mundo nunca se interessou por nosso suor ou nossas lágrimas, não ouve nossas súplicas, não se ofende com nossas injúrias. A natureza é apenas, como os ursos do Canadá, implacavelmente fria.

Santiago começa uma novo duelo contra os predadores que tentam roubar-lhe o prêmio, primeiro um tubarão , depois vários, cercando e abocanhando o peixe-espada. As pauladas do remo não são suficientes para afugentar o cardume que pouco a pouco vai devorando a vitória de Santiago.

Na costa, a população corre até a praia, observa assustada a gigantesca carcaça do peixe atrelada ao barco de Santiago, apenas a espinha sem carne como uma sardinha chupada por um gato sobrenatural. O velho já foi pra casa, desabar sob o peso do cansaço e da derrota.

A natureza é indiferente.

Um urso irá adentrar a barraca faminto após treze verões de mansidão. Uma onda imensa tombara a canoa insignificante dos Monges aterrorizados. Os Tubarões irão consumir por completo toda a carne e toda a esperança.

As vezes, o resultado pela soma dos nossos merecidos esforços, é nenhum.

Curto-circuito Camicase

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Se você é uma pessoa obtusa, que vive sua vidinha gregária em um eterno efeito manada, adora receber ordens despropositadas, acredita em autoajuda e jovens místicos, têm frases do Bial espalhadas pela casa em papéis de parede fofos, encontra-se hodiernamente encaixotada em um embrulho da Amazon, ufa, o livro em tela não é um bom lugar para você! Não é. Não perca o seu tempo, sério. Vá ler um Nicholas Sparks, vá bater palmas para o pôr do sol, escutar um Sambô ou comprar um quadro do Romero Brito.

Na verdade, esqueça tudo o que eu disse nesse preâmbulo cruel e indelicado, você deveria ficar. Afinal, você precisa disso mais do que ninguém. Sim, conheço muito bem o “ninguém”.

Enfim, vocês já foram advertidos. Aviso de Gatinho. De gatilho? Se eu fosse um cowboy no Velho Oeste meu gato se chamaria “Gatilho”. E o meu cachorro, se chamaria “Cão”, claro.

Olha só, desculpe-me pela insistência, mas esse livro pode ser sua ruína. Quase foi a minha, e eu jamais estive na casa do Sol Nascente. Bem, o aviso do autor é mais do que ostensivo. “Curto-circuito Camicase” do Luis Brás, cria tantas sinapses que pode causar um curto, uma pane, um derrame. Talvez você sobreviva, quem sabe?

Importante dizer que o Luis Brás é um alter-ego, um pequeno grande avo, do Nelson Oliveira, na verdade, um dos. São várias personalidades que habitam esse corpo, numa espécie de consórcio de autores, um cortiço de contadores.

Pois bem, trata-se de um livro de contos publicado pela Editora Caos e Letras. Na primeira história, é apresentado um mundo segregado e fisicamente separado, onde a favela está inserida em uma redoma. Ali, dois chefes lutam pelo controle do local, enquanto, misteriosamente, pedaços de corpos biônicos surgem nos lixões da região.

Vejam, apesar da trama envolvente e criativa que explode em cada página, o que sustenta esse conto com extrema competência são os personagens e os diálogos sagazes, precisos e ágeis. Mas o que realmente fascina nesse conto, além do absurdo, por vezes cômico, e do nonsense delicioso, é o tom lacônico em determinados momentos. Nesse hiato, surge a curiosidade pelo que não é dito. O leitor fica com a sensação de estar vendo apenas um pequeno recorte de um mundo imenso. Dessa forma, Luís Brás não se preocupa em esmiuçar as coisas, garantindo certa autonomia ao leitor. Ah, e há uma reedição do cavalo de Tróia como você nunca viu. A verdade é que eu poderia ler mais sobre esses personagens por horas, dias e meses, não fôssemos todos malditos proletários.

Outro conto que merece destaque é ‘Cubo Mágico‘, uma narrativa de bonecas russas com diversos focos narrativos vorazes e autofágicos, onde cada um engole o anterior. Nesse canibalismo narrativo, o autor usa e abusa da forma, imprimindo originalidade estética que, evidentemente, reforça o conteúdo. Em ‘Uma constelação de estrelas adormecidas‘, existe um poliamor com toda sua absurda funcionalidade, ainda que brutal, onde três homens dependentes partem em uma jornada em busca da mulher amada. Imagine Paris, Menelau e Heitor juntos em uma missão de resgate.

E o impressionante é que aqui cada conto conversa e complementa o conto anterior. Não há subordinação entre eles, mas juntos formam algo maior. São, digamos assim, autônomos, tanto quanto possível dentro do determinismo cruel de uma cadeia alimentar. Tá ligado no Sin City, aquele mundo peculiar cheio de noir? Aqui é um Sin City maior, misturado com Macunaíma, num futuro inevitável. “Anacrônicos” traz uma escolha ousada e muito difícil de sustentar, que é o narrador na segunda pessoa do singular. Algo que, em mãos destreinadas, pode cansar o leitor sobremaneira. Joca Reiners Terron fez muito bem em “Noite dentro da Noite”, Chuck Palahniuk em “Diário” também acerta. Alegria e ousadia, camaradas. É, de fato, um pesadelo malthusiano, no qual somos apresentados a dimensões temporais de um mesmo mundo sobrepostas. É um “leftover” ao contrário e muito melhor. Com quebra da quarta parede:

“’Esse lugar é um depósito de ausências’. As pessoas vem atrás de um pouco de conforto espiritual e o que encontram? O desconforto de um encontro desmarcado em cima da hora. Nossos mortos não vieram, estão longe, em casa” 

Os “anacrônicos” do título têm algo de fantasmagórico, mas também um quê de projeções sistemáticas e repetitivas. São os mortos voltando, atazanando os vivos com sua simples e inconveniente presença. Assim, acompanhamos também o retorno dos “anacrônicos” famosos, como Elis, John Lennon e Michael Jackson. Eles começam a entulhar o mundo e a atrapalhar a rotina dos ordinários. Se Saramago voltasse, certamente aplaudiria de pé essa história. Outro traço marcante desse texto é a tensão crescente e o afunilamento do mundo sensível, que não deixa nada a desejar ao Focus de Miller e ao Diário da Guerra do Porco de Bioy.

Portanto, declaro solenemente o seguinte; serei eu, até o fim dos meus dias, um propagandista descarado deste conto!

“Em ‘Salvem as Crianças’ continuamos, embora em uma versão variável, nesse inferno neo-neo-malthusiano, onde há um claro intento de uma solução final. Vemos sósias que me fizeram lembrar do romance ‘Espere Agora Pelo Ano Que Vem’, de Philip K. Dick. É frenético e divertido. Como diria Pelé, que também é um alter ego de Edson Arantes, ‘salvem nossas criancinhas’.”

“Vita brevis ars longa” traz uma consciência coletiva como narradora, mostrando a perspectiva das árvores, em especial a ótica a respeito do tempo-espaço. Explica uma espécie de conexão entre homem e árvore, e as influências que cada ente exerce no outro. “Como atormentar um ente perene?” Talvez você se lembre das árvores do Tolkien, do Despertar da Octavia Butler. Seria o planeta terra um grande minhocário? Eu não sei!

Na obra “Grandessíssima Filha-da-Puta”, temos uma revolução restauradora finalmente fazendo justiça social. Inteligência artificial (ou melhor, inteligência auto-adquirida), políticos velhos, brancos, ricos, e um plano nefasto. Um humor mordaz, cáustico, que desafia o status quo. Pronto! É tudo o que você precisa saber. Não vou revelar mais nada porque não sou atendente da Kodak.

Whao Bam Bom” é o êxtase da palavra. Uma viagem lisérgica pelo universo além do universo deste livro. Uma diatribe do personagem narrador ao autor e suas reclamações justas. Porradas bem encaixadas, atingindo inclusive o leitor. Tal qual um enigma em cascata, você desvenda página após página as agruras do tira. Na mente, no peito e na medula espinhal, a sensação de uma epifania, tal qual a expectativa nos filmes mudos antigos, com legendas entre as cenas. E agora, o que vai acontecer?

Sim, como adverti no início, esse livro pode causar um curto circuito em seu cérebro, fritar sua rede neural, porém, se ainda assim você quiser ler, bem-vindo ao clube dos Camicases.

É difícil abraçar o caos e arrancar humor desse vórtice voraz. Ainda mais difícil é trazer poderosas reflexões e deixar tudo muito divertido. No entanto, afirmo sem melindres, aqui o autor consegue.

Afinal, como diria Paul Cezanne “A vida é um arco íris de caos” ou algo do tipo.

Ah, vale destacar que Nelson Oliveira é o Sindico desse Condomínio de Escritores, mas quem manda no “Curto-Circuito Camicase” é Luis Brás.

Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️

Todos os átomos do meu ser encarcerados como cativos, embasbacados ao melhor estilo Alex de Large. Reféns das malditas páginas. Impossível não sorrir, seja por genuína alegria, seja por angustiante contemplação.

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Título: Curto-circuito Camicase
Autor: Luiz Bras
Editora: Caos e Letras
Ano: 2021

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Bebe Água Que Passa

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É difícil lidar com todos os impulsos que tenho no dia a dia. Sei que, se segui-los, em apenas 5 minutos, minha vida vira um pandemônio pior que o de Jogos Vorazes. Então, tive que aprender a não dar ouvidos a eles por mais tentadores que fossem. Não gritar de volta quando o chefe era idiota. Não comer fritura todo dia mesmo querendo batata frita de acompanhamento em qualquer prato. Não torrar todo meu dinheiro em festa por mais que a monotonia me assustasse.

O estímulo vicia nele mesmo. No momento em que você cede ao primeiro, o segundo já vem batendo à sua porta que nem uma Testemunha de Jeová no domingo de manhã. Ele forma um difícil e complicado buraco negro eterno dentro do nosso corpo pedindo sempre uma nova conquista, um novo mérito ou, até mesmo, um novo impulso – ainda mais por ter crescido numa geração onde ensinam que o mundo é seu e você deve tomá-lo.

A gente cresceu ouvindo “The World Is Mine”, assistindo filmes de pessoas normais que conseguem crescer na vida basicamente por acreditarem que conseguem e lendo que a meritocracia é a forma mais justa de convivência social. Então como não comprar cada vez mais se a vida inteira eu ouvi a Fergie dizer que um vestido Prada nunca quebrou o coração dela?

Meu pai sempre disse que, quando surgisse uma vontade compulsória de qualquer coisa, era só tomar um copo d’água, sentar e esperar 10 minutos. Se não desse certo, era só repetir o processo até que a fórmula funcionasse. Fica aqui um apelo a ele: já estou bebendo o copo d’água há 21 anos e a vontade não some, então, pelo amor de deus, trate de arrumar uma nova tática!

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Ilustradora Convidada:

Ierusalinski

Foto preto e branca da ilustradora IerusalinskiOie! Meu nome é ana, ou ierusalinski (meu nome artístico). sou uma ilustradora carioca, formada em comunicação visual e sou apaixonada pelo mundo da ilustração, trabalho atualmente em especial com ilustração digital. Espero que curtam e venham conhecer mais do meu trabalho lá no meu instagram: @ierusalinski .

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