A vida é uma oscilação entre o tédio e o espanto. No tédio repousamos nossos esqueletos cansados, mas é no espanto que o chacoalhamos, é quando nosso olhar de repente se admira, se assombra, há o impacto de um pensamento ou de uma imagem, uma ideia ou experiência inédita. E somos arrebatados de nós mesmos, de quem éramos, e somos levados alhures em nossa jornada.
Esses momentos podem ser de beleza inigualável. E entre exemplos desse “thauma”, dessa profunda admiração espontânea, me ocorreu contar um causo:
Há alguns bons anos tocou o telefone de uma casa do subúrbio carioca. Do outro lado da linha, uma voz masculina se apresentou como o marido de uma prima de segundo grau por parte de um ramo afastado da família que há muito havia migrado para o interior do estado do Pará. Ou seja, um parente literalmente distante. Seu nome era Nelson, tinha acabado de se aposentar e estava pra chegar ao Rio em questão de três dias, levaria um afilhado seu, o Charles, de quatorze anos. Ficariam menos de uma semana, muito obrigado, até. Assim, desse jeito.
A matriarca reuniu os moradores, um filho e sobrinhas, e tratou de explicar: “Não conheço, não sei quem é, mas vamos recebê-los da melhor forma, você Paulo libere o quarto uns dias e fique dormindo no sofá da sala”. Sr. Nelson chegou. Um paraense conversador com muitos anos de trabalho pesado nas mãos. Seu afilhado Charles era um adolescente magrelo com um fenótipo indígena acentuado, cabelos muito lisos e escuros e pele de uma tonalidade curiosa de jambo. Quase não falava de tanta timidez.
Muito proseou Sr. Nelson sobre os acontecimentos recentes das vidas de todas aquelas pessoas de quem a matriarca desconhecia mais da metade. Agradeceu por demais a recepção e já foi logo fazendo um pedido apontado para fora da janela “Quero muito andar naquele viaduto, é bonito não é Charles?”
A casa da matriarca possuía uma vista concreta para o Viaduto Negrão de Lima. Uma obra viária setentista que cobre pistas e linhas férreas e onde, por hoje em dia sob suas vigas, ocorre o famoso Baile Charme de Madureira. Paulo os levou até lá, e cada passo deles era seguido de comentários sobre a força de toda aquela engenharia. Paulo, então com cerca de vinte e poucos anos, sentia por eles um afeto bom como quem vê no outro a ingenuidade atrelada à sinceridade pueril.
E assim os dias passavam com os dois viajantes descobrindo estupefatos as maravilhas de Madureira. A quadra da Portela, o Mercadão, o comércio pujante do bairro.
“Agora Paulo, eu vim mesmo pra cá pra realizar um sonho”
“Diga, Sr. Nelson”
“Eu gostaria de conhecer o mar”.
Paulo entendeu a poesia de tudo aquilo. Sr. Nelson e Charles eram do interior, tinham relações com grandes rios, com a floresta tropical, com o Brasil profundo. E por isso o mar era sua utopia imagética. Combinaram de ir no dia seguinte, pegaram cedo um ônibus da linha 701, Madureira x Alvorada. Paulo estava pensando em como seria a reação deles quando vissem o oceano. Porque se o viaduto de Madureira já tinha feito tanto estrago…
Desceram do ônibus, atravessaram a Av. Sernambetiba, dia de semana praia vazia, céu claro, pisaram na calçada da orla e estancaram. Sr. Nelson emudeceu, seus olhos se arregalaram, Charles sorria mil dentes como se estivesse sob efeito de ferozes psicoativos. Os dois apopléticos de frente para o Atlântico, Paulo de costas para a água olhando fascinado para eles. Todos tendo um momento de satori. O assombro.
“É fundo? A gente pode entrar?”
Paulo explicou sorrindo, “Sim, Sr. Nelson, podem entrar, hoje não está agitado, só não vão muito lá pra dentro que tá tudo certo”. Correram ensandecidos, arrancavam as camisas gritando “É lindo! É lindo!” . Paulo sentiu uma estranha vontade de chorar. Ia atrás deles hipnotizado por suas euforias. Entraram na água desajeitados, lutando contra a maré em suas canelas, se equilibravam, gargalhavam, de repente Sr. Nelson mergulhou. Passaram poucos segundos, para Paulo tudo aquilo era cinema em câmera lenta. Então emergiu.
“CHARLES! É SALGADA!!!”