Mais conhecido por sua música Take Me To Church, que pegou 2º lugar na lista da Billboard, ou, mais recentemente, Too Sweet, que recentemente conquistou o 1º, Hozier (ou Andrew John Hozier-Byrne) é, na minha opinião, um dos melhores letristas em meio aos que estão em alta na atualidade — sem precisar comentar, claro, da obviedade do seu talento como cantor e intérprete. Portanto, peço perdão desde já pelo tom bajulador que eu, quase como uma fangirl, vou assumir nesse texto.
As letras das obras de Hozier costumam ser construídas com camadas em cima de camadas, e, na maioria das vezes, se faz necessária mais de uma escuta para realmente captar as diferentes nuances de sentido com as quais ele trabalha. Até hoje, por exemplo, pessoas são pedidas em casamento ao som de Cherry Wine, uma música que soa romântica até uma rápida análise do sentido (e do próprio clipe) mostrar o subtexto do relacionamento abusivo que é retratado nos versos.
Nesse sentido, enquanto eu ouvia duas de minhas músicas favoritas da sua discografia, Sunlight e Talk, notei a semelhança temática entre elas. Essa não é a mais sutil e difícil de perceber de todas, eu sei, mas se conecta a um assunto que acaba que cai muito no meu gosto: as alusões mitológicas que o cantor faz nas respectivas letras.
A minha preferida e a mais subestimada entre as duas é Sunlight que, como em grande parte das músicas dele, apresenta um eu lírico apaixonado. Nesse caso, ele estabelece o seu contato com o amor e descreve o objeto dele como a luz do sol, o que já abre um pretexto de comparação com o mito de Ícaro — o filho do cientista Dédalo na mitologia, que, fugindo da prisão do Labirinto, voou perto demais do sol com asas de cera e acabou caindo em direção a sua morte.
Jogando com esse conceito e com os significados das palavras, o poeta, no decorrer da letra, nos leva a questionar se esse amor é realmente saudável — você é a luz do sol por iluminar a minha vida, por me atrair para você? Ou porque a luz do sol também pode queimar? Ou, ainda, por que eu sou dependente da luz do sol? Ou, é claro que é, tudo isso junto?
A letra deixa essa ambiguidade ainda mais embriagante quando acrescenta um pequeno detalhe, o “porém” no auge do refrão: o seu amor é a luz do sol, mas é a luz do sol.
Quando o eu lírico se compara diretamente com Ícaro, nessa alusão de ser atraído pelo sol, ele deixa claro esse amor intenso, complexo, devastador e que, consequentemente, pode ser sua ruína.
E, enfim, nos mostra como está disposto a abraçar esse potencial destrutivo:
Em um sentido igualmente intenso, mas um pouco menos devastador, ele também traz uma tragédia mitológica como combustível para seu lirismo em Talk. Em uma pegada bem mais sensual, já no início ele estabelece na letra uma relação com a lenda de Orfeu e Euridice.
Resumindo uma das possíveis histórias que estão nesse imaginário: o herói realiza o caminho árduo até Hades, no Mundo Inferior, e faz um trato com ele para resgatar a alma de Eurídice, sua amada, para salvá-la. Nesse trato, ele seguiria o caminho para a saída, com ela seguindo-o, sob a condição de Orfeu não olhar para trás antes de, de fato, escaparem. Quase conquistando essa liberdade, já na porta, ele não se aguenta e cede à tentação de checar para ver se ela realmente estava ali e, com isso, a perde para sempre. Forte, não?
Hozier consegue beber dessa intensidade e dessa profundidade e derramá-las no eu lírico, que explora esse desejo dos personagens em comparação com o próprio desejo:
“I’d be the voice that urged Orpheus
When her body was found
I’d be the choiceless hope in grief
That drove him underground
I’d be the dreadful need in the devotee
That made him turn around
And I’d be the immediate forgiveness
In Eurydice
Imagine being loved by me”
“Eu seria a voz que incitou Orfeu
Quando seu corpo foi achado
Eu seria a esperança sem escolha do luto
Que o levou para o subsolo
Eu seria a necessidade terrível do devoto
Que o fez dar meia volta
E seria o perdão imediato
Em Eurídice
Imagine ser amada por mim”
O modo que ele usa essa bagagem histórica e literária para enriquecer ainda mais o sentido que ele quer dar à obra e a forma como ele consegue trabalhar e jogar com as palavras nesse contexto é um exemplo de como, pra mim, Hozier entra facilmente como um dos melhores compositores dessa década.
Por fim: não que ele seja um Super Artista Indie Desconhecido Underground, mas, visto que o conhecimento popular sobre ele normalmente se resume aos seus dois principais hits, recomendo muito a todos uma visitação ao resto da discografia de Hozier. Principalmente a obra de arte que é o Wasteland Baby!.