Os Três de São Gonçalo

Há algum tempo evito os telejornais das redes privadas. Dou preferência aos da rede pública ou às mídias impressas, os periódicos. Não por questão de afinidade intelectual, discordâncias além das aceitáveis, ou pelos excessivos comerciais. Estes, por si só, configurariam motivos suficientes. Mas não só. Não os assisto, pois a temática principal destes é, prioritariamente, o entretenimento. A falência e a corrupção da cidade. O senso de moral, a família e os costumes tradicionais são atacados diariamente pelo tom erosivo de coberturas cada vez mais explícitas. Casos aterradores de violência policial e marginal, entrecortados por escândalos e desvios de verba, dão a tônica das matérias. Com doses generosas de cinismo, os apresentadores, após noticiarem crimes hediondos, emendam um sorriso publicitário em promoção de algum evento cultural. Nem sempre é possível. Esta semana, em face da natureza irracional de um crime cometido, um mal-estar tomou conta da usual atmosfera “morde-assopra”. O estupro da turista americana cometido por três jovens brasileiros em uma van, trouxe a tona o sentimento de revolta típico dos casos atrozes. Além da total ausência de arrependimento por parte dos autores, que usaram de toques de crueldade durante a prática do delito, chamou-me a atenção o teor simbólico de seus atos.

As vítimas, dois turistas estrangeiros. Francês e americana, respectivamente. Países que apesar da crise atual, possuem índices econômicos e educacionais muito superiores aos brasileiros. Nações que exportam seus jovens mundo afora, patrocinados por moedas estáveis e programas de intercâmbio acessíveis. Movidos por certo tipo de altruísmo pós-colonial, muitos destes jovens buscam o bom clima e o exotismo dos países em desenvolvimento para empreender sua cota de ajuda internacional. Envolvem-se em variados programas sociais, ensinam idiomas a camponeses, distribuem cestas básicas em favelas, compartilham conhecimento e, de quebra, dançam samba, comem acarajé e voltam cheios de experiências. Por vezes negativas; infelizmente, mais vezes do que gostaríamos de admitir.

Os criminosos, brasileiros, cariocas por terem nascido no estado do Rio, mas muito distantes do cenário praia-pôr-do-sol-posto-nove. Oriundos de São Gonçalo, segundo município mais populoso do estado, portador de carências diversas, cuja enorme extensão só é conhecida em sua totalidade pelos locais ou por alguns bravos aventureiros do terceiro setor. Jovens também. A média de idade, assim como das vítimas, de 21 anos. Negros, pobres e acima do peso, há algum tempo fretavam uma van com intuito de fazer “ganhos” pela cidade, como sabemos a partir das novas queixas prestadas por antigas vítimas. Rodavam Copacabana-Centro cobrando passagens, com auxílio de um menor de idade como trocador. Escolhiam suas vítimas a dedo, utilizando o critério de fragilidade e maior rentabilidade. Um protocolo comum aos assaltantes. Mas o que o trio escondia de mais sombrio – agora desvelado pelo fim do silêncio das vítimas – era a predileção por mulheres, em especial, o gosto pela violência sexual. Na noite do acontecido, seguiam o plano como de costume. Movidos por álcool e energéticos, assim como muitos jovens de classe média o fazem nas noites de sábado, dirigiam pelas ruas da cidade. No rádio os pagodes e sertanejos de praxe. A brisa marinha vinda pelas janelas abertas, junto do torpor das bebidas, tornavam o trabalho quase relaxante. O que os levou ao frenesi de loucura que se seguiria? Talvez a facilidade do roubo dos gringos, belos, bem alimentados, com roupas e tênis transados além da grana no bolso para curtir a noite da Lapa? O desgosto e insatisfação provocados pelo papel de meros funcionários, subalternos como foram a vida inteira, como foram seus pais, seus avós e seus vizinhos.

“Materializado no jovem francês ensanguentado, a golpes de chave-de-rodas reavivaram nos setores mais conservadores a necessidade de punições mais rigorosas, mais coerção, mais repressão, bairrismos. (…)”

Nada que justifique o ato horroroso, digno de um conto de Rubem Fonseca. Arrisco dizer que o ódio e a ira latentes destes jovens não irrompeu neste momento por acaso. A intensidade das ofensas físicas, morais e psicológicas infligidas, vieram dar vazão a uma pulsão animal contida pelo freio da taxa de desemprego, pelas más condições de habitação. Saídos dos morros do Bumba, do Salgueiro, Mutuá, Pira e tantas outras comunidades existentes por “aquelas terras de lá”, levaram às telas do horário nobre o lado mais cruel da exclusão, da ignorância e da omissão. Após o estupro e espancamento das vítimas, saíram a fazer compras com os cartões de crédito roubados, emblema da sociedade de consumo. Materializado no jovem francês ensanguentado, a golpes de chave-de-rodas reavivaram nos setores mais conservadores a necessidade de punições mais rigorosas, mais coerção, mais repressão, bairrismos. Como lido por mim em alguns comentários: “gente que sai de lá pra roubar aqui (…) depois vão falar de direitos humanos.

Outro aspecto considerável, a violência através de estupro coletivo, denota a tentativa de maximizar o dano, atingindo a mulher no que possui de mais precioso, sua integridade feminina. Motivo de inveja e rancor, deflagrada em agressão, a beleza da vítima configurou um agravante contra sua situação. Nos tempos de discussão sobre as relações de gênero, é paradoxal que a violência contra mulheres pareça aumentar. A questão por ser levantada, desmascara o ranço preconceituoso e torna evidente a lógica machista dos agressores. Casos como os ocorridos na Índia, tornam-se inaceitáveis pela sociedade, e o clamor por punições exemplares se faz presente. Vítimas de abusos começam a reunir coragem para depor. Até isto pesou contra os três de São Gonçalo, o momento histórico não favorável, o holofote voltado a cidade que sediará as Olimpíadas.

Poucos dias depois, como era esperado, a jovem norte-americana embarcou de volta aos EUA. Do rapaz ainda não temos notícias. Os criminosos aguardam na prisão os próximos movimentos da justiça. A mãe de um deles fez declarações comoventes aos jornais. Seguimos atentos ao drama da vida real. Em suas casas, amedrontados, os telespectadores alternam com seus controles remotos entre o sentimento de vingança estilo Velho testamento e os sorrisos inevitáveis frente às gaiatices coloridas do programa Esquenta. Bipolaridade com qualidade digital.

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Douglas Evangelista
Douglas Evangelista
Ansioso, acredita sinceramente em panaceias que salvem o mundo e aceita de boa a pecha de tio fracassado em festas infantis. Escreveu aqui e ali na web e sonha um dia comprar um dálmata de nome Billy e descobrir o que é certeza.

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