Sinais

Um apartamento de portas sempre trancadas e dentro uma mulher entupida de medos. Todo dia ela faz uma enorme lista de fobias que poderia ter. Acluofobia, Aerofobia, Afefobia, Agliofobia, Agorafobia, Agrizoofobia, Amenofobia, Angrofobia. Hoje, ela adicionou essas oito. Acredita que com o tempo certo passará a ter todas as fobias da lista. Acredita que isso será, de algum jeito, extraordinário. Toda fobia é de alguma forma extraordinária. Ela não suporta mais as coisas ordinárias. Todo dia tenta mover móveis do lugar, virar cadeiras, para sair desesperadamente da rotina, mas até isso se torna um hábito e o modo de virar e mover se padroniza. Não confia em encontrar outras pessoas. Desconfia de tudo cada vez mais. Tem os únicos segundos de paz quando senta embaixo do varal e observa o céu pela área de serviço do apartamento. O céu nunca é exatamente o mesmo, isso é o único conforto que sente, o que lhe garante que a vida está de alguma forma mudando e de alguma forma fora do seu controle. O seu único prazer está nessa passividade acolhedora de estar diante de algo tão terrivelmente maior e imprevisível, de algum modo docemente opressor. Chegou a tal ponto que talvez só pudesse ter prazer diante daquilo que lhe assombra. Foi assim que a ficha caiu, olhando pras nuvens pesadas, vendo tudo relampejar, se sentindo úmida como nunca, ali ela pediu pela primeira vez: “Venham me buscar”.

Naquela noite, o céu continuou o mesmo, mas ela se deitou na cama ansiosa. Existe alguma chance remota entre milhares de outras de alguém ter escutado, de algo aparecer e só isso já é suficiente para fundar uma religião, muito mais que suficiente para deixar essa mulher suando frio na camisola. Não sabia exatamente com quem estava falando, nem o porquê. Mas parecia a oportunidade do fim daquela solidão insustentável. Escolheu sua camisola mais bonita, dormiu pela primeira vez de cabelos penteados e sem calcinha. No entanto, se cobriu até o pescoço. Estava dada, mas ainda um tanto insegura. O cobertor era uma ilusão de proteção. As horas passavam sem que conseguisse pegar no sono. Olhava a janela do quarto de cinco em cinco minutos. Fechava os olhos e pedia de novo e de novo. “Que alguém venha, que algo apareça.” Estava quase adormecendo quando seu celular começou a vibrar sem parar ao lado da cama. Não era nenhuma ligação ou alarme, o aparelho apenas acendia e apagava vibrando e vibrando. Ouviu a televisão da sala ligar e desligar, cada hora em um canal diferente. Logo todos os poucos eletrônicos do apartamento estavam ligando e desligando sozinhos, fazendo barulhos agudos, graves e estridentes. O medo subiu a espinha. Sua pele e todos os fios do cu até o topo da cabeça se arrepiaram. Será que tinha cometido um erro? Agora o pavor parecia crescer. Sua casa estava à beira de um curto-circuito, numa sinfonia eletrônica de enlouquecer. Ela tapava os ouvidos e cerrava bem os outros até que tudo ficou mudo e as luzes todas se apagaram. O breu e o silêncio tomou tudo. Sentiu um forte alívio. Talvez isso tenha sido tudo, talvez agora fosse dormir e tudo seja só um problema na rede elétrica velha do seu prédio. Deitou na cama outra vez, se escondendo embaixo das cobertas, fechando bem as pernas, pensando em rezar baixinho para que tudo continuasse a mesma coisa ordinária. Então veio a luz forte.

Primeiro era como um enorme canhão de luz na sua janela. Depois era como se o canhão de luz ao entrar no quarto se dividisse em milhares de flocos luminosos. Como quando batemos poeira embaixo do sol ou como uma dúzia de vagalumes, só que muito muito brilhantes e com uma cor estranha. Enchiam o teto do quarto, tudo parecia estrelado. Arrepiou-se de novo, mas agora porque achava tudo muito lindo. Era como uma encantaria, como fadas de luz voando à sua volta. Sentou na cama para ver melhor. A luz continuava forte e entrando, virando mais e mais pequenas luzes que tomavam quase tudo. Algumas começaram a cair na cama, iluminando também o lençol e suas dobras. Mas logo percebeu que os flocos luminosos que caiam na cama começaram devagarinho a subir pelo lençol na direção dela. Querendo alcançá-la. Luzes podem querer? Aquelas queriam e quanto mais subiam pelo lençol, mais as outras luzes do teto despencavam na cama. Agora estavam menos para fadas e mais para formigas. Como dúzias de formigas lentas e graciosas procurando um furo ou meio de chegar perto da pele da mulher. Ela se escondeu embaixo dos lençóis, agora sentia as luzes andando sobre ela desesperadas. Fazem cócegas através do tecido. Então furam o tecido e a tocam. É como pequenos choques doces. O corpo fica eletrizado. As luzes grudam na sua pele, os cabelos tornam a ficar de pé, os mamilos ficam duros, os dedos retraem e contraem grudando cerrados. E então, quando percebe que todas as luzes agora estão cobrindo cada centímetro do seu corpo, quando percebe que depois do choque não há na verdade nenhuma dor, ela relaxa os músculos, os dedos tornam a abrir e ela começa a brincar de tocar as luzes, espantá-las com a mão e ver como voam de volta, querendo se fundir nela. É um tipo novo de ser desejada. Pela primeira vez compreende a pele como um só grande órgão. Sente com nitidez toda extensão de sua pele e cada micromovimento que as luzes ou fadas ou o que quer que sejam os flocos luminosos fazem.

Estava já muito concentrada nesse novo jogo, nessa descoberta de uma intimidade veloz e que não lhe demandava nada mais do que se sacudir e arrepiar, quando percebeu que seu corpo começou a levantar da cama. Começou a levantar e não levantou-se, justamente porque aquela ação estava para além do seu controle. Não levantava simplesmente, levitava na cama, como se não pesasse nada, como se tivesse acabado toda a gravidade. “Talvez quando conhecemos uma intimidade assim tão leve, levitamos”, pensou ela enquanto subia. E subia até quase tocar o teto. Pensou que atravessaria o gesso e toda a estrutura do prédio, que seria como um fantasma ou como um herói desses de filme que fica envolto numa bola de fogo e passa indolor rasgando tudo à sua volta. Nem terminou esse pensamento e de fato as suas fadas de luz começaram a brilhar feito chamas e ela atravessou o apartamento e percebeu do alto que na verdade não estava na sua cidade, nem no seu prédio. Estava no alto de um enorme campo verde, feito uma plantação de algum lugar que desconhecia. Mas continuou subindo até sentir que ia de encontro com uma enorme nuvem cinza, molhada, que encharcou sua camisola e lambeu seus cabelos para trás. Através da nuvem chegou numa fenda, um enorme buraco no meio do céu, como uma boca. Talvez deus tivesse escutado, talvez aquilo fosse a morte, talvez aqueles fossem os portões do purgatório. Teve medo, como sempre se deve ter diante de deus. Entrou na enorme fenda, na enorme boca sem dentes. Entrou e lá dentro todas as luzes amigas, que quase pareciam uma nova pele, caíram. Era uma nova nudez, agora, voltar a ser apenas ela mesma. Os pés pousaram no chão, que era como uma rocha fria e lisa. Não conseguia andar, pois era tão lisa que se tentasse se mover, derrapava. Tentou algumas vezes, mas depois se contentou em conseguir ficar de pé. As roupas ainda molhadas revelando os peitos, a barriga, a incompreensão diante daquele estranho destino. Ficou por muito tempo nesse cômodo que era apenas chão, onde seu olho não conseguia distinguir paredes. Ficou lá esperando ansiosa que alguma outra coisa fora do seu controle acontecesse. Estava entregue, como nunca esteve em toda vida. Completamente à mercê. Um corpo que não tinha nem mais a capacidade de correr de nada, nem de espernear. Aquela espera foi lhe dando certa excitação. Cada minuto a mais que se passava, sua cabeça imaginava algo ainda mais terrível e gigantesco se aproximando. Sua buceta ficava úmida, os peitos ainda mais duros, a boca aberta arfava de dificuldade de conseguir respirar normalmente. Respirava assim pela boca como respiramos quando estamos em perigo. O que quer que fosse, deus ou outra fera, gostava de fazê-la esperar. Pelo menos ela sentia que gostava. Então continuava ali imóvel, os olhos passando de um lado pro outro. A excitação crescendo, quase pingando pelo chão. O suor e a baba da sua buceta pingando contra aquela pedra lisa e ecoando como se fossem uma torneira semi-aberta dentro de uma gruta. Quando finalmente sentiu, como que dentro das suas ideias, como que por uma bizarra telepatia, que tinha algo vindo. Que a espera tinha terminado.

A aproximação foi assim, dentro da cabeça. Sentia a presença, sem conseguir ver. Mas ouvia a presença por dentro. Era como ser penetrada por uma existência, pela existência de outro alguém dentro de você. Mas uma penetração dupla, como se na verdade duas criaturas invisíveis estivessem brincando de existir embaixo da sua pele. Ela ficou nervosa outra vez, dentro da cabeça não eram bem palavras que ouvia, mas era uma comunicação ainda sim. Levou alguns minutos para se habituar a aquela invasão. Até que sentiu que devia se masturbar. Percebeu ou decidiram juntes – ela e as existências que não podia classificar qual gênero ou forma tinham. Apenas soube que era hora de se tocar, mesmo com o equilíbrio precário. A excitação só crescia, de dentro pra fora. A mulher apertou um dos mamilos com uma mão e com a outra desceu devagar pela barriga, acariciando do umbigo para baixo até ir friccionar o clitóris, mas era como se sua mão não fosse só sua. Aquela masturbação não era exatamente se masturbar. Não estava sozinha, quando passava os dedos pelos lábios era como outras mãos lá. Mãos dentro da sua mão que guiavam seus dedos, que faziam dos seus dedos canal para outras formas de se tocar. O jeito que fazia era um jeito que nunca teria pensado em fazer. De tão gostoso, os dedos na baba da buceta faziam barulhos, barulhos molhados que ecoavam naquele estranho cômodo sem fim. Um som que se repetia no infinito, amplificado. Então sente carícias por dentro da pele, como se agora recebesse carinhos na carne, nos órgãos. Não consegue mais se masturbar pois os seres ou as presenças dentro dela decidem brincar de surpreender o seu corpo. É como levar lambidas nos ossos, sentir a pele ser beliscada do avesso, beijos no estômago. Tudo dobrado, duplicado, se esbarrando nos interiores dela. Se dividem, vão então em direções opostas. Uma das criaturas invisíveis pega os peitos dela pelo outro lado, chupa a flor de carne oculta atrás dos mamilos. A outra criatura desce e lambe as costas do clitóris, beija e morde sua face escondida, normalmente protegida pela carne dos pequenos e grandes lábios. É a transa mais vulnerável que alguém poderia sonhar. Os peitos formigam, a buceta fica mais quente, latejando e inchada. Os seres continuam. Ela geme um gemido desconhecido. Seu corpo tem espasmos, os músculos tremem, nem sabe se é possível sobreviver a aquele intraorgasmo que parece estar vindo do seu íntimo e pulsando em todas suas veias. Começam então, para além de lamber e chupar, a penetrar ela, de dentro pra fora. Meter ao contrário, do canal pro buraco. Sentem sair dela e voltar, para então sair dela de novo. Nunca ficou tão molhada, parece que vai esguichar pra fora. Os espasmos aumentam. Emite sons novos, estranhos, misteriosos. A coluna parece se sacudir. Os poros de tão abertos ficam ásperos. Os olhos viram pra trás tentando procurar o que está acontecendo interiormente, tentando entender como pode ter tanto prazer incorporado nela. Vão explodir, expandir, se desfazer. Vai gozar. E aqueles movimentos internos não cessam. As criaturas não saem dela, continuam e continuam. Metendo, saindo, acariciando. As veias dilatam. O coração bate alto, pensa que vai deixar surdas as criaturas debaixo da sua pele. Se elas decidem rasgar sua pele? Mas só arranham, de levinho. Só vão deixando marcas invisíveis. Ela não vai aguentar. O orgasmo vem. A buceta esguicha, jorra pra fora. Os peitos latejam, quase mudam de forma. A coluna dobra, abrindo espaço nas vértebras. Vê uma luz vazar do seu umbigo. É um intra gozo, um prazer extra sensorial. É intraduzível. Não emite mais nenhum som. É seco e silencioso. Atravessa o espaço. Dura uma eternidade e num segundo acaba. Saem da sua pele, da sua carne. Um abandono. É indolor, mas é terrivelmente doloroso. Não queria largar seus navegantes inomináveis. Queria que fossem dela, isso sim é demasiado humano. Sente um vazio e, num piscar de olhos, pousa de volta em sua cama.

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Ilustradora convidada:

Laura Pinheiro

Laura Pinheiro, designer gráfica, amante de impressoras e de scanners. Utilizo de processos de design para desenvolver minhas expressões.

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Julia Limp
Julia Limp
É artista multifacetada. Tem casa no teatro, onde está em formação, mas já trabalha profissionalmente precocemente como atriz e diretora. Tem quintal na música, onde canta, compõe e tem algumas coisas já gravadas e crescendo em direção ao mundo. Mas fez cama na palavra, com quem se deita e tece prosa, cada vez mais perigosa e úmida. É muito surto e muito afeto, trabalha com muito tesão e às vezes com raiva. Pode morder, mas esperamos que só de sacanagem.

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