Pantokrátor

“Os homens forjaram a utopia da felicidade e depois esqueceram que era invenção.”

O futuro que sempre teve a qualidade de surpreender até aos mais ousados dos profetas se tornou previsível, nefasto, por óbvio, mas rematadamente esperável. Alguém tem dúvida que a crise climática vai produzir cada vez mais tragédias? Que a temperatura do planeta vai subir ano após ano? Que a estupidez coletiva irá eleger facínoras fundamentalistas que sonham em metralhar adversários? Vivemos no paraíso dos prestidigitadores, onde o mais idiota e obtuso dos homens pode se fazer de Nostradamus.

Assim sendo, particularmente, neste momento, acredito que escrever “distopias” é uma das tarefas mais árduas para o bom escritor. É só olhar ao redor.  A profecia vira previsão que vira realidade. Talvez ai resida a necessidade de exagerar mais na estética, ao menos para fingir que é uma ficção. Não por outra razão, considero esse livro um obra prima da Ficção Cientifica. “Por que?” você me pergunta com os olhos injetados de dúvidas razoáveis. Porque, em Pantokrátor, Ricardo Labuto Gondim conseguiu se afastar dos padrões, romper com a cartilha hollywoodiana de catástrofes e trazer algo infestado de originalidade.

Antes de mais nada, sempre bom esclarecer que apesar de dividirmos o mesmo sobrenome não guardo qualquer parentesco com o autor deste livro, não que eu saiba. Nesse espaço não há favorecimento consanguíneo, nem de nenhuma natureza, inexiste conluio, esquema de pirâmide ou compromisso com a verdade. Tudo contra o nepotismo, mas nada contra parentes talentosos, tipo Nelson Rodrigues e Mario Filho, Érico e Fernando Veríssimo, Karl, Harpo, Chico, e Groucho Marx. Caetano e Gil…. Assim sendo, hoje eu trago o livro de Ricardo Labuto Gondim – talvez um primo por determinismo literário e anseios sociais – com o seu impressionante Pantokrátor, editado pela primeira vez na Caligari (favor ler com a típica entonação italiana, ao estilo Dominic De Coco, Gorlami e Marguerete do Tenente Aldo Raine) e agora reeditado pela AVEC Editora.

Nessa obra, estamos diante de um noir clássico, redondo, ambientado num futuro quebradiço. Conduzido em primeira pessoa por Felipe Parente Pinto (Phillip Kindred Dick, sacou?), um detetive sagaz (elementar, certo?), liso, um pouco niilista, com certa erudição e vocação para entrar em enrascadas. Desenvolvido em parte por um fluxo de consciência impagável e irresistível, com um humor original  e observações bem atiladas.

Esse personagem narrador é muito bem geringonçado, na melhor acepção do conceito, Shelleyano, eu diria, em todas as suas camadas. Possui características e traços bem desenvolvidos. Uma dualidade de agir rara, gerando um tipo de pragmático espirituoso. Carrega uma ecolalia divertida e marcante, além de um carisma próprio dessa sorte de personagens.

Como não podia deixar de ser, tudo começa num ordinário caso de adultério. Sim, porque é assim que o mundo começa e termina, com ou sem serpentes. E, quando o protagonista se dá conta, já está dragado para um conspiração sem precedentes.

O cenário é a cidade do Rio de Janeiro. Para quem é carioca, a experiência de identificar os lugares é muito gostosa, além enredo, viajamos pelo Rio Antigo, o prédio da Cândido Mendes, Copacabana frenética, o Cemitério do Caju

Outro ponto de destaque é que o Ricardo abraça os conceitos, o constructo, desse gênero, pero sem abrir mão do olhar critico; usa o “neo”, termo consagrado na FC, mas não sem fazer uma leve zombaria, afirmando que “Neo é o falso prefixo de tudo que é velho”. Chupa, Partido Novo!

E ao mesmo tempo em que tem esse enredo detetivesco, com essa pegada de ficção cientifica, traz igualmente questões filosóficas preciosas e silogismos certeiros; “Se a psicopatia é a ausência de emoções, de empatia nas ações, logo toda máquina é uma psicopata por excelência.

Como todo Universo, a trama se expande e contrai como um imenso esfíncter literário, portanto, você tem a mais alta tecnologia ligada ao que há de mais primitivo, ritualístico, tal qual robôs golems, ou mitologia nórdica virtual. E, é claro, o tecnopoder autotélico, uma peça central da história, que não poderei detalhar mais por puro receio da revolta dos malditos algoritmos, com quem não tenho qualquer problema pessoal, diga-se de passagem. #paz.

@adorei.nota2 O algoritmo é incrível, fascinante e encantador. #humor #cronica #algoritmo #comedia ♬ som original – Adorei! Nota 2.

A criação de um Deus máquina, que é um fim em si, é absolutamente fantástica. Sem contar que é bem mais honesto que Esse que está ai, porque pelo menos não dissimula seus propósitos infantis e misteriosos. “Ahhh, eu sou um criador axial enigmático, me amem, não se demitam da vida. Eu escrevo certo por linhas tortas….” (Ah, me poupe, pede um caderno pautado de presente pro Papai Noel, e resolve esses problemas de insegurança criativa, filhão).

Gondim inunda sua história com inúmeras referências, que obviamente não limitam o entendimento nuclear da trama, mas trazem pequenas recompensas para o leitor mais cuidadoso. “Ovos de Páscoa” gritarão os jovens num inglês impecável e subserviente.

Além disso, leitores, o autor se recusa em estender a mão para ajudá-los na travessia caótica, noutras palavras, acredita bravamente na capacidade da turma.  Acredito que acerta em muitos momentos ao não perder muito tempo explicando ou descrevendo certas coisas; aparatos, técnicas. conceitos, que já são do senso comum, exceto, talvez, no encontro com o Mago Simão. “Quem é Simão, cara semi-pálida?” vós me perguntas. O que posso dizer que não é o Renato Aragão, ou melhor dizendo, Dr. Renato e seu fantasma trapalhão. De todo modo, LEIA. Jamais acredite em mim. Voltando 1, 2, 3 , o próprio Murakami lá no “Romancista como Vocação” adverte sabiamente; “não perca muito tempo com as coisas que o leitor já sabe”. A lua é uma lua em qualquer lugar do mundo, por que perder linhas preciosas esmiuçando suas formas? Até se for mais de uma, como no próprio 1Q84. Agora, se a lua que você inventou é verde e quadrada, ai sim cabe um descrição mais apurada. Até sob pena de dar razão ao asno rei golpista, que se bem me lembro, disse: “esses livros que são um amontoado de coisas escritas”.

Os diálogos são ágeis, não raro há o aproveitamento de falas de um personagem pelo outro. Aqui os sujeitos realmente conversam, ao contrário da maioria dos livros onde eles apenas fingem que conversam. Não obstante, há também monólogos em paralelo, dinamismo y ousadia.

Em suma, é uma peça muito divertida, na mesma medida em que é inacreditavelmente engenhosa. Cada frase é milimetricamente pensada, todo conceito racionalizado em suas mais variadas facetas, exegese para o deleite do hermenêuticos. Castel de Sabato orgulhoso de Felipe no fim do Túnel. Pantokrátor viaja alegremente do erudito ao pop em nanosegudos. Quebra alguns cristais, mas sempre com muita ternura, reverenciando os mestres do gênero,  Vejam só, estabelece até uma lei tipo Asimov “Golem não confia em Golem”. 

No fim, é como se Aldous Huxley tivesse entregado uma premissa para o Rubem Fonseca. Ou melhor, se Elmore Leonard houvesse enviado um original para o Max Barry, e esse, por sua vez, contratado Umberto Eco de escritor fantasma. Assombrado! Vislumbraram? Acho difícil. Há coisas difíceis de serem explicadas por resenhistas ou pela nossa vã filosofia.

Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️

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Título: Pantokrátor
Autor: Ricardo Labuto Gondim
Editora: AVEC Editora
Ano: 2020

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Rafael Sollberg
Rafael Sollberg
Rafael Gondim D`Halvor Sollberg tem nome de príncipe escandinavo, mas é plebeu latino-americano até a raiz dos ossos. Antinatural em qualquer lugar, embora nascido no Rio de Janeiro, é um sociopata com consciência social, ateu pouco convicto, escritor moderado e leitor radical. Integrante proscrito do Podcast “Esculachos Cacofônicos” e vídeo-resenhista de clássicos clandestinos da literatura nacional no Canal do Youtube: “Adorei! Nota 2.”.

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