AMARELO MANGA

Nossa liberdade nos condena? Ela sequer existe? Os dias vem e não param. Doem e não param. Os bichos morrem. Morrem também as pessoas. Tudo parece estar morrendo. Uma mulher se olha no espelho todos os dias, tira as remelas amarelas e sente como se fossem moscas mortas caindo, moscas que comem seus sonhos para morrer de dia na pia. Um homem sente que sua pele está desbotando e se esgueira na janela de uma cela – ou será apenas um quarto sujo dividido entre muitas pessoas? -, mas ele se esgueira e tenta queimar o rosto na pequena fresta de sol, mesmo tendo apenas alguns minutos antes que alguém queira meter a cara e o expulsar de lá. Nada muda nunca? As pessoas amontoadas no ônibus, o ar infestado de morte, seguem respirando, pois é involuntário, seguem respirando grudadas umas nas outras e morrem de medo de que naquele cecê, naquela inhaca suada e desconfortável esteja o motivo da verdadeira morte. Isso parece indigesto, fétido e sadesco. Como o governo, como os últimos dias de sodoma e gomorra. Alguém no poder — se é que é gente — se excita com os olhos desesperançosos da mulher de buceta amarela, a mulher queria estar morta ao invés de excitar aquele alguém, mas é assim que paga as contas. Um grupo de jovens se esfrega entre mesas de bar apertadas, postas ao ar livre, e se esfregam incansáveis uns em outres na nova roleta russa preferida, aquela que está aposentando seus revólveres. Querem morrer e sabem, mas não confessam. O padre está quebrando pedras e isso parece um ato de fé independente das igrejas, ele pode ser morto pelas próprias igrejas em breve. Uma comediante se recusa a continuar rindo e alguém quer cortar fora a sua língua e abrir um sorriso amarelo no seu rosto feito um coringa, mas é tanto barulho e o dia não para. A noite vem, mas ninguém está verdadeiramente convencide de que é a melhor parte. O tempo está apodrecido assim, fora do sol amarelo talvez exista alguma esperança ou talvez na morte de um velho exista alguma esperança (nós sabemos de quem estou falando). Mas ninguém está mais convencide de que o mal possa morrer. Isto é liberdade? Mas há uma condenação sem dúvida. A história aqui no entanto, ela não vai parar, ela vai seguir com toda essa morte simultânea, ela vai abrigar todas essas pessoas mortas e morrendo, ela vai, no entanto, falar também da coragem e do amor escorrendo, se debatendo e tentando sobreviver mais uma noite até o próximo dia inevitável.

Uma jovem evangélica descendo a rua, abotoada até o nariz, como se vestisse uma armadura contra o demônio – que são as pessoas e também ela. Não se sabe se a armadura protege a jovem ou os passantes. É uma focinheira? Ela tem o casório marcado com um açougueiro e tem um pai policial, são quase a mesma pessoa e têm muitos gostos em comum, inclusive a filha. A jovem desce a rua até um ponto de ônibus, porque sua cidade não para nunca. Ela usa máscara cirúrgica, apesar do seu pastor, e vê uma mulher de cabelos vermelhos com uma roupa que talvez nem seja roupa de tão pouca. Ela reza pela mulher, isso pode ter muitos sentidos. Ela reza pela mulher e a mulher belisca seu braço. A jovem vislumbra a mulher de joelhos no milho, vislumbra sua boca aberta e vislumbra enfiar os dedos na boca vermelha da mulher. Não se assuste, ninguém a ensinou a desejar diferente do seu pai e seu futuro esposo. A jovem quase deseja violentar a mulher, pois não sabe distinguir o malicioso beliscão de uma punição com razão de ser. Não sabe distinguir uma punição de um amor. Mas a mulher vermelha sente o desejo vazando da armadura crente da jovem, sente porque é mulher sozinha e essas sabem das coisas, por isso são abandonadas nas esquinas. Ela sabe da jovem e para do seu lado no ponto. Ninguém presta atenção enquanto a mulher cola no ombro da jovem e chega com o rosto perto assim da sua orelha e apesar da máscara pandêmica, manda um beijo e pergunta se a menina não quer tomar uma cerveja agora no meio da tarde amarela. A jovem diz “Cruzes!” e vai, porque pensa que pode castigar a mulher com seu amor, pensa que pode punir a mulher e levá-la ao Senhor de algum jeito. Coisa de gente jovem achar que muda alguém?

Chegam no boteco, pegam uma mesa assim de canto. O garçom tinha um bigode fininho, aparecia porque a máscara dele estava sempre pendurada na orelha, sempre na espera de levar um beijo da morte. Ele era virgem de boca e muito apaixonado pelo entregador de gelo, que comia ele todo domingo depois do expediente, mas nunca beijava. “Isso nunca” – o homem do gelo dizia e por isso ele dava mole com a boca virada pro mundo. Além dele, tinha uma mulher de unhas coloridas enormes que mandava em tudo, ela usava uma máscara de tecido estampada bem alegre, mas tinha uns olhos sérios de quem nunca conheceu o amor. Uma dor assim elegante. De resto, havia mais dois gatos pingados de gente, com a própria podridão, se afundando já naquela hora do dia. Todos homens e com as máscaras meio caídas sobre as mesas. Todos olharam elas entrando erguendo o nariz pra ver se dava pra fungar o cheiro daquelas novas bucetas. A figura das duas parecia um contra senso: uma com a cruz no peito, outra com os peitos quase à mostra. “As crentes são as mais safada” disse alto o garçom para um velho dos olhos vermelhos, talvez fosse surdo, talvez não desse a mínima. “Eu não brinco com nenhum senhor”, respondeu o velho pra si mesmo, o garçom não ouviu.

As duas sentam no canto mais afastado do bar. A mulher bebe um copo de cerveja amarela, bem milho transgênico, e com a outra mão coça o bico do mamilo. A jovem olha, franze a testa e cruza as pernas apertando bem as próprias coxas, uma contra a outra. Essa repressão. Respira engraçado. Uma vez uma menina ficou branca que nem papel fazendo exatamente assim e era um gozo, mas a jovem não sabia e a menina da história quase desmaiou. Ninguém ensina às meninas a gozar? Ela estava com raiva e fechava tudo, contraia até o cu para tentar conseguir dizer alguma coisa sobre a mão da mulher que insistia em coçar o próprio mamilo e não tocava em mais nada. “Por que não vai tocar em outra coisa?”, disse quase grunhindo de ódio. “Te incomoda? Quer que eu toque em você?”, disse a mulher com certo desdém. A mão ainda no mamilo. “Tá doente pra coçar assim?” retruca a crente. “Tô. Quer olhar?”, a mulher coloca o peito todo pra fora. A crente quase sufoca. “Mas o problema mesmo, tá aqui ó”, continua a mulher e abre bem as pernas levantando a saia, mostrando a buceta peluda toda nua, os pelos vermelhos. “É bem na xana que não para de arder, parece tá queimando.” A jovem vira o copo de cerveja na buceta da mulher e pergunta: “Melhor?” A mulher geme: “ Ai, quem vai beber essa cerveja agora?”. A jovem responde, com um tom até carinhoso: “Sua puta.” A mulher sorri, a máscara que estava na orelha quase cai. Ela puxa a cadeira pro lado da crente, que fecha os olhos. A mulher pega e coloca a mão da crente na sua xana molhada de cerveja: “Me cura, vai”. A jovem sente que vai infartar, os dedos tremem entre os pelos finos da buceta, na carne quente e molhada, suada, pegajosa. É gostosa. A vida para, por um segundo, parou a vida de todas as pessoas no mundo. Os olhos fechados, como em oração ou tentação, é a mesma coisa. Mas é gostosa. A crente finalmente diz: “Que nojo”. “Ah é?”, a mulher retruca e chupa os dedos da crente melados da sua xoxota. “É meio azeda mesmo, prova.” A jovem passa os dedos outra vez lá embaixo e os lambe, pra depois cuspir. “Aposto que a sua é pior”, diz a mulher. A jovem pega a mão demoníaca da mulher e coloca na própria xota, por baixo da saia longa e da calcinha casta, bordada. A mulher chupa e lambe a própria mão, cheira, passa a mão com o gosto da buceta crente na cara inteira. “Puta que pariu, que xaninha doce. É de Deus mesmo, já sentiu?”, a jovem responde que não. A mulher pega a mesma mão e coloca na boca da crente. A crente prova a própria buceta na mão da mulher estranha. É uma provação danada. Se sua xota é doce assim é mesmo porque Deus abençoou ela todinha? Ela abre um sorriso, parece um milagre que tenham gostos diferentes. Faz das duas uma coisa ainda mais oposta. Isso a tranquiliza tanto que afrouxa a raiva, afrouxa as pernas, cogita quase abrir um botão da camisa. A língua da mulher, nada santa, aproveita o relaxamento e passa na orelha da crente. Mete a pontinha na orelha, é úmida, tem gostinho de cera. A crente deixa escapar um gemido baixinho. Ela imagina as costas da mulher toda arranhada por Deus, imagina a pele sangrando. “Vamo pro banheiro agora”, fala a mulher ainda com a língua serpentinosa. “Eu não entro em banheiro de boteco não”, a crente se levanta e pensa em ir embora para seu compromisso. Um casal cruza a rua, o homem abre a boca banguela pra jovem de pé. A namorada dele o puxa aos tapas e dobram a esquina. A jovem permanece parada, imobilizada. Lembra do futuro marido, das mãos duras de açougueiro, do cheiro de bicho. A mulher estranha a abraça por trás, ergue seu cabelo revelando a sua nuca evangélica e beija. O beijo dos anjos elas não conhecem. Mas entram no banheiro juntas. O garçom já nem viu, está sentado no colo de um homem que lê um livro em voz alta. Ele acha um porre, mas o homem coloca dinheiro na sua camisa por cada poesia que lê. Todo jovem gosta de dinheiro e ler sobre a morte excita o homem. A dona do bar está prendendo arrudas no cabelo. O homem, que queria ser poeta, coloca os óculos e lê: “Amarelo é a cor das mesas, dos bancos, dos tambores, dos cabos, das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos. Da charque! Amarelo das doenças, das remelas, dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarréias, dos dentes apodrecidos… Tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente.” O banheiro tem azulejos azuis, brancos e amarelos.” A privada cheira a pinho sol e a cachaça. Na pia tem um anel enferrujado e o espelho é tão sujo que parece todo embaçado. A jovem tira a camisa crente e solta os longos cabelos pretos. A mulher morde o bico dos seus peitos e depois parece beijá-los bem devagar, entre beijar e mamar, com uma sucção leve de uma boca amolecida. Uma cobra sem dentes. O peito vai ficar pontudo quase na boca da mulher. A crente segura ela pelos cabelos, pra que fique mais e mais tempo ali com a cara no seu peito. Depois pressiona o rosto da mulher bem entre os dois seios, pressiona o nariz assim com força, num mata leão de tetas. A mulher arranha as costas da jovem e desce as mãos até apertar sua bunda dura. A jovem folga, deixa a mulher afastar o rosto e rapidamente a mulher tá de joelhos no chão pegajoso do banheiro. A jovem olha ela ajoelhada e apoia uma das pernas na parede. Vai deixar a buceta divina escorrer toda na língua dos infernos. Mas quando a mulher de cabelos vermelhos encaixa a cara na sua xota, o sol parece que nem brilha mais, Deus nem existe mais. A lambida é a salvação das mulheres. Não é nada lânguida, é vigorosa e quente. Vai roçando e sugando, fazendo suar as coxas. A buceta produz quase como que a própria pinga prateada. Faz do mijo, aguardente. Molha o rosto e limpa remela, maquiagem, cegueira, purifica. Parece que foi feita pra encaixar na face, pra sentir um nariz grande e colar os lábios nos lábios. Tem sempre mais. A mulher usa também os dedos e os dedos são a penetração perfeita, a jovem berra. A jovem quer ser mulher, quer a mulher, quer azedar na boca da mulher. Rebora e esfrega com calma a xana nos lábios e na língua da outra, sente os dedos entrando e sacudindo. Nem grita, nem geme, tem epifanias silenciosas, só com som de estalos e baba espessa. Suada, toda melada, a mulher levanta e não para, coloca o pé na outra parede e gruda uma xana na xotota da outra. Gruda também as peles e os peitos, encaixam os rostos nos pescoços e mordem como se fossem arrancar um pedaço. A cruz do colar arrebenta. A fé é escancarada. Fé nas xotas que se beijam, se sarram até o bagaço. Nada sangra, mas tudo expele secreções grossas e brilhantes. As duas estão abraçadas, como que enlaçadas, uma calmaria afoita, um paradoxo, uma urgência lenta em morrer na outra, em matar o dia, em fazer no banheiro o que não pode ser feito nunca em cama nenhuma do mundo, em fazer do mundo o que não pode ser feito nunca da realidade. Furar o bucho do céu, deixar cair os anjos e as virgens todinhas. Assim é ficar fodendo com uma mulher durante toda a tarde. O gozo vira essa coisa infinita. Se alguém olhasse pela fechadura da porta, até chorava, até se convertia. Mas a tarde vira noite. Dois homens querem entrar no banheiro e dão murros na porta. O pai da crente matou um garoto e ainda reclamou que é muito mal pago, que tinha que ganhar mais pelo bem que faz matar. O jovem garçom começou a tossir na cozinha em cima de todos os copos. Alguém sem nome puxou um revólver em troca de uma carteira com só 7 reais. O pastor deu um grito que gerou um infarto dentro da igreja e foi bom pros negócios. Uma agente funerária preenche as fichas com nome dos mortos enquanto canta um pagode pensando em seu amante truculento. Um corpo desapareceu num hospital. No jogo do bicho saiu um cavalo. Abrem a porta do banheiro e saem as duas mulheres descabeladas. Depois vem o dia outra vez que vai, vai, vai, vai e não para.

Ilustradora convidada:

Camila Albuquerque

Camila Albuquerque é artista, mulher, LGBT e nordestina. Ela trabalha com diferentes linguagens, especialmente com a Pintura a Óleo e o Grafite, onde aborda temáticas do sagrado feminino, Erotismo e do Folclore. seu trabalho dá um enfoque cada vez maior na Brasilidade, na experiência pessoal que se liga ao universal, através de suas pinturas sob um novo olhar do prazer.

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Julia Limp
Julia Limp
É artista multifacetada. Tem casa no teatro, onde está em formação, mas já trabalha profissionalmente precocemente como atriz e diretora. Tem quintal na música, onde canta, compõe e tem algumas coisas já gravadas e crescendo em direção ao mundo. Mas fez cama na palavra, com quem se deita e tece prosa, cada vez mais perigosa e úmida. É muito surto e muito afeto, trabalha com muito tesão e às vezes com raiva. Pode morder, mas esperamos que só de sacanagem.

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