Se o protagonista de Martin (1977), de George A. Romero, é um vampiro ou apenas um assassino serial, a mim, parece uma questão de “fé” de quem assiste ao filme. Aliás, a fé cega e fanática é o principal alvo deste longa, realizado por um diretor já conhecido por se utilizar do gênero do horror como meio para analisar e criticar a sociedade norte-americana (recomendo três textos sobre o tema, esse, esse e este).
Neste filme, Romero, assim como fez com os zumbis, desmistifica a figura do vampiro. Para quem não sabe, o diretor foi um dos primeiros — senão o primeiro — a dissociar os mortos-vivos da “magia”, mais especificamente, do Vodu (geralmente associado no cinema de forma pejorativa à magia negra). Já em “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), seu longa de estreia, a origem das criaturas está muito mais próxima do universo da ficção científica do que do horror. Mas é em seu filme setentista, que o diretor realiza um processo de desconstrução muito mais radical.
Assim, Martin de George A. Romero parece estar em sintonia com as transformações sofrida pelo gênero em sua época, em que uma antiga forma de abordar o horror dá lugar a uma nova. Nessa leva de filmes podemos observar algumas características em comuns: a desmistificação das criaturas, as mudanças da “natureza” do mal, abordagens mais “realistas”, uma maior dificuldade em diferenciar “heróis” e monstros etc.
A condição do protagonista não está necessariamente ligada ao sobrenatural, mas a fatores muito mais mundanos. O vampirismo aqui ainda é tratado como uma doença, mas não de origem “fisiológica” ou mística, mas sim psicológica e social. No entanto, essa abordagem não exclui totalmente os elementos da mitologia dos vampiros, mas apenas os utiliza de outras formas, transformando ou potencializando alguns de seus “sentidos”. Por exemplo, o subtexto sexual muito ligado a representação dessas criaturas.
Tanto nas telas, quanto em outras formas de arte, o ato de sugar o sangue de suas vítimas está ligado a um ato de violência sexual, algo agravado quando levamos em conta a capacidade de encantar ou hipnotizar que esses seres folclóricos são dotados. No contexto do filme este ritual não é só desmitificado, como apresentado de forma crua, violenta e “desglamourizada”. Em Martin o desejo por sangue está estritamente ligado a uma pulsão, a um vício que se materializam em atos de violência.
Mas como dito anteriormente, a fé cega e o fanatismo são questões centrais na obra. Longe de isentar Martin dos seus atos, Romero nos dá um vislumbre do contexto no qual o protagonista cresceu. Em sua família há a crença, passada de geração em geração, de que alguns seus membros são amaldiçoados e, por isso, são uma vergonha e um martírio que todo o clã deve suportar. No entanto, esta maldição nunca é de fato comprovada. Pelo contrário, tudo o que “classicamente” é utilizado como forma de se defender contra criaturas da noite — crucifixos, alho e, até mesmo, exorcismo — são completamente inúteis. Mas, mesmo contra todas as evidências, o rapaz ainda é visto pelos membros mais velhos da família como uma aberração sobrenatural, ao ponto do próprio Martin acreditar ser um vampiro de 86 anos.
Tudo o que temos para corroborar essa versão são “flashbacks”, que não por consciência são filmados em preto e branco e de forma muito mais “conservadora” do que o restante do filme. Mas essa clara “incompatibilidade” com o todo parece apenas colocar em xeque a veracidade do que vemos. Isso ou teríamos que concluir que Romero fez essas escolhas unicamente para um propósito estético? O que não me parece ser o caso.
Aliás, aqui temos um ponto. Se observarmos com atenção, podemos notar que no cerne do filme há um conflito de gerações. O exemplo mais óbvio é o conflito entre Martin e seu primo Cuda (Lincoln Maazel). Mas na mesma medida, há uma oposição entre este e sua neta, Christina (Christine Forrest), que não só não acredita na maldição, como é a única que de fato deixa para trás um lar, uma cidade e uma realidade um tanto castradora. Cada um dos dois jovens encontra uma forma de se rebelar contra a obtusidade e atraso da crença cega, personificada em Cuda: ele escolhe dar vasão a impulsos primitivos e destrutivos, se contentando a encenar o papel ao qual lhe impuseram; enquanto ela deixa aquele mundo para trás em busca um caminho próprio e independente.
Este último parece de certa forma refletir a trajetória do diretor, mas não quero ir tão longe. Quero dizer que essa oposição entre o antigo e o novo se encontra refletida também no filme em si, em sua forma, visual e direção. Podemos ver isso nos movimentos e enquadramentos da câmera, na montagem, na decupagem, no uso do preto e branco e da cor, na caracterização dos personagens etc. tudo neste longa parece estar ora em sintonia ora em desacordo com uma forma mais “tradicional” de filmar o horror. Por exemplo, a cena em que Martin, fantasiado como Drácula, assusta seu primo. Tudo nela, desde do figurino até a forma de filmar, remetem aos filmes do Drácula (1958) da Hammer, onde o personagem ficou imortalizado na figura de Christopher Lee.
Martin fantasiado como Drácula:
Trailer de “Drácula” de Terence Fisher e produzido pela Hammer:
Devido a esta dualidade, ao assistir Martin, muitos filmes de diferentes tradições e períodos do terror podem espreitar sua mente. Desde filmes contemporâneos e conterrâneos deste como o “O Massacre da Serra Elétrica” (1974) de Tobe Hooper; passando por representantes europeus como alguns filmes de Mario Bava ou de um Lucio Fulci, até obras mais antigas como o “Drácula” (1931) de Tod Browning e, por que não, “Nosferatu” (1922) de Murnau. Afinal, muitos filmes do gênero são referenciados na obra.
Assim, Martin de George A. Romero parece estar em sintonia com as transformações sofrida pelo gênero em sua época, em que uma antiga forma de abordar o horror dá lugar a uma nova. Nessa leva de filmes podemos observar algumas características em comuns: a desmistificação das criaturas, as mudanças da “natureza” do mal, abordagens mais “realistas”, uma maior dificuldade em diferenciar “heróis” e monstros etc. Esta forma de encarar o terror me parece atravessar a década de 70 e 80, resistido aos anos 90 e chegando com menos força em nossos dias. Mas isso é apenas uma especulação que talvez valha a pena ser abordada em um texto futuro. No mais, assistam está obra perturbadora, que muito tem a nos revelar por meio de imagens e sons.
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