Na obra de Takeshi Kitano, seja nos seus filmes de Yakuza seja em suas comédias e dramas, parece haver algo que não é dito, mas intuído. Seus protagonistas têm uma vida interior muito intensa, mas que apenas pode ser deduzida por suas ações, gestos e expressões. Sorrisos, lágrimas e arquear de sobrancelhas raramente aparecem, mas quando dão as caras parecem romper a impassibilidade desses personagens sempre fechados em si mesmos. Aparentemente eles não conseguem externar pela fala algo de muito profundo, belo, angustiante ou desesperador.
“O Mar Mais Silencioso Daquele Verão” (1991) é um exemplo perfeito disso. Os pensamentos e anseios de Shigeru (Claude Maki), o personagem principal, e sua namorada Takako (Hiroko Oshima), são quase que inacessíveis para nós, já que além de surdos, não ouvimos as suas vozes durante todo o filme — em determinado momento ela chega a falar com uma atendente de uma loja, mas pela forma como a cena é filmada, não conseguimos escutá-la. Tudo que sabemos de seus mundos interiores nos é dado pelas suas reações e interações com o externo.
cada plano — tanto nos mais longos e distanciados, quanto nos mais fechados e curtos — é dotado de um significado aparentemente muito claro, mas que de que certo modo preserva mistério próprio, algo que se conecta da alguma forma com um ciclo natural que não podemos compreender.
Já na cena de abertura do longa, descobrimos uma informação — se não a informação — essencial sobre Shigeru: ele é fascinado pelo mar. O quando, o onde e o porquê desse sentimento não sabemos, já que as imagens do filme não nos dizem nada sobre isso. Ainda assim, é justamente esse encanto que o levará a se aventurar no surf. Mas agora voltemos ao ponto anterior. nesta obra, como em outras do diretor, as imagens não parecem estar preocupadas em nos explicar, mas nos mostrar. Isso é algo interessante, a câmera —muitas vezes fixa ou que se move sempre de forma suave e sutil — em conjunto com a profundidade de campo e planos longos, muitas vezes parece estar limitada a contemplar momentos cotidianos, que parecem conter uma poesia própria. Obviamente, isso é algo muito presente não só no trabalho de Kitano, mas também na obra de outros cineastas japoneses.
Esse cotidiano ou mundano de “O Mar Mais Silencioso Daquele Verão”, se revela não só pela forma como os acontecimentos são filmados, mas também por meio de certas repetições e padrões: personagens coadjuvantes recorrentes, gags e gestos que reaparecem ao longo do filme, as recorrentes caminhadas silenciosas de Shigeru e Takako, as coletas de lixo feitas pelo mesmo junto a Takoh (Sabu Kawahara) etc. No entanto, esses momentos vão se apresentando sempre de forma diferente, seja pela mise en scène pela presença ou ausência de um ou mais personagem, ou simplesmente pequenas variações gestuais. Os detalhes parecem dotar esses momentos tão similares de sentidos diferentes.
Dessa forma, cada plano — tanto nos mais longos e distanciados, quanto nos mais fechados e curtos — é dotado de um significado aparentemente muito claro, mas que de que certo modo preserva um mistério próprio, algo que se conecta da alguma forma com um ciclo ou ordem natural que não podemos compreender. Isso está a emanar na concisão e composição dos planos, nos cortes, no ritmo que atravessa todo filme, no tempo dado para que as coisas aconteçam na cena, a quase ausência dos diálogos etc. Durante todo o longa ficamos, assim como o protagonista, fascinados por algo que não entendemos muito bem.
Essa ordem natural parece se concretizar quando, depois de ir surfar em um dia chuvoso, Shigeru desaparece. Não vemos o que acontecido de fato. O que Kitano nos permite ver é, primeiro, o protagonista fazendo o mesmo caminho de sempre em direção a praia, mas agora, um detalhe importante, ele está sozinho. Depois do corte, em vez de assistirmos o seu retorno, é Takako que surge na tela, fazendo o mesmo trajeto, no mesmo sentido e em um plano muito similar. Ela está a procura de seu namorado. No entanto, ao chegar ao seu destino, tudo que ela encontra é a praia deserta e uma prancha abandonada no mar.
Sem dúvidas, outro momento que parece sintetizar todas as escolhas formais, estéticas e temáticas no filme parecem estar na sequência do funeral simbólico realizado por Takako. Neste ritual existe — entre o não dito dos plano longo, o se deslocar da profundidade de campo e a captura do momento — algo de poético e enigmático.
Ao fim de “O Mar Mais Silencioso Daquele Verão”, embora a vida continue aparentemente indiferente à morte do protagonista. Kitano nos mostra de forma sutil como um momento de epifania de Shigeru — quando ao ver uma prancha quebrada no lixo, decide aprender a surfar por conta própria — pôde afetar, não só sua vida, mas a de outros.