Apesar do livro “A Metamorfose”,de Franz Kafka, ter sido escrito em 1912, seu conteúdo fica mais atual a cada dia que passa. Nele, Kafka conta a história de Gregor Samsa, um homem que acorda em sua cama preso no corpo de um inseto gigante e que, a partir daí, tem que lidar com o peso de não conseguir mais sustentar sua família que dependia inteiramente de seu salário. Por mais que o livro seja sobre como os seres humanos descartam tudo aquilo que consideram inútil, nessa minha versão, irei criticar as formas de trabalho do terceiro milênio subvertendo essa obra atemporal em um texto cheio de memes. Me desculpa, Kafka. Vamos lá:
Numa manhã, ao acordar de sonhos inquietantes, vi que Gregor Samsa já não era mais o mesmo. Ele, que antes era caixeiro-viajante, me contou que em algum momento da noite se transformara em um horripilante funcionário de empresa privada. Suas olheiras haviam se aprofundado, o colágeno do rosto estava praticamente esgotado e, como que numa pancada contra a quina de algum móvel, sua lombar doía horrores.
Eu não entendia muito bem como aquilo funcionava. Será que essa transformação afetaria nossa amizade? Num primeiro momento achei que não. As mudanças pareciam apenas superficiais. Por exemplo, no café da manhã, ao invés de suas habituais torradas e suco de laranja, Samsa bebeu litros e litros de café quente. Sem botar um grão de açúcar sequer. Questionei se não faria mal, e ele me explicou “na nossa espécie dos Funcionários é assim que nos alimentamos. No máximo uma barrinha de cereal para dar energia, mas só no fim do dia”.
Até as mudanças mais estranhas aparentavam que não mudaria nada entre nós, como quando saímos de casa que Samsa disparou a correr e me gritou que não controlava mais suas próprias pernas. Elas corriam com vontade própria atrás de um ônibus para que Gregor não chegasse atrasado. Aprendi que bater ponto é uma prioridade biológica para a espécie Funcionária porque o predador deles — também conhecido como Chefe — sempre ataca quando essa meta não é cumprida.
Mas alguma coisa no interior dele havia mudado. Chegou em casa cansado e, por mais que eu tentasse bater papo sobre filmes, músicas e política, Gregor só conseguia falar mal de seus colegas Funcionários. Essa espécie, apesar de viver em bandos, não gosta muito de seus semelhantes. E naquele papo monótono, Gregor só variava o tema quando era para falar do clima que estava fechando.
Apesar da chatice, os primeiros meses foram relativamente tranquilos. Ele não tinha grandes vontades, nem grandes sonhos. O tempo que ficava na empresa não permitia. Eram oito horas por dia, mais uma hora para ir e uma hora para voltar. E o dinheiro era pouco — por mais que ele sonhasse com o aumento, coragem não é um dos atributos da espécie Funcionária. Porém, conforme o tempo foi passando, ele parecia cada vez mais fixado nos números e nos ansiolíticos. Perdeu o ânimo para viver novas aventuras, não conseguia mais se abrir sobre seus problemas e assim foi ficando cada vez mais fechado. Quando me mudei de casa, Gregor já estava num ponto que nem ele se reconhecia mais. As pessoas ao redor até hoje me perguntam: o que é que houve com Samsa? E até hoje eu não sei responder se foi ele que se encaixou no sistema ou se foi o sistema que o fez se encaixar. Só sei que faltaram os memes. Feliz 2020.
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Ilustradora convidada:
Júlia Lole
Júlia Lole é estudante de Produção Multimídia no IFSC Campus Palhoça Bilíngue (Libras/Português). Arte fala por mim. Gosto de fazer bolo e dançar no escuro. @ijustrar é a minha página favorita do Instagram.