Se eu quiser trocar de emprego hoje, tenho que mudar o status em 3 redes sociais. E em nenhum órgão do governo. Ninguém regula (além do algoritmo). A carteira de trabalho agora é peça de museu, disposta ao lado da televisão de tubo e dos Tamagochis.
A modernidade tinha tudo para dar certo: remédios, internet, ar condicionado portátil. Enquanto o esforçado Homo Sapiens lutava para capturar seus mamutes, nossa mais enfadonha missão de sobrevivência da espécie é esperar os 40 minutos do iFood. E olha que não é difícil caçar lasanhas na sessão de congelados do supermercado, elas são mais dóceis que os mamutes. Não tem pintura rupestre que supere um delivery.
Os cavernosos antepassados devem rolar em seus fósseis. Principalmente quando veem que eles tiveram todo o trabalho de inventar a roda para, anos mais tarde, o cidadão comprar um carro e ir para a rua cantar pneu. Que, para quem não sabe, é aquela prática de acelerar o carro com ele parado, a fim de produzir nada mais que um som alto e ruidoso.
Não é louco pensar que a física se desenvolveu, passou por Isaac Newton, Einstein, Stephen Hawking e chegou até o ponto em que cantar pneu virou moda? E a rinha de galo então? A biologia passou milhões e milhões de anos evoluindo, cuidando de cada detalhe de cada animal. Até chegar ao ponto de ser possível organizarem brigas de pobres (e musculosos) galos, que só queriam um poleiro bonito para chamar de seu.
A Mãe Gaia passou seus aproximadamente 14 bilhões de anos preparando o terreno. Mas era impossível ela prever que toda uma geração seria criada pelo Pânico na TV e pelos filmes do American Pie. Muito menos que os Tik Tokers virariam tão poderosos. Suspeito que ela tampouco previa que a Amazônia fosse virar menos valiosa que a Amazon.
Não que eu culpe a saga de filmes dos amigos que queriam transar com o máximo de mulheres possíveis pelo Armagedon que se aproxima. Muito menos o programa de “humor” dominical. Eles não são tão poderosos. Mas não tenho dúvidas de que positivo o impacto não foi. Depois de tantas piadas com assédio, não é de se estranhar o país ter 1 estupro a cada 8 minutos.
Não sei se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida, mas sei que, se forem muitas imitações, vira moda. É o famoso de grão em grão. Mas, ao invés de galinha enchendo o papo, é o mundo sendo enchido de sopapo. Ou você acha que ele não sente dor quando um tweet do Trump é mais poderoso que um artigo científico?
Pode até parecer que não, que o caos contemporâneo já fez com que o mundo se acostumasse à dor infligida pela humanidade, por cada vez mais tweets estarem superando a ciência. Ou então pelos sucessivos golpes de estado financiados por empresários estadunidenses de olho nos recursos naturais de países como a Bolívia. Mas, menos dia, mais dia, a galinha enche o bico — e a conta chega.
Já está chegando, na verdade. Já passou da hora de olhar para trás, ver onde erramos enquanto civilização e entender que o homem não é o lobo do homem. O homem é o lobo da Terra. Talvez o erro tenha sido na hora que inventamos a roda. O mundo com certeza estaria melhor sem os pneus cantando.
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