Um Lugar Silencioso

Existia um mundo. Existiam pessoas emaranhadas em um concerto, existiam multidões ocupando ruas em grandes passeatas com frentes de bateria e megafones, existiam carnavais com grandes carros brilhantes e mil e uma comissões entoando o mesmo festejo. Todes nós nos amontoávamos feito formigas histéricas. Vivenciávamos um tipo de prazer em ser parte de um coro enorme e suado, de poder por alguns minutos ser menos um indivíduo, menos uma singularidade, de se fundir pra ser totalmente – inteiramente – plural, coletivo. Eu e ele não sabíamos o quanto éramos, não apenas habituades, mas afeiçoades ao barulho, à muvuca, à aglomeração. Hoje, sonhamos com o som e as cores, com as pessoas emaranhadas umas nas outras, as bocas abertas se lambendo, coxas contra coxas, gente gritando, gente uivando, e acordamos desesperados. Num sobressalto, abrimos os olhos no meio da noite, suando frio, mordendo o travesseiro para não soltar nenhum grito, nenhum soluço, chorando silenciosamente por não poder viver sonhando, profundamente submerses nessas lembranças. Flashbacks de uma outra vida, que se tornam mais e mais desfocados e disformes. Confinades, nosso único contato com esse mundo é por uma ou outra música, que ouvimos grudades no fone de ouvido, muito baixinho, para não arriscar nenhum alarde. Não podemos nem sequer trocar meia palavra sobre os sonhos ou as memórias. Apenas sabemos, pelo olhar cúmplice, que a saudade devastadora que nos acorda não poderia ser de outra coisa. Nunca fomos muito amades por ninguém, a família não foi a parte mais difícil de abandonar. Era um rompimento inevitável de relações já muito desgastadas e humilhantes. Quando demos as mãos, carregando toda nossa vida em duas enormes mochilas e algumas sacolas, ainda tínhamos esperança que fosse para iniciar uma nova e revigorante vida. Uma oportunidade única de ser cuspides pra fora do mundo que já não queríamos. Ser exilade de uma pátria que você despreza, e que despreza você, não deveria ser algo tão doloroso. Não era exatamente como se quiséssemos aquela vida. Mas, com toda certeza, não queríamos essa.

As cidades são zonas proibidas, cruzadas apenas em extrema urgência, pois são demais perigosas. Seja pelas bestas, seja pelas poucas pessoas que sobreviveram nelas sacrificando tudo que tinham de humanidades. Tivemos sorte de encontrar um terreno abandonado, com uma velha casa, no meio de enormes plantações mortas, que deveria ser um tipo de latifúndio que aos poucos apodreceu. Ninguém veio reclamar aquela terra, ou se tentaram, talvez tenham morrido no caminho. Saímos muito cedo, prevenides, apavorades. Nos matariam primeiro, se pudessem. Seríamos jogadores como voluntáries para aplacar a sede dessas novas bestas que devoravam cidades. Já nos viam como banquete pro ódio, seríamos também ratos para aquelas feras. Fugimos, enquanto o governo ainda nem tinha declarado calamidade. Ainda havia governo, ou o simulacro de um. Ao longo do tempo, conseguimos plantar alguma coisa num punhado de terra perto da casa e arrumar alguns cômodos, vedar portas, janelas. Parecia que poderíamos simular uma vida, uma normalidade. Algo que nunca nos foi dado facilmente, e que nunca desejamos tanto. Tentamos nos habituar ao silêncio, à distância, à não confiar em ninguém. Medidas preventivas. Escrevemos quando queremos conversar. Nos abraçamos e choramos muito. Mas, ainda hoje, é impossível se habituar à solidão. Ela prevalece. Mesmo juntes. Mesmo dividindo nossa cama. Eu e ele. Não podemos nem mentir que não nos sentimos terrivelmente sozinhes. Incapazes de nos sentir satisfeites, abastades, com o convívio desse matrimônio às pressas. Mal sabíamos que uma estranha benção iria nos acontecer.

Apesar de já termos conseguido desenvolver alguma rotina, as bestas ainda nos rondam. Podemos ouvi-las do lado de fora à noite, algumas vezes até mesmo durante o dia. Colam suas bocas horrendas nas janelas, grudam as orelhas nas paredes, como que verificando se há alguém. Aprendemos a manejar o susto e o pavor, sem nem respirar muito forte, contendo todo ruído. Eventualmente, elas se afastam. Sabemos que nossa quietude, nosso silêncio, não é exatamente uma fortaleza sólida. É uma proteção que pode ser rompida no menor descuido. É preciso viver quase como fantasmas, despercebides, sem ambições, sem festejos, sem alarde. Um tropeço, um copo que se quebra, um gemido, de prazer ou dor, pode ser nossa sentença de morte.

Naquele dia, pensamos que deveria ser apenas uma besta que parava diante de nossa porta. O sol já se punha, não tínhamos mais nada a fazer do lado de fora. Eu preparava cuidadosamente a janta quando percebi os dois pés na soleira da porta. Chamei discretamente a atenção do meu companheiro, peguei uma faca, ele uma velha arma e caminhamos na direção da entrada. Seja quem fosse, permaneceu muitos minutos em completa mudez do outro lado. Não podíamos ouvir nem mesmo sua respiração. Ficamos uma hora esperando que fosse embora, até percebermos a mão girando lentamente a maçaneta. Eu rezei e rezei dentro de minha cabeça. Que não fosse nosso fim, que não fosse alguém que viesse trazer o nosso fim, que não nos ameaçasse, que não nos abusasse, e acima de tudo, que não fizesse nenhum barulho.

Quando ela abriu a porta, senti sua pele arrepiar diante de nós. Os olhos arregalados. Apavorada. Segurava um papel, um pedido de abrigo, onde lia-se um pedido implorando para que não a matassem. Havia algo doce e um tanto indefeso. Tinha os braços cobertos de arranhões. Seus cabelos eram curtos e estavam imundos, assim como seu rosto. Lama e sangue seco cobriam sua pele. Mas não tinha nada de ameaçadora, muito menos carregava nenhuma arma. Como tinha conseguido chegar até nós, não sabíamos. Abaixamos as armas, fiz com as mãos um sinal pra que ela entrasse. Ela tirou delicadamente os sapatos, apoiou cuidadosa sua pequena mochila surrada no chão. Ela se movia graciosa e delicada, atenta a cada passo. Trocamos mensagens enquanto dividimos a janta. Eu mantive a faca por perto, por precaução. Era estranho, depois de tanto tempo, estar com outra pessoa. Em algum lugar, pedi muito que ela fosse gentil, que fosse boa, que permanecesse. Tinha algo, ao mesmo tempo apavorante e por outro lado tão esperançoso na presença dela ali. Estar com outra pessoa, na nossa intimidade, em nossa casa. Ofereci de preparar um banho, na banheira dos fundos. Passei os procedimentos que usávamos, lhe entreguei toalhas limpas. Pude ver as lágrimas escorrendo no seu rosto. Tem mulher que vive o diabo, a gente sabe bem. E a história toda, era bem crível. Dos homens que enlouqueceram no confinamento e fizeram miséria de suas esposas. Como se o mundo já não fosse miserável o suficiente. E era menos perigoso vagar entre bestas, do que dormir com ele. E nós só soubemos nos compadecer e nos afeiçoar a ela, ainda que um tanto receoses. E ela não parecia ter nada por nós além de uma profunda gratidão.

Ao sair do banho é que nos demos conta, eu e ele, da beleza dela. Por baixo da lama e do sangue, encontramos agora uma mulher radiante. Saiu com roupas limpas, segurando uma garrafa de vinho nas mãos. Como um artefato precisos. Não víamos uma mulher tão linda há muito tempo, assim como não víamos uma garrafa de vinho há milênios. Primeiro, sentíamos como uma fascinação inocente de crianças admirando um personagem de desenho. Quando sentamos no sofá, ela nos ofereceu a garrafa como presente pela acolhida. Ali, sentada, perto de nós é que percebemos, realmente. As bochechas redondas, os pequenos olhos castanhos, os peitos fartos contra a nova – agora limpa- camisa. Nos sentimos constrangides, parecia um tipo de perversão, olhá-la daquele jeito. Depois de recebê-la tão machucada e vulnerável, parecia um tanto abusivo que nos excitasse tanto o semblante dela. Nos convencemos que deveria ser a longuíssima ausência de outra pessoa no nosso convívio. Nada que devêssemos dar muita atenção. Por pudor, e por termos ainda alguma desconfiança, guardamos o vinho para algum outro momento. Queríamos dizer para que fossemos dormir, mas a excitação e ansiedade daquele novo e tão inesperado encontro impedia qualquer iniciativa de se retirar. Ninguém, de nós três, foi capaz de evitar o desejo de ficar naquele frenesi por mais tempo. Apenas sentades no sofá, escrevendo incessantemente coisas uns para os outres. Rindo silenciosamente. Querendo dividir sobre a vida, as poucas memórias do mundo anterior a esse, das paixões, das multidões, dos empregos, dos sonhos. Nos inflamamos, os olhos brilhando, incandescentes, por poder dividir a saudade por aquele falecido mundo. Um tipo novo de intimidade crescia, pela cumplicidade de ter visto nossa vida ser sepultada de forma tão seca, de ter sobrevivido em tempos sombrios e dolorosos. Imaginávamos como seria se nos encontrássemos em outras circunstâncias, como deveriam soar nossas risadas, se ouviríamos música, se dançaríamos, se encheríamos a cara.

Alta noite já se ia, o escuro rodeava a casa e nós nos rodeamos de velas para iluminar nosso entorno na pequena sala. Não percebi ao certo quando paramos de nos escrever e passamos a ficar apenas nos olhando. Confortáveis em estar unicamente presentes. Foi então que ela, lentamente, se aproximou de nós. Parou diante do pequeno sofá e com movimentos delicados, nos tocou pela primeira vez segurando – em cada mão – uma de nossas mãos. Meu coração acelerou. Minha pele ficou quente. Ela tão próxima agora, sua mão colada na minha, na dele. Eu e ele trocamos olhares, cúmplices. Completamente seduzides por aquela mulher em nossa sala, agarrada à nós. Ela sorria. Devia saber. Podia sentir. Minhas palmas, com certeza, estavam suando. Ela se sentou entre eu e ele, nos apertando no sofá. Suas coxas tocando nas nossas. Eu quase nem consegui respirar de tão excitade. O corpo dela tocava a lateral do meu. Há muito tempo eu não ficava com uma mulher. E justo aquela mulher, com sua aparição misteriosa em nossa porta. Como uma oferta de passado, de chegar perto do que um tivemos. Queríamos ter cautela, preservar algum decoro, mas estávamos quase petrificades com a desenvoltura dela. Eu não podia acreditar naquilo que estava prestes a acontecer. No meio de todo o terror lá fora, de tanto medo, aquela oferta irrecusável. A intimidade, o prazer. Assim tão inusitado e tão provocativo. Como costumam ser as melhores ofertas. Ainda que com um risco alto para todes nós.

Ela beijou nossas mãos, delicada. Em seguida, acariciou o meu rosto e passou as mãos pelo cabelo dele. Ele se desvencilhou e nos escreveu: “Não podemos arriscar nenhum barulho”. Eu e ela concordamos com a cabeça. Ele tornou pra perto. Ela beijou minha boca. Seus lábios contra os meus, nossas línguas. Beijá-la era como ser transportade para outro lugar. Eu estava molhade. Nos beijamos suavemente. Senti minha língua em sua boca. Só quando ela se afastou, cogitei se ele teria ciúmes. Mas a forma com que ele nos olhava denunciava que estava se deliciando. Ela então o beijou também. Eu pude vê-los, grudados, as bocas coladas. Seus corpos próximos. Salivei. Eu o entendia. Estava além de qualquer ciúmes, era a chance única de nos sentir parte de algo. Algo maior. Algo menos solitário para nós três. Tentamos um beijo triplo, sem muito sucesso ou maestria. Batendo cabeças e dentes um contra o outro, desengonçades. Mas entre sorrisos, prosseguimos. Cada passo, uma nova cautela. Levantamos e tiramos as roupas, com serenidade. Deixando peça por peça repousar com parcimônia sobre o chão. O corpo dele se revelou pra ela primeiro. Nu, ele era estonteante. Seu pau grosso e duro diante de nós. Ela se revelou em seguida. Tinha uma longa cicatriz abaixo dos fartos peitos, sua barriga tinha pequenas marcas e abaixo víamos sua linda e carnuda buceta. Os dois lado a lado, eram algo completamente alucinante. Eu os segui, revelando também minha nudez. Pude sentir seus olhares sedentos, apaixonados. Nunca tinha experienciado tamanha sintonia. Nós nos movíamos como se cada gesto fosse coreografado para harmonia perfeita do silêncio. Eu peguei um punhado de toalhas, que esticamos pelo chão para garantir ainda menos ruído. Apesar da ansiedade, palpitando em meu peito, a situação demandava um enorme controle. Afinal qualquer descuido, um barulhinho sequer, poderia custar nossas vidas. Mas o tesão entre nós era tamanho, que não conseguimos resistir. Eu o beijei, como não nos beijávamos fazia muito tempo. Senti ela me abraçar por trás e percebi que ela começou a se masturbar. Os dedos em seu clitóris, subindo e descendo. Enquanto a boca dele roçava na minha, sentia a boca dela em minhas costas, eu bem no meio, podendo sentir o pau duro dele em minha frente e a buceta dela roçando por trás da minha perna. Eu me deitei no chão sobre as toalhas, até agora tudo sob o controle. Ele foi beijando meu peito, descendo por minha barriga. Via seu rosto através da penumbra, enfiado entre as minhas pernas. Ele começou soprando devagar, meus pentelhos arrepiaram. Em seguida, se lançou me chupar. Minhas pernas tremiam, ele as imobilizou firme com suas mãos. Eu respirava pesado, quando ela introduziu o dedo indicador e o médio em minha boca, ainda molhados da buceta dela. Seu gosto azedo na minha língua. Os chupei, da ponta até talo. Sem demora, ela os tirou, sentando sua xota em minha cara. Eu queria gemer. Melhor era manter minha boca ocupada. Lambi seus lábios, quanto mais úmida e quente ela ficava, mais me aproximava do clitóris. Ela acima de mim, suada, os peitos balançando. Dava gosto. Eu quase me esquecia das bestas, das cidades, da dor. Ele parou de me chupar para olhá-la rebolando contra meu rosto. Ao percebê-lo, ela rebolou mais forte. Ele subiu por cima de mim, abriu a boca e passou a língua pela cicatriz abaixo dos peitos dela. Ela estremeceu, mordendo os lábios. Ele colocou o peito dela em sua boca. Eu continuei a chupar seu clitóris, mas agora bem devagar e com uma das minhas mãos, segurei o pau dele, subindo e descendo. Nossas respirações ficavam cada vez mais fortes. Vimos ela tapar a boca com a mão. Paramos. Assustades.

Ela respirou fundo, sentando-se ao meu lado. Ele tornou pra mim, abriu novamente minhas pernas, metendo fundo. Senti seu pau me penetrar. Ela acariciando meu cabelo, depois beijando minha cara. Devagar. Ele metendo fundo, com calma, sereno. Fechei meus olhos. Era como um sonho. Cores vibrantes tomando minha cabeça, frentes de bateria soando, um coro cantando, um festejo em meu peito. Ele meteu mais rápido, ela o beijando na boca, a mão dele em seu peito, ela me beijando na boca, a bunda dela em cima de mim, ele metendo mais e mais, a mão dele enfiada na buceta dela, flashes passando, rápidos, intensos, como um filme. Como se fôssemos levades, arrastades pra dentro e dentro uns de outres. Transportades, pra um lugar quente e seguro. Eu vou gozar, pensei. Eu estava quase. Eu gemi. Foi curto e rápido. Um gemido baixo, entre dentes. Mas ainda sim um gemido. E depois novamente o silêncio. A adrenalina subiu. Pensei que iria enfartar, os olhos arregalados. Um brutal silêncio. Ninguém veio. Ele não parou. Ela ficou de quatro por cima de mim, eu podia chupar seus peitos enquanto ele metia nela. Eu podia ver os dois, chupava o mamilo dela, beijava seu pescoço, sua boca. Parecia um ato de bravura, seguir, não interromper, permanecer até o orgasmo. Ele penetrava ela cada vez mais forte, via ela se mordendo. Dei minha mão para abafar seu som. Ela mordeu tão forte, pensei que iria arrancar um pedaço. Eu podia sentir, iam gozar. Era como se brilhássemos, como se acendêssemos o cômodo. Iam gozar agora. E soltaram, fraco, talvez ainda mais fraco que o meu, um som, nem podia ser um gemido, algo como uma arfada ou um grunhido. O pavor tornou. Ouvimos ruídos do lado de fora. Nos erguemos. Os corpos nus. Em seguida, o barulho da porta abrindo, violentamente. A besta no corredor. Demos as mãos. A besta entrou na sala. Nos abraçamos. A besta diante de nós. Fechamos os olhos.

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Ilustradora:

Camila Albuquerque

Camila Albuquerque é artista, mulher, LGBT e nordestina. Ela trabalha com diferentes linguagens, especialmente com a Pintura a Óleo e o Grafite, onde aborda temáticas do sagrado feminino, Erotismo e do Folclore. seu trabalho dá um enfoque cada vez maior na Brasilidade, na experiência pessoal que se liga ao universal, através de suas pinturas sob um novo olhar do prazer.

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Julia Limp
Julia Limp
É artista multifacetada. Tem casa no teatro, onde está em formação, mas já trabalha profissionalmente precocemente como atriz e diretora. Tem quintal na música, onde canta, compõe e tem algumas coisas já gravadas e crescendo em direção ao mundo. Mas fez cama na palavra, com quem se deita e tece prosa, cada vez mais perigosa e úmida. É muito surto e muito afeto, trabalha com muito tesão e às vezes com raiva. Pode morder, mas esperamos que só de sacanagem.

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