O Direito do Mais Forte é a Liberdade

O Direito do Mais Forte é a Liberdade: Rainer Werner Fassbinder entre Brecht e o melodrama

Muito frequentemente a obra de Rainer Werner Fassbinder é interpretada segundo a sua biografia. Apesar de não ser uma abordagem melhor ou pior, mas apenas uma escolha, tentarei trilhar outro caminho. Após ter lido o artigo “I Only Want You to Love Me: Fassbinder, Melodrama, and Brechtian Form” de Thomas E. Erffmeyer, me senti impelido a ver a obra do diretor alemão com outros olhos. Embora não haja nenhuma novidade em relacionar à obra de seu conterrâneo Douglas Sirk ou a cineastas “Brechtianos” — como Godard em início de carreira ou Straub/Huillet —, o texto me chamou pelo seu didatismo e simplicidade. No entanto, ao contrário do autor, não abordarei o longa “Eu Só Quero que Vocês Me Amem” (1976), mas “O Direito do Mais Forte é a Liberdade” (1975), seu filme anterior.

À primeira vista, esta aproximação feita pelo autor pode soar no mínimo inusitada, uma vez que existe uma grande contradição entre o projeto teatral de Brecht e o melodrama. O primeiro, em seu processo de amadurecimento estético-político, se afastou cada vez mais do ilusionismo naturalista e da identificação sem restrições entre público e personagens, duas coisas essenciais para o segundo. Embora acredite que essa aproximação não é tão “pacífica” como Erffmeyer faz parecer em seu texto, não é tão descabida, uma vez que desde sua origem o melodrama uniu o “sentir” e o “pensar”, algo que o próprio Fassbinder queria alcançar (pelo menos nesta entrevista de 1974).

Você foi influenciado por muitos filmes americanos na época?

Algumas vezes sim. Metade dos meus primeiros filmes foram ‘sobre’ minhas descobertas no cinema americano; de uma forma que eles transplantaram o espirito dos filmes americanos para os subúrbios de Munique. “Precauções Diante de uma Prostituta Santa” [1970] é especificamente sobre tentar viver e trabalhar como um grupo.

A outra metade não tinha não, eram influenciados. Eles eram investigações sobre atualidades alemãs: trabalhadores imigrantes, a opressão de uma classe média de escritório, nossa própria situação como cineastas.

A entrevista prossegue:

Você acredita que esses filmes são provocativos?

Não tão provocativos quanto pensado para provocar pensamentos. Na época eu pensava que se você botasse as pessoas contra sua própria realidade, elas reagiriam contra ela.

Eu não penso desse jeito mais. Hoje em dia eu penso que a necessidade primaria de um filme é satisfazer o publico, e depois lidar com conteúdo politico. Primeiro, você tem que fazer filmes que são sedutores, bonitos, sobre emoções e etc (…)

Talvez a oposição entre entre o melodrama — pelo menos em alguns deles — e o teatro brechtiano não seja tanto quanto ao fim, mas quanto ao método. Como Erffmeyer salienta, o primeiro, já em sua origem teatral, muitas vezes tecia, em meio ao exagero e as narrativas aparentemente banais, comentários político-sociais. Esta ideia é também compartilhada por Luiz Carlos Oliveira jr. em “Defesa do Melodrama” presente no catálogo da mostra “Douglas Sirk: o príncipe do melodrama”:

O lar burguês, a casa, o ambiente familiar — marcado pela presença mais constante da mulher que do homem — torna-se, portanto, o campo de forças do melodrama. É nesse ambiente doméstico, privado, que o elemento perturbador se infiltra, quase como uma mancha ou uma mácula que perverte o retrato plácido da família burguesa convencional. O modelo do melodrama familiar e doméstico, com suas rivalidades, suas brigas por herança, seus conflitos geracionais, suas personagens reprimidas, suas divisões de classe e sexo — e também com suas vibrações misteriosas que colocam a realidade cotidiana sob a permanente influência de uma dimensão enigmática e oculta —, é o que fundamentará os principais melodramas do cinema hollywoodiano dos anos 1950, tais como os de Douglas Sirk, Vincente Minnelli, George Stevens e Nicholas Ray.

Dessa forma, embora o melodrama aposte nas emoções intensas, no espetacular e na imersão do público, pode conter em si uma visão crítica da sociedade que o rodeia. Aliás, como o próprio Luiz Carlos menciona em outro momento do texto, as limitações que o contexto lhe impunha influenciaram para que este gênero se desenvolvesse nesta direção.

Houve um catalisador histórico no processo: os teatros populares, de “segunda categoria”, nos quais o melodrama rapidamente obteve sucesso, estavam obrigatoriamente restritos ao drama “mudo”. Tanto em Paris quanto em Londres, somente alguns poucos teatros legitimados pelo governo podiam encenar espetáculos baseados na palavra, vista como um privilégio exclusivo da alta cultura. A palavra era banida dos espetáculos populares, que, por lei, deviam se dedicar a formas de entretenimento não literárias, nas quais as falas, caso existissem, eram ritmadas por música (o que lhes dava outro estatuto, diferente daquele conferido pela excelência poética do texto classicista). Por conta dessa restrição, e também da natureza iletrada da maior parte de seu público, esses teatros populares davam especial atenção aos aspectos “pictóricos” do drama, aos seus signos visíveis: cenário, maquinaria de palco, gestos, ação (…)

Justamente por essa importância dos aspectos visuais e do naturalismo, que o melodrama pôde encontrar no cinema um solo fértil para a sua essência popular e seu caráter conotativo. Seja na mise-en-scène, no uso de objetos cênicos, das cores, da iluminação, de ângulos de câmera etc. O uso conotativo desses elementos estão muito presentes no trabalho de alguns cineastas — nem todos ligados ao gênero aqui abordado —, que antecederam a geração de Fassbinder e que estavam relacionados com a lógica do cinema clássico-narrativo, como ele mesmo admite:

A principal coisa a se aprender dos filmes americanos é a necessidade de se achar um meio termo para o fator do entretenimento. O ideal é se fazer filmes tão bonitos quanto os americano, mas ao mesmo tempo mudar o conteúdo para outras áreas. Eu acho que o processo começa com os filmes de Douglas Sirk, ou em um filme como “A Suspeita” [1941] de Alfred Hitchcock, onde você passa a sensação de que o casamento é algo impossível.

Mas e o Brecht, entra onde?

Até aqui, falamos muito de melodrama, mas pouco da subversão “brechtiana” implementada por Fassbinder ao gênero. Erffmeyer, em seu texto chega a enumerar alguns mecanismos utilizados pelo diretor, por exemplo, a escolha de enquadramentos, o uso de espelhos e superfícies reflexivas que complementam e comentam o que é encenado e a obstrução parcial do quadro por objetos cênicos. Embora esses artifícios não sejam novidade no cinema, tendo inclusive muitos deles sido herdados de Sirk e outros representantes do cinema clássico-narrativo, é na forma que esses elementos são utilizado que a diferença se dá. Novamente, com a palavra o realizador:

Porém, existem diferenças consideráveis entre meus filmes. O nível de estilização cresce em proporção a artificialidade do tema. “Effi Briest” [1974] é muito mais hermética, nesse sentido, do que “O Medo Consome a Alma” [1974], por exemplo. O tema é criado em parte a partir da caracterização, e então tem a ver com os personagens também. Os filmes são muito consistentes com suas atitudes quanto aos personagens (hoje em dia eu tento dar a cada um deles uma motivação visível e compreensível), mas o que surge disso depende muito do tema.

Algumas subversões “brechtianas” de Fassbinder:

Cena de O Direito do Mais Forte é a Liberdade, onde dois personagens são visto através de uma janela, há um reflexo no vidro que não nos permite ver direito quem eles são.

Fox e Eugen estão em um restaurante chique, entre ele há no primeiro plano uma estrutra de madeira que corta o plano ao meio.

Fox e Eugen são enquadrados em um contra-plongée, no primeiro plano há um corrimão entre a câmera e os personagens.

A cena de uma refeição onde a mãe de Eugen serve ele e Fox, a câmera está em um plongée, mas em um angulo um pouco incomum. A cena é fimada com certa distância e é enquadrada pelo batente de uma porta.

Alguns exemplos de mecanismos utilizados por Fassbinder para provocar um distanciamento no público

Meio à moda maneirista, esses aspectos são reutilizados e revelados ao público, por meio da estilização, tal como são: escolhas conscientes tomadas por alguém. Mas enquanto para alguns esse gesto “auto consciente” assume uma sentido de autorreflexão sobre os mecanismos cinematográficos ou a história dessa arte, em Fassbinder, eles se tornam essenciais para a reflexão proposta pelo filme. Isso se aplica tanto a “Eu Só Quero que Vocês Me Amem” quanto a “O Direito do Mais Forte é a Liberdade”. Na verdade mais neste do que naquele, a estilização é muito mais perceptível: as cores pasteis, a mise-en-scène pesada e aparente, os gestos calculados e não naturalistas, a forma artificial de se falar. Neste ponto, o cineasta alemão está sintonia com o dramaturgo e encenador alemão, nas palavras de Brecht sobre sua peça “A Mãe”:

O teatro épico utiliza, da forma mais simples que se possa imaginar. Composições de grupo que exprimam claramente o sentido dos acontecimentos. Renúncia à composições “acidentais”, que “simulem a vida”, “arbitrárias”; o palco não reflete a desorganização “natural” das coisas. É precisamente o oposto da desorganização natural que se aspira, ou seja, à organização natural.

Em “Efeitos de Distanciamento na Arte Dramática”, Brecht busca no Oriente um modelo para o seu teatro épico. Em determinado momento do texto ele escreve:

A atuação dos artistas chineses parece ao artista ocidental frequentemente fria. Não que o teatro chinês renuncie à representação de sentimentos! O artista representa acontecimentos que contêm uma forte tensão emocional; todavia, o seu desempenho jamais denota qualquer calor. Nos momentos de profunda agitação da personagem representada, o artista prende nos lábios uma madeixa de cabelos e mordisca-a. Faz isso, porém, como se num rito; nada revela de eruptivo. Estamos perante a clara repetição de um acontecimento, feita por terceiros, perante uma descrição, na verdade, engenhosa. O artista mostra assim uma pessoa que está fora de si, usando, para tal, os indícios exteriores do seu estado.

Fox ganhou uma bolada, mas acaba sendo enganado

Como dito anteriormente, em “O Direito do Mais Forte é a Liberdade”, Fassbinder interpreta Fox, um sujeito da classe trabalhadora, que ganha dinheiro como “Fox, a cabeça falante” em um show de atrações. Após Klaus (Karl Scheydt), com quem tem um relacionamento, ser preso, ele parte em uma jornada por uns trocados para um bilhete de loteria. Neste início um tanto cómico, lhe negam empréstimos, tem seu dinheiro levado pelo vento. Fox só consegue o bilhete depois de dar um pequeno golpe em um florista (Perter Kern), com ajuda de Max (Karlheinz Böhm), com quem iria fazer um programa. Depois desse prólogo bem humorado, uma elipse.

Pôster do filme O Direito do Mais Forte é a Liberdade
Pôster de “O Direito do Mais Forte é a Liberdade”, nele podemos ver Fassbinder, Christiane Maybach e Böhm
Pôster do filme Eu Só Quero que Vocês me Amem
“Eu Só Quero que Vocês Me Amem” filme televisivo abordado no artigo de Erffmeyer

Aqui há algo interessante, há alguma coisa nesta passagem de tempo — assim como em outras ao longo do filme —, que ressalta o não visto, o que foi conscientemente suprimido por alguém. Depois dessa elipse, vemos Fox, após ganhar uma bolada, em um ambiente burguês, com Max. Neste mundo, desde o princípio ele é um ser exótico, falam dele como se ele ali não estivesse. Mas a questão é, ao nos jogar neste momento, Fassbinder nos faz questionar “o que aconteceu até eles chegarem aqui?”. No cinema clássico-narrativo é fundamental que não nos atentemos para o que é ou não cortado entre as cenas e sequências. Esta particularidade está ligada a outra subversão presente na obra: como sua narrativa vai pouco a pouco adotando um caráter episódico.

Fassbinder em O Direito do Mais Forte é a Liberdade olha para alguém que está fora de quadro.
Fassbinder como Fox em “O Direito do Mais Forte é a Liberdade”

No cinema clássico, um evento deve estar indissociável do outro, tudo o que acontece é uma consequência de outro ação anterior. Em “O Direito do Mais Forte é a Liberdade”, essa relação de causa e efeito são afrouxadas. Não que isso seja novidade do que se é considerado como cinema moderno — que muitas vezes foi bem mais radical quanto essa questão —, mas aqui, esses “episódios” se acumulam de forma a chamar a atenção à questão central do filme: as relações conflituosas entre classes, e aqui não me refiro apenas ao nível afetivo. Dessa forma, há algo além de uma trágica história de desilusão amorosa.

Cena de O Direito do Mais Forte é a Liberdade, em que um bancário, atrás do guichê faz um lamento.
“Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Se repetir muito uma mesma palavra, não vai mais saber o que ela significa”

Ainda sobre esse aspecto, como não lembrar de toda a sequência do Marrocos. Quando convencido por Eugen a sair em uma viagem (turismo sexual), Fox parece encontrar em Salem (El Hedi ben Salem) um quase duplo de si mesmo. Esta sequência funciona como um reflexo do momento em que o personagem de Fassbinder é introduzido no mundo de Max, Eugen e companhia. Embora esteja presente e interaja em alguns momentos, ele é mais o tema que um participante da conversa. Tanto o protagonista de origem proletária quanto o árabe são tratados como estrangeiros em seu próprio país, como seres estranhos. Isto é reforçado por escolhas estéticas, de encenação e formais. Porém, como não tenho intenção de adentrar muito neste assunto, deixo parte da sequência aí em baixo. Deem uma atenção especial ao momento em que a câmera sai dos três personagens e vira para as ruas marroquinas — este movimento de câmera, o diálogo e as imagem captadas dizem muito.

Há ainda outros recursos interessantes que Fassbinder utiliza em “O Direito do Mais Forte é a Liberdade”. Por exemplo, há momentos em que a câmera se detêm em gestos e expressão, em pequenos números musicais ou em tableaux vivants que, se não criam um efeito de distanciamento, ao menos de estranhamento. Em outras situações, o diretor insere “comentários” que provocam uma postura ativa do público. Estes “comentários” se dão de três maneiras no filme: 1) completamente inseridos dentro da lógica interna das cenas, 2) destoantes, mais ainda se relacionam de alguma forma no universo ficcional e 3) um momento especifico onde há um rompimento total com a diegese.

Fox junto de outros personagens observam algo no que está fora de quadro.
um tableau vivant
Close no rosto de uma mulher que olha compadecida para algo fora de quadro.
Uma expressão
Vemos de um lado Fox, sentado em uma escada no meio da rua, e Max coloca a mão em seu ombro. Do outro lado vemos Eugen jogando pinball de costas para os dois. Toda a cena é banhada por uma luz esverdeada.
Uma ruptura da diegese

Os primeiros se dão por meio de olhares e reações de personagens, que chamam a atenção para algo que Fox, totalmente imerso em sua paixão — que, propositalmente, nunca é realmente “sentida” pelo público — não consegue ver. Os segundos acontecem em momentos, como a cena em que Fox empresta uma grande quantia de dinheiro a Eugen. Depois que os dois deixam o banco aparentemente felizes, a câmera se detêm no bancário que lamenta (para si mesmo ou para o público?). Por fim, já na reta final do filme, há um momento de ruptura total com o universo ficcional, quando aos olhos de Max — um “agente duplo” do diretor dentro do filme —, Fox e Eugen encenam uma conversa que nunca tiveram nem terão, um pseudo interlúdio.

Nada mais a dizer…

Por enquanto, estes são alguns pontos que me vieram a cabeça depois de assistir “O Direito do Mais Forte é a Liberdade” e de ler o artigo de Thomas E. Erffmeyer. Gostaria de abordar melhor as consonâncias e dissonâncias entre Brecht e Fassbinder — ambos, em maior o menor grau, atuaram tanto no teatro quanto no cinema. No entanto, me faltam o arcabouço teórico e um conhecimento mais profundo de suas trajetórias e de seus pensamentos. Por hora, deixo este texto, uma tentativa, muito provavelmente falha, mas ainda uma tentativa, de abordar um pouco a obra desse diretor alemão que tanto me fascinou.

Os textos de Brecht citados estão presentes na coletânea “Estudos Sobre Teatro” lançado pela editora Nova Fronteira.

As traduções dos trechos da entrevista com o diretor só foram possíveis graças ao Yuri Cardoso, que também escreve aqui para a zine.

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José Luiz
José Luiz
Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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