Na era da imagem, as redes sociais costumam ocupar boa parte dos nossos dias e com isso costumamos estar muito atentos às informações visuais à nossa volta. O pôr do sol no horizonte, a visita ao Cristo Redentor ou o momento em que entramos em um festival, são potenciais conteúdos para divulgação no Instagram ou no Facebook.
As condicionantes culturais certamente direcionam nossa atenção e refinam a visão como principal sentido. Por outro lado, em muitas dessas situações o que escutamos torna-se secundário. Contudo a audição é um sentido formidável e com isso é importante elucidar os aspectos daquilo que escutamos à nossa volta.
Nossa reflexão começa na década de 1970 quando o canadense Murray Schafer cunhou o termo paisagens sonoras. Como o nome já indica, um neologismo que nos conduz à ideia de que as percepções auditivas são fruto de uma dimensão espacial compostas por objetos sonoros. Em outras palavras, isso consiste em perceber as informações sonoras presentes no espaço e, em seguida, construir uma noção consciente a respeito daquilo que se escuta.
Um grande exemplo deste fenômeno se apresenta na história recente da humanidade. Tivemos no início do século XX um rápido desenvolvimento das cidades, transformando não somente a paisagem visual, mas também a sonora. O som dos pássaros, do vento na vegetação, dos grilos no início da noite, ou do galo cantando às cinco da manhã foram substituídos pelo ronco dos motores, pela buzina das locomotivas, pelo som das máquinas.
Enquanto as cidades cresciam de forma desenfreada, em 1914 tivemos o surgimento do movimento futuristas na Itália — formado por artistas como Giacomo Balla, Umberto Boccioni, Luigi Russolo e outros, que em resumo demonstravam sua fascinação pela cultura urbana e pelas possibilidades criativas decorrentes dos sons das máquinas. Essas experiências influenciaram mais tarde as obras de John Cage que trouxe o ruído das cidades para suas composições (como “Living room music”, de 1940), e também na famosa experiência criada por Le Corbusier, Iannis Xenakis e Edgard Varèse no Pavilhão Phillips em 1958.
Com tamanha mudança na composição visual e sonora das cidades e o reflexo disso nas composições artísticas e culturais é que então, podemos perceber de forma mais clara o papel do som no espaço e em nossas percepções. Afinal, os sons metálicos que ilustram a cidade passaram a compor o imaginário das produções musicais.
Logo sabemos que o espaço é multissensorial, mas a potência sonora diz respeito a aquilo que nos afeta no campo do invisível. O som nos possibilita mecanismos para criar identidade. Por exemplo, quando criamos uma playlist para trazer aquele “clima” e torna certos momentos especiais. Ou quando fazemos uma viagem e colocamos um determinado álbum para apreciar no trajeto. Com isso, todas as vezes que o ouvimos novamente tais músicas lembramos do momento. Percebemos que é através da experiência que o som cria memória.
O som é peça fundamental na criação daquilo que busca gerar experiência. Por exemplo:
Nos filmes
Nos filmes, as cenas eletrizantes com perseguição e fuga, por exemplo, certamente demonstram sonoridades muito mais excitantes do que aquelas presenciadas cotidianamente em um eventual assalto de um banco no centro da cidade. Além dos gritos, reações de pânico e dos tiros trocados entre assaltantes e policiais, o som do filme nos apresenta também os sentimentos que se expressam através do Sound FX. Tais sonoridades que muitas das vezes nos causam suspense, medo, ou mesmo uma certa euforia, e que no geral não nos atentamos, são timbres gerados por sintetizadores geralmente por um profissional de desenho de som.
Aquele sentimento de excitação ao acompanhar uma fuga de um carro em alta velocidade não é por acaso. Ela já está sendo pensada em uma trilha sonora de composição mais acelerada. Para os que se interessam mais em processos criativos de desenho de som para filmes, temos o documentário “The Sound of Godzilla” (2019) produzido pela SoundWorks. Os designer de som Erik Aadahl e Ethan Van der Ryn falam sobre o processo de criação de Foley e ambiências do filme.
“O Som do Silêncio” (2019) é um filme que podemos destacar a respeito da potência do som no cinema. Nele é possível experienciar junto ao baterista Ruben (Riz Ahmed) um processo de surdez e isso, graças ao desenho de som, que nos oferece momentos de contraste entre aquilo que o personagem não consegue mais escutar e aquilo que está soando no ambiente. Uma incrível experiência sonora especialmente de um ponto de vista técnico e que rendeu a produção o Oscar de Melhor som em 2021.
Nas instalações
Outro campo das artes em que o som tem enorme importância é o das instalações imersivas. Ao compreender o som como potente linguagem é possível utilizá-lo para estabelecer linhas narrativas em busca do que o artista deseja comunicar no espaço. Sabemos que as frequências sonoras ditam humor e emoções e, portanto, sensações corpóreas. Com isso temos a potência da música em gerar memória a respeito daquilo que se vivencia no espaço. Nessas experiências microespaciais de expressão humana temos um ponto de partida para entender as complexidades que acontecem em um corpo imerso nos diversos macro espaços de convivência.
Para quem se interessa em conhecer mais sobre a arte sonora aqui está o trabalho “Lumiere” Live do aclamado produtor musical Robert Henke e também “Test Pattern Show” de Ryoji Ikeda – ambos artistas da visual music.
Em jogos digitais
Nos jogos digitais o som também se estabelece como importante ferramenta em termos daquilo que possibilita altos níveis de imersão na experiência do jogador. Essa possibilidade em criar experiências cada vez mais realísticas se associa a funcionalidade da comunicação sonora que dá informações instrutivas na jogabilidade. Funções bem conhecidas pelos jogadores de League of Legends, pois o jogo costuma utilizar das ambiências sonoras para indicar perigos, risco de vida dos champions ou mesmo uma certa percepção do tempo de jogo. Tudo isso tem levado não somente as principais produtoras de equipamentos sonoros a investirem milhões de dólares para refinarem a qualidade do áudio, mas também o desenvolvimento de novas técnicas de mixagem por parte dos profissionais de som.
Uma dessas técnicas tem sido popularizada pelo mercado de games como áudio binaural, que é basicamente um outro nome para a mixagem 3D. É claro que esses termos chamam a atenção e para nós que curtimos áudio é um prato cheio para um próximo artigo. Por enquanto, pensemos em como a mixagem 3D busca a criação de um espaço sonoro mais próximo da realidade e que isso junto a outros fatores como jogabilidade e qualidade gráfica também significa maior satisfação do jogador e aumenta as chances de um jogo bem vendido.
Exemplo da importância de um bom desenho de som está no game “Hellblade: Senua’s Sacrifice”(2014) da britânica Ninja Theory. Nele, a temática gira em torno da personagem viking Senua. Uma jovem que busca resgatar alguém de seu afeto na chamada terra dos mortos. As vozes que ecoam distribuídas entre o espaço sonoro possibilitam uma imensa empatia com a guerreira. Portanto podemos caracterizar o áudio deste game como algo mais do que imersivo.
Os conflitos mentais que ela vivencia, demonstram que o maior perigo para a personagem é ela mesma. Um som que oferece ao jogador experiências e sensações intrigantes.
No geral, em um jogo não é difícil perceber uma variedade de estímulos sonoros. Quando estamos no início de uma fase conduzidos por uma trilha sonora mais tranquila, podemos perceber que o som nos proporciona calma, mas com uma finalidade: o jogador precisa entender o espaço no qual o avatar está e quais são os desafios. Em contraponto, temos aquele momento de adrenalina em que o personagem enfrenta o “chefão” e esse momento também é ilustrado sonoramente: uma música mais dinâmica com arranjo encorpado.
Contudo, percebemos que muitas das vezes somos envolvidos por estímulos sonoros e que esses não são digeridos de forma consciente. Isso nos leva a refletir mais sobre as sensações que nos causam determinada trilha sonora. Mas também a pensar se os sons da minha rua interferem no meu estado de espírito. Com isso, deixo aqui um exercício para você que se sentiu instigado a perceber mais as sonoridades à sua volta.
Feche os olhos e tente identificar elementos que “ilustram” a paisagem sonora do seu entorno. Anote e com isso tente visualizar que informações sonoras estavam fazendo parte do espaço. Pense que isso a longo prazo demonstrará que influências sonoras fazem parte do seu cotidiano. Trabalhando nossa consciência auditiva certamente estaremos mais conscientes do espaço que ocupamos no mundo.
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