Takeshi Kitano: a morte como fuga e a fuga como morte

Divagações sobre os filmes "Policial Violento", "Sonatine" e o cinema de Takeshi Kitano

“Seria melhor estar morto do que assustado o tempo todo.”

A fala acima é dita em “Sonatine” (1993) por Murakawa (interpretado por Takeshi Kitano, também diretor e roteirista do filme) à Miyuki (Aya Kokumai), em um momento de tranquilidade antes da tempestade. Ela reflete não só a essência do longa, mas também a de “Policial Violento” (1989), assim, como grande parte da obra de Kitano. Mas afinal, o que a frase pode significar? Aqui adentramos em um terreno pantanoso, onde as linhas entre especulações fundamentadas e interpretações delirantes se aproximam perigosamente. Porém, não há para onde fugir, já que foi esta provocação que me impulsionou a revistar o universo do diretor.

Mas voltemos ao cerne da questão: o que tem de tão essencial nesta fala? Talvez ela expresse algo como “melhor estar morte do que viver uma meia vida”. Por exemplo, No filme “O Mar Mais Silencioso Daquele Verão” (filme de 1991, já abordado neste texto), Shigeru (Claude Maki) é um jovem lixeiro que encontra um sentido para sua vida no surf e na imensidão do mar — o mesmo mar que lhe serve de morada final.

Azuma e Murakawa parecem suportar uma sensação constante de tédio e cansaço. Um mal-estar de estarem levando uma vida tão decadente e brutal. Isso se reflete na maneira quase maquinal com que os personagens agem, não há lugar para emoções nem para a reflexão, apenas para a violência. Ao se darem conta da sua condição, os dois dão vazão a seus impulsos que os levam à aniquilação — seja por suas próprias mãos ou pelas de outros.

Aliás, o mar e, consequentemente, a praia estão muito presentes na filmografia de Kitano, ora como um plano de fundo, ora como um local de liberdade e felicidade — ainda que momentâneas. Em “Sonatine”, por exemplo, é em uma casa na praia — um esconderijo contra inimigos desconhecidos — que um grupo de yakuzas conseguem dar vazão a suas emoções e, parecem de fato, ter um lampejo de vida. Na verdade, como já foi mencionado neste texto de Ruy Gardnier, é neste local que ocorre um retorno a infância e as brincadeiras infantis por parte dos personagens, mesmo que estas sempre estejam associadas à morte ou autodestruição. Como o texto salienta há, assim, uma oposição bem nítida entre cidade (o mundo violento da Yakuza) e a tranquilidade aparente oferecida pelo beira-mar.

Cena do filme Sonatine. Quatro pessoas, três homens e uma mulher caminham em uma praia.
Takeshi Kitano, Aya Kokumai, Susumu Terajima e Masanobu Katsumura em uma cena de Sonatine

Eis aí um ponto, este movimento de de ir de A para B é uma constante na obra do diretor. No ato de evadir-se e de afastar-se está contida a ideia da fuga de uma realidade opressiva, ameaçadora ou simplesmente tediosa. Esta podendo se manifestar em várias formas, seja no cotidiano em uma empresa de coleta de lixo em “O Mar Mais Silencioso Daquele Verão”, seja no mundo da Yakuza em “Sonatine” e em “Policial Violente” — filme em que Kitano interpreta Azuma, um policial truculento que transita constantemente entre a legalidade e ilegalidade.

No poster Kitano veste um terno e tem o olhar sério
Pôster de Policial Violento
Poster contendo um peixe espetado em um arpão, no fundo um céu avermelhado
Pôster de Sonatine

Apesar dos três filmes mencionados trabalharem com uma sensação de desconforto em relação a existência — um certo spleen baudelairiano, em seus protagonistas —, é nos dois filmes de Yakuza do diretor que este sentimento se manifesta de forma mais intensa e cruel. Azuma e Murakawa parecem suportar uma sensação constante de tédio e cansaço. Um mal-estar de estarem levando uma vida tão decadente e brutal. Isso se reflete na maneira quase maquinal com que os personagens agem, não há lugar para emoções nem para a reflexão, apenas para a violência. Ao se darem conta da sua condição, os dois dão vazão a seus impulsos que os levam à aniquilação — seja por suas próprias mãos ou pelas de outros. Assim, ao perceberem que não poderão levar uma vida plena e livre do medo, eles se lançam a um último ato de de vingança contra aquele mundo que os aprisionou. A realidade em que viviam os embruteceu e os levou ao colapso.

Sequência final de “Sonatine” em que ocorre a autodestruição de Murakawa

Isso me leva a um terceiro ponto, em “Policial Violento” e “Sonatine”, há uma contraposição entre gerações — inclusive, esta característica do cinema de Takeshi Kitano é levantada neste texto de João Araújo, sobre o filme “Verão Feliz” (1999). Dessa forma, de uma lado temos os jovens — o policial novato no primeiro e o grupo de yakuzas recém iniciados no segundo —, que parecem ainda ter algo “pulsante” e vivo; do outro, os mais velhos e experientes, que tiveram suas forças vitais sugadas pelo meio em que estão inseridos. Dessa forma, eles parecem não ter uma força interior que os mova. Estes personagens apenas reagem (e não agem) às circunstâncias.

O personagem interpretado por Kitano anda por uma ponte em direção a câmera

o personagem de Makoto Ashikawa caminha por uma ponte em direção a câmera

Azuma e Kukuchi em momentos e situações muito distintas dos filmes

Obviamente, que estes “conflitos de gerações” desembocam em resultados distintos em cada filme. Enquanto o cadete Kikuchi (Makoto Ashikawa) se corrompe e se integra totalmente ao submundo, Ryoji (Masanobu Katsumura), o jovem yakuza de “Sonatine”, foge amedrontado ao se deparar com tanta destruição e morte. De uma forma ou de outra, querendo ou não, estes dois personagens ainda têm alguma chance. Já os interpretados por Takeshi Kitano, não. Estes estão condenados, não há outro caminho a não ser a morte.

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José Luiz
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Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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