METAMOTE

O aplicativo de mensagens sonoriza mais uma notificação: “Olá Dr. Jekyll, bom dia! Como vai? Estamos ansiosos para sabermos se teremos um prazo para seu próximo texto”. Sabrine, pensa Jekyll, que moça educada! Formada na escola da paciência, nesses meses todos nunca tratou com a eloquência que seria de direito dadas as circunstancias, algo como “Escuta aqui ô animal, vai ficar de palhaçada com a nossa cara até quando?”. Jamais Sabrine abordaria alguém nesses termos. Nunca. A Trivium é um ambiente coletivo, e a coletividade desperta em nós o melhor de nosso humanismo. Sabrine é cordialíssima.

No início, Jekyll não tinha dificuldades, colaborar com a Trivium, uma revista digital fundada por seu amigo de infância Venâncio era simples como se manter na estrada de tijolos amarelos com o norte à seguir. A equipe fazia uma reunião de pauta e enviava um tema, um conceito, um mote, Jekyll elaborava algo e devolvia, então Venâncio, Sabrine ou Yan revisavam o texto, e eventualmente dentro do encontro entre os prazos, o talentoso designer gráfico Muniz Fábio anexaria uma arte ilustrativa. Uma vez publicado, as notificações sonoras do aplicativo de mensagem silenciavam. Renovando todo o processo com uma lua de vinte e oito dias. “Olá Dr. Jekyll, bom dia, como vai?”

Jekyll se sente orgulhoso de participar do projeto. “Um hub de cultura” lhe explicou um entusiasmado Venâncio, “E tudo feito de forma gregária, todos se ajudam, e outra, o Yan se amarra nos seus textos, a Sabrine também. Confiamos em você, faz o seguinte, escreve sem tema fixo, fala do que você quiser!”

Liberdade! Exulta Jekyll sentindo o vento de suas asas refrescar lhe a cuca. Tudo flui bem com trabalhos sobre literatura, trivialidades, memórias, causos e elucubrações diversas até que na aproximação de novembro Jekyll pensa em uma ideia. Vem aí o feriado de finados e ele vai escrever sobre a morte. Diferente de Epicuro que atestava um não encontro entre o eu que vive e a morte que ainda não o desviveu, Jekyll acredita que de vez em quando é necessário abordar por outra linha estoica um “memento mori” tornando a finitude um assunto vivificado. Tudo a ver com a época do ano, Venâncio Sabrine e Yan, irão curtir. Um Hub de cultura! E a morte é natural mas também cultural. A coluna do Dr. Jekyll vai ficar de matar na Trivium desse mês…

Mas Jekyll começa ele mesmo insatisfeito a refazer o texto em novos rascunhos, apagando compulsoriamente trechos inteiros para refaze-los em novos modos que são por sua vez apagados novamente até serem reescritos. E enquanto a lua altera suas fases, Sabrine ressurge cada vez mais educada, tendo de ler desculpas rocambolescas de Jekyll que já está, então, fora dos prazos, fora da estrada de tijolos amarelos e sem um assunto que lhe sirva de mote. Percebendo, enfim, que seu maravilhoso texto sobre a morte estava morto! A morte não é um mote. Se eu estou ela não está, se ela está eu não estou. Maldito Epicuro ! Que inclusive já morreu!!!

Venâncio liga. “Fala meu amigo, poderia vir aqui no escritório da Trivium na sexta feira?”. Jekyll entende que é seu fim. Será descoletivizado. A falta de conceitos, de temas, de motes não pode interromper o fluxo de um hub de cultura. Entretanto, a reunião corre se compondo sobre outros assuntos, projetos vindouros, fofocas e elogios “Pô o Yan acabou de sair daqui, ele vive dizendo ‘gosto dos textos desse Dr.Jekyll’, pena que não se encontraram”. Sentado ali, bebendo um copo de whisky, ouvindo Venâncio falar. Jekyll observa o espaço físico da Trivium, tal qual o raio desenhado na logo da empresa ele vê e se convence, há um tópico. Ele tem um assunto. A Morte pode esperar. Entregará à Trivium outra proposta, mais singela, mais leve, a fotografia de uma câmera, um poema sobre poesia. Muniz Fábio talvez faça uma ilustração de espelhos sobre espelhos. Eis aí Trivium o seu tema: Metalinguagem.

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Mr. Hyde
Mr. Hyde
Ex crooner de cabaret, ex Administrador do Bingo Solidário da ala três. Ex crítico de cartas de amor coletadas em aterros sanitários. Ex fumante de Derby Vermelho. Ex traficante de xaxim. Iludido em tenra infância por um Papai Noel de galeria, Mr. Hyde ainda acredita em anjos, sejam os caídos ou pendurados.

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