​​Quem diabos é Foster Kane?

Cidadão Kane e a não definição de um personagem

“Cidadão Kane” (1941) de Orson Welles é um clássico, não há muito o que se discutir quanto a isso, sem dúvidas é um filme que representa um momento de ruptura para a sétima arte, um dos muitos caminhos sem volta que, em algum momento, todas as expressões artísticas são forçadas a tomar. O filme já foi objeto de muitas análises, textos críticos e estudos acadêmicos; por isso, adoto uma outra estratégia, deixo aqui algo mais descompromissado, apenas devaneios e pensamentos dispersos. Sem dúvida, isso afastará muitos potenciais leitores, mas isso não me desanima, muito pelo contrário. Em que outras condições me sentiria livre para escrever tais bobagens sobre um filme que tantas coisas inteligentes já foram ditas.

Começo, então, esse texto tentando responder a seguinte pergunta: sobre o que é “Cidadão Kane”? Instintivamente, alguns poderiam responder “a busca de um jornalista para descobrir o significado da última palavra de Charles Kane: ‘Rosebud’”. Outros, mais prudentes poderiam responder “é um estudo de personagem”, mas que personagem? Nunca de fato vemos Kane por completo, mas apenas seu espectro, seu fantasma. Sganzerla em seu texto “Becos Sem Saída” cita o personagem como um “percursor e também protótipo” do que ele chama de herói fechado, que sempre se mostra indefinido, um mistério ao público. Como o próprio cineasta e crítico escreve:

Um repórter, incumbido de descobrir seu significado [“Rosebud”], entrevista os contemporâneos de Kane, mas nem estes personagens conseguem defini-lo. A crise interior do personagem está ligada a palavra, percebe-se claramente que há uma crise profunda. Mas esta é inacessível, impenetrável: sabe-se de sua existência, mas não de sua essência.

No texto — que vale muito a pena ser lido — ele prossegue escrevendo sobre o filme (e outros) e como ele traz inovações próprias do cinema moderno, mas a questão aqui é outra: a verdade é que nunca vemos Kane de forma “objetiva”, tal como ele é (o tanto que isso é possível dentro de um universo ficcional), mas apenas sua representação subjetiva. Apenas temos um vislumbre do “verdadeiro” Charles Kane na famosa sequencia inicial, onde em seu leito de morte ele pronunciará sua última palavra. Mesmo nesse momento, a sua imagem é fragmentada, não o vemos como um indivíduo completo, ele é decomposto em planos: sua mão, sua boca e sua silhueta. Depois disso, vemos Kane sempre sobre os olhos dos outros, seja na pequena peça jornalística sobre sua vida, seja nas lembranças daqueles que foram próximos a ele. Tudo que restou dele são projeções e ficionalizações, em uma obra que por si só já é uma projeção e uma ficção. É tudo um jogo de espelhos, como aquele que ocorre mais ao fim do filme.

Cidadão Kane tem muito da aura de pesadelo do Expressionismo e do filme noir. A iluminação, os cenários, os ângulos inclinados, tudo parece abalar a fidelidade do relato.

Kane parece ser uma representação do que é ser um indivíduo, ele é um mistério para todos além dele mesmo (alguns diriam que somos incompreensíveis até para nós mesmos). Assim como ele, nós somos um quebra-cabeça, uma cidade de experiências e memórias (representada, por exemplo, pela panorâmica sobre o espólio deixado por Kane, no final do longa). Tudo no filme, indica não só a limitações de entender um indivíduo em sua totalidade, mas nos lembra que estamos condenados ver o mundo segundo nossos próprios olhos. Por isso, no fim, viveremos de forma imprecisa nas memórias e projeções dos outros. 

Essa oposição entre memória e real, entre acontecimentos e suas interpretações, pode ser observada em muitos aspectos formais do filme. Os longos planos parecem querer capturar os acontecimentos tal como ocorrem, em sua duração e nas ações e movimentos que o compõem (o realismo de Bazin); mas a forma como alguns planos são filmados — os ângulos de câmera e uso de lentes que deformam a imagem — dão um toque de irrealidade. “Cidadão Kane” tem muito da aura de pesadelo do Expressionismo e do filme noir: a iluminação, os cenários, os ângulos inclinados, tudo parece abalar a fidelidade do relato. 

A Face de Kane
A face de Kane é ocultada pelo jogo de luz e sombras criado por Gregg Toland.

Outro ponto curioso é o uso quase excessivo da fusão, que muitas vezes parece reproduzir a lógica do rememorar/relembrar algo, onde uma imagem mental (memória) parece se dissolver em outra. Mas, neste filme, essa dissolução de uma imagem em outra, pode corresponder a algo para além disso. Parece representar a própria natureza do tempo como a experienciamos no dia a dia, um momento cede lugar ao outro e, quando nos damos conta, se passaram anos. E assim o tempo passa e decompõem as coisas. O antigo cede lugar ao mais novo, mas há sempre uma novidade adiante. 

Isso é um ponto fundamental, que parece dar uma pista não de quem é Kane, mas o que ele busca. Kane busca ser ele próprio o novo (o futuro) e, para tanto, busca um novo território inexplorado que ele possa moldar segundo a sua vontade. Primeiro o mundo, depois o seu país, a vida de sua segunda esposa e, por fim, a sua realidade. Com o jornal, ele mudaria o mundo; como presidente, o país e como mecenas, a vida de sua segunda esposa. Sem conseguir nada disso, criou seu próprio mundo de sonhos, criou Xanadu. Porém o lugar lembra mais um pesadelo, pois é sombria e solitária. 

The End
O último plano antes dos créditos finais, ao longe se pode vislumbrar Xanadu.

O tempo somado as suas decisões, apenas trouxeram o fracasso a Kane; sem mais escolha, ele se volta ao passado, não há mais para onde ir, ele não pode moldar o presente, mas pode idealizar o passado: o paraíso perdido preso em um globo de neve e representado por um trenó. A nostalgia é seu refúgio final, a memória o único lugar onde ele pode recriar os fatos segundo a sua vontade, tal como ele tentara com o seu jornal. De certa forma, esse desejo de moldar o mundo pode se relacionar com a própria tarefa que Orson Welles se impôs (ser diretor). Isso é notado por André Bazin em seu livro sobre Welles, onde são apontadas algumas relações entre a vida e obra do cineasta (pelo menos parte dela, já que o crítico faleceu em 1958).

 contra-plongées
Um dos muitos contra-plongées presentes no filme.

Mas esse filme, como qualquer outra obra de arte, tem uma outra dimensão, um aspecto para além da pessoa que o criou ou de sua biografia. No caso deste filme, o “para além” parece ser a busca pela essência do que é ser “humano”. Arrisco dizer ainda que há algo mais do que essa indefinição do ser, o filme parece servir como uma ilustração a essência da arte (o Cinema incluso). A arte, tal como o repórter do filme, busca algo (a essência do ser humano?), mas essa busca está sempre condenada ao inconcluso. No entanto, essa indefinição não torna o fazer artístico um gesto inútil, apenas reflete — mais do que qualquer outra atividade humana — a própria condição humana: o buscar eterno por si. De certa forma, esse é um aspecto que parece faltar em muitos filmes atuais (talvez na arte em geral): o buscar algo. E assim concluo o texto, sem confiança na clareza das ideias expressas e em contradições com os pensamentos que tive ontem e os que me ocorrerão amanhã.

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José Luiz
José Luiz
Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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