Minha mãe me criou com uma liberdade que incomodava as outras mães da escola. Para ela, estava tudo bem se eu virasse a noite jogando Mario Kart no vídeo game ou se só voltasse das festas na mesma hora que o entregador de pães saía para trabalhar. Mesmo sendo exigente com boletins e aprovações no vestibular, ela não foi o tipo de mãe que regula a quantidade de tempo que os filhos ficam na frente da tv e os obriga a fazer atividades ao ar livre. A liberdade era boa. Assistir Pokemon às 22:30h era melhor ainda.
Ela dizia que estava me criando para o mundo e, quando a questionavam sobre como ela me via no futuro, aquela loira com pouco mais de 1,50m e 300ml em cada peito afirmava categoricamente: independente. E ela não errou (nem na previsão, nem no silicone). Mudei de casa ao dezessete e, mesmo morrendo de medo do mundão louco lá fora, topei encarar a desgastante vida de universitário.
Me joguei de cabeça no Rio de Janeiro, mais especificamente em Copacabana. Aquele bairro onde os prédios são pregados um ao outro e a faixa etária deve passar os cem anos – em nenhum outro lugar você encontra supermercados e bancos com fila preferencial tão disputadas. Mas um fato muito curioso que reparei morando lá é a respeito da entrada desses vários prédios colados. Aliás, de quem fica nessa entrada: o famoso, temido e incompreendido porteiro.
Em nenhum dos apartamentos que morei em Copacabana (acredite, não foram poucos) posso falar que conheci um porteiro de bem com a vida. Principalmente os da noite. Esse grupo de trabalhadores noturnos, mais cedo ou mais tarde, acabava me vendo como o inimigo número um deles. Uma Cuba dos Estados Unidos deles. Uma Dilma da Isto É.
Provavelmente por nunca ter tido hora de ir dormir e ter sido acostumado com a vida noturna, fosse em bar ou boates, o meu horário de chegar em casa nunca foi um dos mais cedo. A diferença é que minha mãe abria a porta tranquilamente quando eu chegava em casa. Já os porteiros… Esses prefeririam me deixar refletindo sobre a vida sob o luar carioca.
Aquele deus grego Morfeu deve sentir uma certa raiva de mim por ter tirado vários deles de seus braços. Não tenho dedos para contar quantas vezes acordei esses pobres funcionários. Mas, consigo facilmente enumerar as vezes que eles sorriram pra mim ou responderam meu “boa noite”: é o mesmo número de vezes que o Brasil ganhou ouro no futebol olímpico antes de 2016. Vez ou outra alguns até balbuciavam qualquer som, mas tenho certeza que estava longe de ser uma recepção amigável.
Dá um pouco de dó pensar que eles não tem culpa da monotonia que deve ser a profissão deles. É uma questão complicada pensar que: eles não têm prazer no trabalho e, por ganharem mal, também não têm dinheiro para conseguir prazer fora dele. Talvez eles durmam tanto para sonhar com um cotidiano minimamente tragável. Mal sabia minha mãe que ao invés de “independente”, quando perguntavam o que eu seria daqui alguns anos, a melhor resposta seria “o pesadelo dos porteiros”, literalmente.
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Ilustradora convidada:
Júlia Pissolato
Me chamo Júlia Pissolato, mas pode me chamar de Pissô. Sou estudante de artes pela UFMG e atualmente trabalho com ilustração, digital e tradicional, além de pesquisas na área da abstração. A cor é o pilar principal do meu trabalho e acredito que é a forma mais pura de expressão. Tento colocar em todos os meus processos um pouquinho de mim, trazendo um lado íntimo e único para cada obra.