Identidade e Samba no Pé

Reflexões sobre o carnaval - parte 1/4

Imagem de capa por: Mariana Rosa

Não há nada mais bonito e envolvente do que as escolas de samba. Sim, faço questão entrar com o pé direito neste plano virtual carregando essa frase nos braços, ainda que pareça fora da ordem natural do texto. Ela será a introdução, o desenvolvimento e a conclusão do que há de vir daqui em diante. Simples desse jeito, sem firulas e arrodeios: definitiva!

Entendo que para você, talvez, ela não tenha valor ou sentido. O carnaval, afinal, é apenas uma festa. Será?! Eis que lhe estendo a mão como um convite a observar a imensidão desse universo de cores, de ritmos, de ancestralidade, de brasilidade e de múltiplas artes.

Arte a perder de vista. Quando a sirene toca na Marquês de Sapucaí e os portões se abrem, cada agremiação impõe um levante artístico. Os planos para este movimento se iniciam com meses de antecedência, nos quais um tema foi estudado e trabalhado à exaustão. Este é o enredo, a história a ser contada: dramaturgia pura, com grandes atos e encenações. A partir dela desenrolamse diferentes linguagens e formas para que esse enredo seja não apenas narrado, mas sentido, pois a arte é de fazer sentir. E o desfile é o maior palco, a maior galeria a céu aberto do planeta. Vamos começar, pois, pela música e pela dança, as raízes inaugurais dessas instituições que transformaram terreiros em quadras, ergueram suas bandeiras e tomaram as ruas, provocando a euforia dos corpos, a performance.

O samba é um ritmo ancião, em que o tambor dialoga com o ancestral e conversa diretamente com o corpo, que se manifesta com graça e êxtase. O pulso da bateria é música e fé, faz com que compassos e acordes alcancem o sagrado, com um toque aos seus orixás. Os músicos marcam o andamento do cortejo, enquanto dançarinos rabiscam o chão. Com uma observação levemente atenta qualquer espectador é capaz de identificar ao lado da dança popular, elementos da dança clássica ou contemporânea. Passos e coreografias que buscam referências das mais diversas para fazer com que troncos e membros traduzam som em cinesia.

Aqui, peço licença para uma repetição: não há nada mais bonito e envolvente do que as escolas de samba. Essa estrutura artística é de uma complexidade tamanha, que não cabe em uma galeria ou um museu. Ela acontece pura e unicamente ali, naquele instante. Fica gravada na memória, mas se perde enquanto matéria. Os materiais se ressignificam para que, em um próximo carnaval, voltem com outras formas para contar novas histórias. É arte efêmera como o sentir.

Mas a grandiosidade vai muito além. Na capacidade de transformar os anônimos em artistas genuínos, de fazer dos seus espaços lugares de encontro, de comunhão e de fala. Uma organização social somente decifrada quando vivenciada. Fundamentada na ancestralidade e no respeito aos mais velhos, que pavimentaram o chão sagrado de cada agremiação, algo que faz com que a modernidade seja um complemento, sem extinguir a tradição.

As Escolas de Samba guardam em si parte da história. Uma herança inestimável contada, em sua maioria, na oralidade. Por mais que historiadores tenham se debruçado em registrar os fatos e personagens, o todo é impossível. Jamais saberemos. A cada luto nos despedimos de uma fração de memória.

É preciso entender, ainda, o papel educacional das agremiações, que as colocam como instituições fundamentais na construção da identidade de um povo. Ao longo dos anos enredos e sambas retrataram a história do país. E cada vez mais os carnavalescos com seus pesquisadores tem se dedicado ao aprofundamento nas histórias não contadas. No Brasil que a história oficial escondeu. As narrativas negras apagadas, e aquelas que sequer foram parar nos livros por enfrentarem o eurocentrismo que nos inunda, são escritas e reescritas. A verdadeira história do povo brasileiro, que luta e sonha, e suas raízes ancestrais, emergem em cores e brilho diante dos nossos olhos.

Importante dizer que o desfile é apenas a foz, em que um rio caudaloso deságua suas ações de um ano inteiro. O desfile não é a razão de existência, apenas o ato final de um ciclo, a explosão de energia de um átomo que se agita por meses até o grande impacto. E isso também é uma grande vitória. Nenhum outro evento no mundo, com dimensões aproximadas, se organiza e executa em período tão curto.

Dito isso, apontamos apenas uma parcela da riqueza cultural que as Escolas abrigam. Trabalho de um ano inteiro, de vidas inteiras. Sustento de famílias e de uma cidade que aprendeu a ser turística com o samba no pé. Um acontecimento colossal que não pode ser entendido apenas como uma festa. É muito, muito maior do que isto. Não é sobre corpos desnudos, sobre profanação ou outras frases pejorativas que dizem por aí. Carnaval é potência cultural, uma força viva.

Carnaval tem valor e faz parar o tempo. Confesso a você que por um momento, no primeiro recuo da bateria, o tempo para e o silêncio ao nosso redor é interrompido pela voz do Gil sussurrando baixinho no ouvido: o melhor lugar do mundo é aqui e agora.

* * *

Imagem de capa por:

Mariana Rosa

Acredita que a vida sem a arte seria um erro. Dito isso, tem a necessidade de consumir e de produzir arte de todo o tipo. É do audiovisual, das artes visuais e da escrita, mas o teatro pulsa também. Faz Comunicação Social na UFRJ e fica igual pinto no lixo na natureza.

  Conheça o trabalho da Mariana no seu instagram.

Siga o TREVOUS ⚡️ nas redes sociais: InstagramTwitter e Facebook.
Artigo anterior
Próximo artigo

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui