Nosso papo hoje é sobre enredo. Sobre como são construídas as histórias para que elas ganhem vida na Avenida. Mas para seguirmos nessa direção, precisamos voltar algumas casas rumo ao passado das Escolas de Samba, até o início da sua existência e a realização dos primeiros desfiles.
Atente que o primeiro desfile oficial ocorreu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1932, por iniciativa do jornalista Mário Filho. E que desde então, a apresentação das agremiações é determinada por um ponto central: a competição. É ela que vai estabelecer as relações e empenho profissional no desenvolvimento do projeto artístico que vai atravessar a pista. Essa competição é viabilizada através de um corpo de jurados, escolhido para avaliar determinados quesitos que precisam ser cumpridos ao longo da exibição.
Para que os jurados possam mensurar a execução dos desfiles, precisam ter em mãos o projeto que a Escola propõe para o seu carnaval. Essa programação chega às suas mãos na forma de um livro: o Livro Abre-Alas. É por meio dele que os carnavalescos e suas equipes de criação vão transcrever e traduzir ideias, de modo a conduzir os leitores para dentro das histórias que pretendem contar.
O Abre-Alas se assemelha muito a trabalhos acadêmicos – teses, monografias –, em sua estrutura. É um profundo documento de pesquisa, redigido a partir de variadas referências bibliográficas, que defenderá a ideia do enredo. Nele, o carnavalesco vai levantar as justificativas que dão relevância ao seu tema, à importância de abordar tais representações naquele momento. Também vai traçar um histórico para a sua elaboração e, adiante, definir ponto a ponto do desfile, para que a construção cronológica da apresentação faça sentido diante dos olhos do público.
Olhar para o Livro Abre-Alas, tão pouco conhecido pelos espectadores dessa grande festa, nos ajuda a entender que o enredo não existe apenas no campo das ideias, ele é um tema devidamente documentado, a partir de um estudo apurado, que vai estabelecer os alicerces de sustentação da história que será contada durante os 80 minutos de desfile. Tudo o que vai passar na Avenida precisa estar no livro. Bem como tudo o que consta no livro precisa ser visualizado pelos jurados ao longo do cortejo.
Debruçados sobre o histórico do enredo, compositores vão trazer o tempero, a bossa para os mais diversos temas, com a elaboração da parte musical do desfile, que vai conectar o campo das ideias com o projeto visual e os corpos extasiados durante a exibição de uma Escola.
No decorrer do processo, outros elementos irão se juntar para fazer com que o desfile aconteça e encante o público e os julgadores. Tudo em prol de um tema, um enredo que irá tomar as comunidades e as arquibancadas.
Dito isto, que tal conhecermos um pouco das histórias que vão ser contadas pelas Escolas de Samba do Grupo Especial carioca no carnaval deste ano? Em três noites de desfile, doze agremiações atravessarão a Marquês de Sapucaí, aguerridas, com o desejo de vencer o carnaval.
No domingo, primeira noite de desfiles do Grupo Especial, o público irá acompanhar a passagem da Unidos de Padre Miguel, da Imperatriz Leopoldinense, Unidos do Viradouro e Estação Primeira de Mangueira.
Com a responsabilidade de abrir os trabalhos, a Unidos de Padre Miguel vai reconstruir a história do candomblé no Brasil, dos 200 anos da Casa Branca do Engenho Velho, precursora dos territórios de axé no país. Uma jornada de fé, que atravessa o Atlântico sob a guarda da princesa Iyá Nassô, que ao lado de outras princesas enraizou em solo brasileiro a força das crenças vindas do continente africano com os povos escravizados. Trata-se de um registro não apenas religioso, mas de luta pela liberdade, dos levantes contra a guarda imperial empreendido na revolta dos Malês. Egbé Iya Nassô é um enredo que enaltece o poder feminino nas religiões de matriz africana, que fez de territórios brasileiros sua pequena África.
Também com um enredo ligado às religiões de matriz africana, a Imperatriz Leopoldinense vai levar para a Avenida a sabedoria dos Itãs, que revela a ida de Oxalá ao reino de Oyó com a intenção de visitar Xangô. Os Itãs são contos sagrados, parábolas de saberes, de erudição. Desenvolvido pelo carnavalesco, Leandro Vieira, o enredo da Imperatriz vai apresentar histórias de reis e rainhas no continente africano. Conhecimentos distantes dos livros, transmitidos e apropriados nos terreiros.
Em seguida, a Unidos do Viradouro vai trazer para a roda a história de Malunguinho, o mensageiro de três mundos. A atual campeã do carnaval viaja até o século 19 para jogar luz sobre João Batista, o Malunguinho, líder do Catucá, maior quilombo de Pernambuco. Um símbolo de resistência e de sincretismo religioso, pois ao morrer o Malunguinho se encanta em três entidades: o caboclo das matas, conhecedor dos caminhos; o mestre Juremeiro, que ensina o poder das ervas e das folhas; e em Exú Trunqueiro, o guardião das encruzilhadas. Poderes que fez com que o culto da Jurema Sagrada creditasse a Malunguinho a ligação entre três mundos. Um enredo afro-indígena que vai traçar uma trajetória de luta e resistência ancoradas na fé.
Para fechar o domingo, a Estação Primeira de Mangueira vem mostrar como os povos bantus reconstroem sua terra em qualquer espaço. A verde e rosa aponta para as heranças dos bantus na cultura contemporânea, resultado da grande maioria de escravizados desse grupo étnico, que desembarcaram no Cais do Valongo, no Centro do Rio de Janeiro. Um enredo que vai se aprofundar na negritude carioca advinda da diáspora africana, que construiu a identidade sociocultural do Rio. Um mergulho nas diversas influências no comportamento e no idioma; somado a um olhar para os quilombos modernos, que continuam a luta por liberdade, respeito e reconhecimento, nas favelas e em outros espaços de exclusão.
Na segunda-feira quem dá o pontapé inicial é a Unidos da Tijuca, com a força de Logun Edé, o santo menino que velho respeita. Filho de Oxum e Oxóssi, Logun Edé é o rei da guerra e da água, que consegue unir com sabedoria a força de seus pais, sendo doce e benevolente, como Oxum, e sério e guerreiro como Oxóssi. A Escola garantiu uma grande atenção no período de pré-carnaval por contar com o nome de peso da cantora Anitta, entre os compositores do samba que vai embalar o seu desfile.
Em seguida é a vez da Beija-Flor de Nilópolis convocar o povo do samba para recontar a sua história ao olhar para a vida de Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, o grande mestre, Laíla. O diretor que levou a Escola da baixada ao topo do pódio tantas vezes ajudou a moldar a grandiosidade e o profissionalismo do carnaval como o conhecemos hoje. Laíla comandou desfiles históricos, com muito talento. Um grande personagem do carnaval, que vai renascer com a força de seus guias para a Marquês de Sapucaí. Um relicário de memórias da Beija-Flor e da própria festa.
A terceira Escola a se apresentar é o Acadêmicos do Salgueiro, que vem de corpo fechado para a disputa. A vermelho e branco da Tijuca vai falar de encantamento e proteção. Dos amuletos, objetos e rituais dentro da cultura religiosa brasileira que servem para nos blindar de todo o mal. Salgueiro de Corpo Fechado pode, sem dúvida, tratar da própria Escola de Samba, que como todas as outras tem suas bases fincadas na fé, nas superstições e nos cultos de matriz africana.
Encerra a noite de segunda-feira a Unidos de Vila Isabel, caprichada no medo. Com o enredo, Quanto Mais eu Rezo, Mais Assombração me Aparece, a Escola traz um trem fantasma lá das terras de Noel Rosa para levar a plateia por um passeio por lendas, mistérios e assombros. Uma viagem pelos contos do folclore brasileiro e por crenças que nos apavoraram na infância, que ainda rondam o nosso imaginário. Um desfile de arrepiar.
A grande novidade do próximo carnaval é uma terceira noite de desfiles, algo que vem sendo preparado há meses. As agremiações que vão conduzir essa inovação serão a Mocidade Independente de Padre Miguel, o Paraíso do Tuiuti, a Acadêmicos do Grande Rio e a Portela.
A Mocidade volta os olhos para o futuro, sem limites para sonhar. Uma viagem intergaláctica até sua estrela guia para pensar no futuro da humanidade, dependente da revisão do passado e presente. O enredo foi desenvolvido pelo casal de carnavalescos, Renato e Márcia Lage, que retornaram à Escola da Zona Oeste após 22 carnavais. Infelizmente, por força do destino, uma grande estrela se apagou no início do ano, quando anunciada a morte da carnavalesca, Márcia Lage, a quem a comunidade homenageará durante o seu desfile.
Com o Paraíso do Tuiuti o público vai assistir um dos enredos mais corajosos que a Sapucaí já presenciou. A história de Xica Manicongo, a primeira travesti não indígena do Brasil, escravizada e trazida da região do Congo no século XVI. Xica era respeitada pela sociedade africana. Trazida para Salvador, é torturada pela inquisição portuguesa, que promove o apagamento da sua identidade, com a imposição de uso do nome masculino, Francisco. Somente com a luta do movimento de travestis e pessoas trans a historiografia é corrigida, conferindo a Xica seu nome, um verdadeiro título de nobreza. Ao defender esse tema, o Tuiuti ergue uma bandeira importante, sem medo de preconceitos, pois a arte tem uma força política inigualável.
E por falar em força, a Grande Rio vem a seguir com o vigor das Pororocas Parawaras, uma homenagem ao estado do Pará a partir das entidades encantadas que vivem nas pororocas, o encontro das águas. Essa história começa a partir de um naufrágio, em que três princesas turcas, vítimas do acidente, viram encantadas da floresta. É a encantaria do norte do Brasil representada na Passarela do Samba, com o tambor de mina, o carimbó e a cultura popular. Um movimento interessante que aconteceu durante o processo da Grande Rio foi a escolha do samba que irá defender. A Escola abriu uma disputa paralela no Pará. A composição vencedora no estado foi trazida para a disputa final, na quadra da tricolor de Caxias e sagrou-se campeã. A obra de Mestre Damasceno, importante mestre de Carimbó, faz com que o paraense dê voz à sua própria cultura, o que é um grande acerto.
E finalmente, encerraremos o carnaval com uma homenagem inesquecível. Com o enredo, Cantar Será Buscar o Caminho Que Vai Dar no Sol, a Portela dá o devido reconhecimento a um dos maiores artistas brasileiros: Milton Nascimento. Um talento merecedor da maior homenagem que uma pessoa pode receber: ser cantado por uma Escola de Samba, no maior Espetáculo da Terra. É um sentimento que a cerimônia entediante do Grammy nunca vai entender. Aplaudir e reverenciar um artista do tamanho do Milton é uma forma deliciosa de se despedir da folia e de sentir saudade dessa festa maravilhosa, até que se iniciem os trabalhos para 2026.
E aí, ficou com água na boca? O carnaval é logo ali! As escolas de samba já estão há meses realizando ensaios de quadra e de rua. E há algumas semanas, os ensaios técnicos no sambódromo, o campo do jogo. Fica ligado na programação e se joga.
Vale dizer que trouxe aqui apenas um aperitivo do que são todos esses enredos, recheados de detalhes e preciosidades. Caso tenha se interessado, sugiro que dê uma lida nas sinopses de cada Escola. É fácil de encontrar. Aliás, fica uma dica: quando lemos as sinopses dos enredos antes de assistir aos desfiles, as apresentações ficam com um sabor ainda mais especial, pois entendemos cada elemento e conceito apresentado. Experimenta!
Os enredos e livros Abre-Alas também são um grande material de estudo para trabalhar em sala de aula, seja pelo potencial artístico, literário, histórico, geográfico. Mas aí é papo para um outro momento. Depois que a poeira de glitter baixar, prometo que volto para falar disso.
* * *
Imagem de capa por:
Mariana Rosa

Acredita que a vida sem a arte seria um erro. Dito isso, tem a necessidade de consumir e de produzir arte de todo o tipo. É do audiovisual, das artes visuais e da escrita, mas o teatro pulsa também. Faz Comunicação Social na UFRJ e fica igual pinto no lixo na natureza.
Conheça o trabalho da Mariana no seu instagram.
Leia também:
-
- Identidade e Samba no Pé
- A Transcendência
- A fórmula do Dr. Pilsenstein
- O carnaval subversivo na terra ancestral pau-brasil
- A Esperança
- Joe Pease e a vida em diferentes camadas
- Summer Wagner e o sonho febril do mundo pós-industrial
- Lembrar do futuro, descobrir o passado
- Futebol, fotografia e samba: a poesia corinthiana
- O Sonho dos Heróis