Outros Brasis da ficção científica

Um livro para você perder todas as esperanças no futuro

Nota da Comunidade:

Tendo em vista que o tema dessa edição da revista Trevous é inteligência artificial, penso ser oportuno, e necessário, advertir que esse texto foi escrito por uma estupidez genuína, natural, que se alimenta de um banco de dados preguiçoso, ultrajante e com severa deficiência proteica. Ruim, mas bem original.

This is the end, my only friend, the end. Sim, todos sabem, ou deveriam saber que o mundo está muito próximo do fim. A Sibéria pega fogo, as calotas polares derretem e os jovens se comunicam por dancinhas sincronizadas. Sim, Nostradamus previu tudo, exceto o TikTok.
Mas nem tudo são meteoros incandescentes, oceanos revoltos e bilionários fugindo para espaço. Há esperança? Não. Mas há bom entretenimento para anestesiar os bem-aventurados nesse final inevitável. Dentre eles, o mais urgente: “Outros Brasis da Ficção Cientifica”, vencedor do Prêmio Argos de Ficção Científica na categoria Melhor Antologia, organizado por Davenir Viganon, uma espécie de Câmara Cascudo do gênero e criador do canal Diário de Anarres.

Nosso Organizador Charmoso
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Segundo melhor canal de Resenhas Literárias do Youtube!
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A capa belíssima é uma concepção original de Pedro Viana e a revisão é de Lucas Lira. A produção pertence a Caligo Editora, que em termos juventudicamente emojianos é a nossa Pixar!

A antologia é composta por 13 contos sensacionais e um mais ou menos, que não por acaso é de minha autoria. E antes que você feche essa página e comece a cantar “marmelada” para a tela do seu monitor, cumpre salientar que meu envio foi feito de forma anônima. Ou seja, se participo desta coleção é por mérito do Organizador, que sabiamente me escolheu pelo talento e não pelo meu enorme carisma.

O primeiro conto é “Atlantic” da Lady Sybilla. Nele o leitor desenvolve logo de cara aquela sensação de que “vai dar ruim”, e esse sentimento vai escalando em momentos cada vez mais tensos, juntando o insólito e o avanço tecnológico numa espécie de Tenet, só que bom! Na trama, os personagens são obrigados a acreditar no seu próprio “Eu consumidor do futuro”. Sem receio de estar equivocado, é possível dizer que ele tem cara de um ótimo episódio do longevo Twilight Zone ou do consagrado Black Mirror.

Twilight Zone e Black Mirror

“Álcool, formigas e um punhado de colhões”, desse idiota que vos escreve, traz um mundo devastado onde índios implacáveis, traficantes destiladores e mulheres audazes brigam por um espaço no livro dos vivos. É um conto singelo e ordinário em um universo repleto de especialistas no riscado. No entanto, imagine uma missão espacial para salvar a humanidade e, não por outra razão, resolvem chamar os maiores cientistas do mundo. Só que em determinado momento, esses gênios percebem que precisam de alguém para passar o cafezinho, trocar a pilha da lanterna ou lavar o banheiro. Em suma, como diria Rei Robert “esse cara sou eu”. O sujeito que sabe usar uma broca, tipo o Bruce Willis lá naquele filme, saca? I could stay awake just to hear you breathing”, só que eu não morro no final. Aliás, depende, pois não sei em que ano você está lendo essa proscrita resenha.

“O Bará de Marte” do Davenir Viganon, alterna suas narrativas em uma linguagem rápida nas ações, no ritmo do corre, das ruas, e outra mais sofisticada, apurada, que faz pequenas revelações com vagar misterioso. E, mesmo tendo um apelo forte do suspense marginal, aborda pontos de reflexão como o inevitável futuro da precarização das relações de trabalho, ocasião em que sai o motoboy e entra o droneboy. Razão pela qual é fácil constatar que nossos grandes problemas não são de ordem espacial, tampouco temporal, eles são frutos da exploração da mão-de-obra, que acompanha o tal progresso civilizatório. Há também uma sorte de referências da mitologia dos orixás, com especial destaque a chave do Bará, que contém uma profecia que poderia ser o estopim para uma revolução. Será? Espero que sim, porque eu não tô aguentando mais.

Agora peço que você, leitor, idealize um mundo no qual o sexo é proibido. Bom, se você é um padre, não é tão difícil imaginar. Mas o que um padre estaria fazendo aqui, não é mesmo, Caco? Enfim, deixando essas perguntas cretinas de lado, é muito importante dizer que “O Pênis de Apolo” da Romy Schinzare, é um total arraso. Para não facilitar nosso raciocínio, é óbvio que a primeira instituição a ser contra essa proibição seria justamente a Igreja. A autora parte de uma premissa Saramaguiana que parece absurda, mas, em seguida, constrói sua história bem plausível e lógica dentro deste universo. Há sim uma ótima mistura do insólito das obras do José português, como As intermitências da morte, aliada ao estilo despojado de Verissimo e a deliciosa sem-vergonhice de João Ubaldo Ribeiro.

Sexo na Cabeça, a casa dos budas ditosos e as intermitencias da morte

“Em busca do espaço perdido” do Fábio Fernandes, se passa no ano de 2039, período em que já é comum o uso das dobras do espaço. A narrativa é levemente conduzida pela relação de João e Maria, vizinhos cara metades, metades da laranja bem mais física do que Fábio Júnior gostaria de reconhecer, e possuem uma conexão que remonta a “Eduardo e Mônica”, em uma dinâmica em que João é mais pragmático e Maria mais sonhadora. Recheado de ótimos diálogos e muitas referências, que vão desde Glauber Rocha à Buñuel, o grande diretor de O Anjo Exterminador. Ah, dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo? Não sei. Mas acho que você merece descobrir.

El Angel Exterminador, Terra em Transe

Da mente de Maria Eduarda Amadeu surge “As Engrenagens do Coração” que talvez seja o conto menos espetaculoso desta coletânea, embora muito mais sensível do que os seus pares. Com singeleza, trata da efemeridade da vida, mesmo daquelas alongadas de forma artificial. Conduzida pela perspectiva de uma garota, traz em suas linhas o peso do mundo que todo jovem carrega em suas costas. Na parte técnica é importante ressaltar que linguagem e proposta se aninham perfeitamente.

Em “Um taura e seu carma quântico” do Gilson Cunha, o entretenimento mostra sua cara. Numa espécie de episódio piloto de uma saga muito maior, Alfredo é um viajante do tempo, um protagonista marcante que participa de eventos históricos de modo muito casual e viaja em sua Kombi especial, Cremilda, que é tipo um DeLorean, meio máquina do tempo do Julio Verne, meio cabine telefônica do Bil e Ted, num esquema “eu nasci há dez mil anos atrás”, no entanto, bem menos contemplativo e com interferências significativas na jornada da humanidade. É um conto pipoca divertido e bem engendrado.

Ricardo Celestino, que já esteve por aqui, entrega uma história independente dentro do universo do Até que a brisa da manhã necrose teu sistema.  Escondido, ou melhor, atenuado sob o horror visceral do grotesco, emerge uma crítica sagaz ao capitalismo aniquilador de um futuro que já pode ser tocado. E o que você precisa saber para ingressar de cabeça nesse episódio chamado “Sobre a fé de um andante que teve a cara mastigada”? Que todo mundo é carne! Se você anda na linha, você é uma carne cidadã, com certos direitos, não tantos, com uma falsa segurança, digamos assim. Contudo, se você pisa na bola, dá mole, você vira bife, malandro. Seu horizonte inevitável é a transmutação da matéria, de corpo e mente para suculento pedaço de maminha, lagarto ou cupim distribuídos nos açougues de uma São Paulo esfomeada. Um lugar sanguinário onde protestar dívidas é um conto de fadas, enquanto mastigar sua cara para saldar os débitos é uma prática legitima. Aliás, essa é uma oportunidade ímpar para perguntar, você já considerou o vegetarianismo? Conto vencedor do Prêmio Argos de Ficção Cientifica.

“Flores de Marte” da Claudia Dugim é um grande acerto. Primeiramente em razão de sua imprevisibilidade, segundamente pela sua autenticidade e, terceiramente e não menos importante, pela sua condução desavergonhada, no melhor sentido da palavra. A história trata o sexo de forma natural, tal como deve ser. É imersivo, com formas e cores que impactam. Uma espécie de Wall-E só para adultos, como uma trilha supimpa do Marvin Gaye, do Barry White, ou do Wando, perfilada à psicodelia dos Besouros do “We all live in a yellow submarine”. Corajosamente trata de gêneros (que todo robô é um psicopata, já sabíamos graças ao Ricardo Gondim, mas qual é o seu gênero? O que ele quiser, oras!). Portanto, vamos parar de discutir o sexo dos anjos, para falarmos dos gêneros das máquinas. Afinal, as máquinas existem. Ou melhor, vamos fazer um grande acordo, com Supremo, com tudo, e deixar as pessoas e máquinas serem felizes como bem entenderem, fechou?

Daniel Borba, que não é gato e continua de pé, apresenta o seu “Reunião”. Um trágico relato destacando o que há de mais distópico e absurdo no mundo, tal qual um governo da extrema direita. Com uma linguagem rápida e teor anedótico provocante, sarcástico e necessário, o autor marca sua posição nessa antologia, lembrando que a realidade é, muitas das vezes, mais estúpida e assustadora do que a maioria das ficções.

O horror predatório da natureza está presente em “Solarys” da fera Luiz Brás. O enredo é construído ao redor de Iracema e sua missão. Na realidade, a fuga de um lugar onde flora e fauna se tornaram homicidas implacáveis. Nesse ambiente ricamente descrito, tudo evoluiu de forma hostil, criando uma atmosfera mendaz que busca absorver o que estiver dando sopa! Tem um jeitão de filme da Netflix, só que bem legal! Meu único “porém” vai para um trecho que demonstra talvez o motivo estratégico do fracasso das civilizações: “Na frente vão os adultos com os motosserras laser. Atrás vão os idosos com os sabres elétricos. No meio vão as crianças e os adolescentes com os facões de cerâmica.” Um grupamento com essa sorte de tecnologia não pode colocar um facão de argila na mão de um jovem destemido, peloamor!

Lu Ain-Zaila chega causando com seu “Seis Letras”, onde a protagonista já me ganhou no primeiro parágrafo quando surgiu com a blusa do Frantz Fanon. Na história há um encontro aparentemente fortuito, que depois se mostra parte de uma profecia reveladora, com tons de advertência, na qual estranhos insistentes fazem a personagem duvidar de sua sanidade. São duas camadas: uma voltada para a ação, e outra para simbologia e representações. Há um discurso periférico muito legal que amarra bem toda a trama. O final surpreende positivamente, embora tenha sentido falta de um “fogo nos racistas”, mas, como asseverava o ex-marido da Luciana Gimenez; you can’t always get what you want”.

E se você que chegou até aqui e estava preocupado com a falta uma história de amor em tempos do cólera e de cólera, apresento o conto mais fofo deste acervo: “Temos nosso próprio tempo” do Rubens Angelo, que cria um futuro de ruínas, um cyber-punk com uma pegada blockbuster, numa grande aventura de sobrevivência. Com uma protagonista forte e um plot inesperado. Espécie de Antes do Amanhecer no meio do caos “Insurgente”. Se você não for um velho bobão e chato tenho certeza que vai suspirar.

O derradeiro caso que fecha com tranca de diamante o “Outros Brasis da Ficção Cientifica” é o incrível “Remontagem” do Gabriel C. Correia. Preciso admitir que essa história foi uma das minhas preferidas, muito em razão dos traços de genialidade insana, que me lembrou Machadão, da violência explícita ao melhor estilo Laranja Mecânica e o nonsense harmonioso tipo Graça Infinita do David Foster Wallace, em menor escala, obviamente. Afinal é um conto, pombas! Provavelmente o melhor protagonista de todo este livro.

Para você que chegou até aqui e com muita fé chegará ao final por lá também, leia a nota da editora Bia Machado, que encarna o mecenato moderno e impulsiona a literatura como missão de vida e, talvez, faça do mundo um lugar menos distópico. Quem sabe, faça até o mais canalha dos homens renovar sua fé na humanidade. Tá bom, não é para tanto, confesso.
Sim, permaneço um grande cretino.

Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️

Em uma escala de quilotons, não tenho medo em afirmar que esse livro tem a potência para exterminar as coisas mais nocivas desse mundo; como os parques da Disney, os institutos neoliberais e o imenso ego do Luciabo Huck.

* * *

Capa do livro "Outros Brasis da Ficção Científica"Título: Outros Brasis da Ficção Científica
Autor:  Davenir Viganon
Editora:  Caligo Editora
Ano: 2021

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Rafael Sollberg
Rafael Sollberg
Rafael Gondim D`Halvor Sollberg tem nome de príncipe escandinavo, mas é plebeu latino-americano até a raiz dos ossos. Antinatural em qualquer lugar, embora nascido no Rio de Janeiro, é um sociopata com consciência social, ateu pouco convicto, escritor moderado e leitor radical. Integrante proscrito do Podcast “Esculachos Cacofônicos” e vídeo-resenhista de clássicos clandestinos da literatura nacional no Canal do Youtube: “Adorei! Nota 2.”.

4 COMENTÁRIOS

  1. Adorei! Nota 2, hehehheh! Mentira! Amei, na verdade! Li tudinho, amei e quero ler mais coisa sua por aqui, hein? Já vou salvar o link aqui. E logo fazer menção nos stories da Caligo, pode aguardar. Valeu, Rafa!

  2. Parabéns pela resenha e pela participaçãona obra, seus textos são sempre excelentes e cheios de sarcasmo e humor na doae certa! Me instigou a ler a publicação! Parabéns, nota 2!

  3. Eu sempre fico perplexa com os seus textos da rede social que Nostradamus não previu. E agora, surpreendendo um número de zero pessoas, você continua entregando tudo! Estou tentada a me afundar na desesperança do livro. Adorei, nota 10!

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