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Summer Wagner e o sonho febril do mundo pós-industrial

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A “fotografia ensaiada” ou Staged Photography, é um gênero que tem ganhado minha atenção mais recentemente. Sempre fui muito fã do Street Photography. Acho fascinante a habilidade de conseguir enquadrar algo interessante ao vivo, no improviso. O que torna o contrário, não lidar com o imprevisível e montar uma fotografia do zero, uma ideia limitada, onde poucos fotógrafos se destacariam. Algo que debato comigo mesmo depois de conhecer o trabalho de Summer Wagner.

Chemical Baptism One: Cult of Pebbles (2022)
Overgrowth at the Abandoned Millwood Plant (2022)

Formada em cinema, a fotógrafa americana Summer Wagner foi mais uma a emergir no boom dos NFTs, com trabalhos vendidos em formato de coleção. Tem uma técnica de trabalho bem consistente que usa longa exposição somada a um tratamento de cor para brincar com a luz e o tom de suas fotos. Dando um ar sobrenatural às suas composições.

Seus primeiros trabalhos, como “The In-Between”(2021) e “The Parody of Tangled Thread” (2022) são experimentos dessas técnicas. São obras variadas, que pouco parecem construir uma narrativa ou um tema concreto. Se utilizando de locais, tons, personagens e abordagens diferentes. Muitas delas, inclusive tendo a própria Summer como objeto fotografado. O que fica desse começo são algumas temáticas: a relação entre as fontes de luz com os indivíduos e os locais com os mesmos.

A verdade é que o grande trunfo de seu trabalho está na história que a forma como artista. Apesar de passar sua adolescência na Califórnia, Summer começou suas fotografias quando regressou a sua cidade natal no “Cinturão da Ferrugem” (Rust Belt). Um local do meio-oeste estadunidense que recebeu esse nome graças ao processo de decadência de inúmeras indústrias desde os anos 1950. Com pátios vazios e sem trabalhadores, o que restou nessas cidades de interior foi uma classe média estagnada e a ferrugem das fábricas fechadas.

Como o ambiente sempre foi um elemento crucial em suas fotografias, aos poucos seus trabalhos começaram a dar uma atenção maior a este local, deixando de ser apenas um pano de fundo e se tornando um personagem à parte. Ainda contemplando sobre o espiritual, mas também sobre o meio ambiente e a tecnologia nesse meio “pós-industrial”. O resultado disso é a sua mais recente coleção “Midamerican Fever Dream”(2023/2024).

“A paisagem é tão agente sobre um personagem quanto o personagem é um agente sobre a paisagem em si.” – Summer Wagner, sobre “Midamerican Fever Dream”

Fonte: summerwagner.com

Nesse trabalho, Summer traz vários recursos para construir uma narrativa que misture todo o espiritualismo dos seus trabalhos anteriores com o contexto social que ela aborda. São fotos acompanhadas de textos e animações. Contando a história de uma família que depois de um ritual, deve se confrontar com suas próprias sombras. Refletindo sobre o que esses indivíduos se tornaram após se desgastarem nessas industrias acabadas.

Theatre of Salt and Stone (2023)

December, 1949 Judith: for when you are in your winter and in need of deep change in direction and spirit. The ritual I’ve drawn is best practiced on a waning or new moon. Like the seed planted in dark soil, you will start your journey in the shadows. The greatest alchemy we achieve through our practice is the transmutation of the soul. It is easy to know ourselves, but a great challenge to transform what we know into something entirely new. Drink deep. The wind through the tunnel will be beastly for a time. Sweep the path before casting the circle, your mother doesn’t tend to the tunnel since your father started back at the factory. Yours, Grandma Helen

Dezembro, 1949 Judith: para quando você estiver no seu inverno e precisar de uma mudança profunda de direção e espírito. O ritual que desenhei é melhor praticado em uma lua minguante ou nova. Como a semente plantada em solo escuro, você começará sua jornada nas sombras. A maior alquimia que alcançamos por meio de nossa prática é a transmutação da alma. É fácil nos conhecermos, mas um grande desafio transformar o que sabemos em algo inteiramente novo. Beba profundamente. O vento através do túnel será bestial por um tempo. Varra o caminho antes de lançar o círculo, sua mãe não cuida do túnel desde que seu pai começou na fábrica. Sua, Vovó Helen

Douglas Live (2024)

A spiritual war taking place. A battle for the soul of every person alive. Children of the light and dark. Regular people caught in crossfire. We must take responsibility. We must build an ark. Oatmilk and lip balm for Bridget.

Uma guerra espiritual acontecendo. Uma batalha pela alma de cada pessoa viva. Filhos da luz e da escuridão. Pessoas comuns pegas no fogo cruzado. Devemos assumir a responsabilidade. Devemos construir uma arca. Leite de aveia e protetor labial para Bridget.

Coming of Age (2024)

And she unfolds.
Like holiday paper.
Like a piece of silk.
Like laundry on the line
For all to see
She unfolds
Like a dream with no story.
Like a lost memory
Like a forgotten feeling
And it hurts
Like a dream with no story
Like a lost memory
Like a forgotten feeling

E ela se desdobra.
Como papel de embrulho.
Como um pedaço de seda.
Como roupa no varal
Para todos verem
Ela se desdobra
Como um sonho sem história.
Como uma memória perdida
Como um sentimento esquecido
E isso dói
Como um sonho sem história
Como uma memória perdida
Como um sentimento esquecido

Blue Bird (2024)

It’s where dad worked. That big abandoned building on Main Street. They say it’s the biggest abandoned building in the whole United States. It’s so big, it’s where we built machines that build the machines. Anyways, this place built textile machines, and it built me in a way. That sort of thing. A place kind of shapes you.

I’m standing in front, outside the gates. I’m there for an interview but the whole place is boarded up and falling apart. I feel…soft and swollen. I feel something in my chest, like when you’re about to cry and there’s that tightness and that lump. But the lump gets bigger and bigger and I can feel it coming up my throat until finally this bird, a bluebird, flies out right onto my hand! He’s staring at me and I’m staring at him, little guy. I felt bad for him, you know, being stuck there inside me for so long.

É onde meu pai trabalhava. Aquele grande prédio abandonado na Main Street. Dizem que é o maior prédio abandonado de todos os Estados Unidos. É tão grande que é onde construímos máquinas que constroem as máquinas. De qualquer forma, esse lugar construiu máquinas têxteis, e me construiu de certa forma. Esse tipo de coisa. Um lugar meio que molda você.

Estou em pé na frente, do lado de fora dos portões. Estou lá para uma entrevista, mas o lugar todo está fechado e caindo aos pedaços. Eu me sinto… mole e inchado. Sinto algo no meu peito, como quando você está prestes a chorar e há aquele aperto e aquele caroço. Mas o caroço fica cada vez maior e eu posso senti-lo subindo pela minha garganta até que finalmente este pássaro, um pássaro azul, voa direto para a minha mão! Ele está olhando para mim e eu estou olhando para ele, garotinho. Eu me senti mal por ele, sabe, por estar preso lá dentro de mim por tanto tempo.

Seja pelo domínio da técnica ou sobre as temáticas abordadas, Summer consegue ser uma das maiores expoentes atuais desse gênero de fotografia. Seu trabalho pôs uma pulga atrás da minha orelha sobre a fotografia ensaiada. Ainda acho ser um espaço meio limitado para inovar e ser criativo. Mas ainda assim, quando um artista consegue inovar nesse espaço, ele faz jus ao seu trabalho e faz com bastante mérito.

Para conhecer mais do trabalho de Summer, acesse seu site ou siga-a no Instagram ou twitter.

Lembrar do futuro, descobrir o passado

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Poucos meses depois do período anual da seca e da horripilante nuvem de poeira que cobriu grande parte do Brasil, assistimos estarrecidos aos incêndios na Califórnia e agora às chuvas em São Paulo. As imagens de Los Angeles chocaram, eram cenários de verdadeira destruição.* Nem mesmo os ricos dessa vez puderam se salvar. Ao mesmo tempo que o fogo lambia as mansões americanas (e também muita gente pobre que vive em Los Angeles, que tem uma esmagadora população em situação de rua), fomos lembrados pelo noticiário que a mesma região foi banhada por chuvas recordes poucos meses antes. Trágica ironia, toda a água que lavou a Califórnia escorreu de uma vez só para o Pacífico e não restou nem um pinguinho para aliviar a situação de janeiro. Depois da catastrófica enchente de Porto Alegre, agora as águas lavam a capital paulista. Imagens absurdas das estações de metrô mostram passageiros se equilibrando em parapeitos para não serem carregados pela correnteza subterrâneo adentro. Já disseram que todos nós, mais cedo ou mais tarde, nos tornaremos refugiados climáticos, a brevidade só dependendo da classe social de cada um. Claro, quem faz parte dos 0,001% mais ricos do mundo já deve ter solução em vista, com delírios de colonizar Marte ou se enfia num bunker no Havaí.

Todo ano os extremos climáticos parecem escalar, e em grande parte, graças a nós mesmos. Dois lados da mesma moeda, a seca extrema e as chuvas torrenciais, são manifestações do Antropoceno, período em que nos tornamos uma força geológica, resultado das múltiplas atividades humanas. Nosso impacto pode ser global, mas ainda somos incapazes de encarar as consequências, e quase nenhum governo parece querer tomar providências. Ricardo Nunes acabou de ser reeleito em São Paulo, aliás.

Pensar o Antropoceno envolve várias camadas de entendimento; o científico, o filosófico, o o político, econômico e até psicológico. Nesse cenário de imprevisibilidade, começamos a esperar pelo pior de cada estação do ano. Já provaram aliás que sofremos uma espécie de luto ecológico, uma forma de depressão que abate muita gente com alguma consciência ambiental (os artigos e discussões sobre esse fenômeno são abundantes). Há quantos anos não viemos nos deprimindo com o lastro dos incêndios no Brasil? A sensação de impotência é devastadora. Há uma nova corrente da psicologia que aborda a questão e de forma clinica, a ecopsicologia, que demonstra que além dos impactos físicos, hoje a nossa saúde mental também é afetada pelo aquecimento global. O fato é que ficou difícil vislumbrar um futuro habitável com um clima que a cada ano se comporta cada vez mais errático. E se você faz parte dos 99,999% da população mundial, provavelmente você já deve ter imaginado como vai ficar a sua casa, ou a de seus pais ou de amigos, quando as águas descerem, ou o fogo e a fumaça causarem outras reações em cadeia. Não quero falar dos malucos do movimento prepper, do sobrevivencialismo egoísta. Busco caminhos mais comunitários, e projetos mais eficazes. Quero beber de fontes comprovadas. Como por exemplo este, a seguir, que vem de uma galáxia muito, muito distante, de muito tempo atrás (quem lembra da abertura de Star Wars: “A long time ago in a galaxy far, far away….“?).

Cúpula sobre Manhattan, colagem de Buckminster Fuller e Shoji Sadao, 1960

Podemos vislumbrar novos caminhos em tempos de extremos? Às vezes a minha passagem de sete anos pela faculdade de arquitetura e urbanismo me faz fantasiar projetos à la Buckminster Fuller, o cara que desenhava em escala planetária. Nossa imaginação realmente não pode se limitar ao possível e ao realizável, mas deve sim ir muito além do que conhecemos. A inspiração aqui vem do oriente, da região que hoje conhecemos como a Índia. Já faz um tempo que venho pensando nos antigos reservatórios de água indianos. Matutando, por que será que não usamos métodos tão simples que algumas sociedades já haviam testado há tanto tempo atrás? Qualquer um que já tenha visto esses monumentais tanques espalhados pela Índia deve se perguntar “mas como não estamos construindo esses reservatórios até hoje em dia?”. Os indianos que conhecem bem os extremos climáticos, com as chuvas de monção, que lavam o país todo ano, podem nos ensinar muito. Essa civilização caleidoscópica, múltipla em culturas, fés, etnias e línguas, de uma culinária abençoada pelos deuses, a Índia além de tudo, abriga arquiteturas ímpares e deslumbrantes. Não falo dos templos e palácios suntuosos apenas, mas de outros edifícios e infraestruturas menos famosas, que só confirmam a genialidade dos antigos.

A primeira vez que vi um desses reservatórios indianos foi no filme de Tarsem Singh, “Dublê de Anjo” (“The Fall”, 2006) e foi amor à primeira vista. Aliás, a direção de arte e todas as locações deste filme são espetaculares. Uma produção sem precedentes, filmada em 28 países ao longo de 4 anos, “The Fall” é uma odisseia sensorial que mereceria muitas e muitas outras conversas por aqui. Enfim, em dado momento do filme há uma cena em que uma multidão de figurantes adentra um desses antigos receptáculos gigantes (um “stepwell” em inglês), cuja geometria parece ter inspirado o M.C. Escher séculos mais tarde.

 Cena de “Dublê de Anjo” (“The Fall”), 2006

A palavra “stepwell” é difícil de se traduzir. Ela descreve os poços que incluem degraus para se acessar a água à medida que o nível vai baixando. São como pirâmides invertidas. Os planos inclinados, rodeados de degraus de lances simétricos, vão formando uma repetição de padrões que faz a gente delirar. Logo depois de ver o filme há anos atrás, fui fuçar a internet em busca dessa arquitetura inacreditável. Desde então, guardo algumas dessas localizações num mapa que vou salvando no Google Maps, sonhando um dia em visitá-las.

Chand Baori, um dos reservatórios mais conhecidos da Índia. Construído no século 9, com 13 lances de escadas e 30 metros de profundidade.

Alguns reservatórios foram construídos há mais de cinco mil anos atrás, para fins sanitários, mas também religiosos. Como a água era entendida como a fonte de todas as formas de vida na mitologia Hindu, nada mais lógico conservá-la e reverenciá-la. Também considerada uma fronteira entre a terra e o paraíso na cosmologia indiana, a água é elemento de purificação e renovação, fazendo parte essencial de ritos e liturgias. Em todo subcontinente indiano se encontram muitos, aliás milhares, desses reservatórios. Alguns de formato mais rebuscado ainda, com colunatas, portões, séries de salões para serem inundados pelas águas das monções. Arquiteturas imersas que nossa imaginação, hoje poluída pelas imagens geradas por IA, não poderia acreditar. Parece que mesmo os engenheiros indianos contemporâneos estão tendo que estudar para resgatar esse conhecimento perdido. Segundo a BBC, muitos desses poços antigos estão sendo limpos e finalmente revitalizados, depois de séculos de esquecimento e abandono. A autora Victoria Lautman chama esses reservatórios de “gates to the underworld” (“portais para o mundo subterrâneo”, para outra dimensão) no livro “The vanishing stepwells of India” (“O desaparecimento dos poços da Índia”, tradução minha). Segundo ela, os “stepwells” são especiais pois normalmente olhamos para arquiteturas de baixo para cima e não de cima para baixo.

“Quando olhamos para a sequência de degraus em escala, as colunas se erguem, criando vistas cambiantes, ​​que vibram num jogo de luz e sombra fascinante e misterioso” – Victoria Lautman, “The vanishing stepwells of India”

Nunca tive a oportunidade de visitar a Índia, mas imagino como a experiência seria – algo como aterrissar em outro planeta talvez? (com pitadas de Star Wars, fantasia minha). Um universo, ou melhor, um pluriverso de histórias intrincadas, muito além do capítulo infeliz da colonização inglesa mais recente, mas também feito de paisagens luxuriantes e fauna abundante. Um país de que em geral conhecemos muito pouco, dada a distância física e cultural entre Brasil e Índia. Mas será que, não só nós, brasileires e brasileirx, mas todo o mundo, não poderiam aprender mais com a Índia?** E a dica fundamental dos engenheiros hindus? Será que além de preservar água poderíamos fazê-lo de uma forma mais impressionante e elegante; quem sabe até contribuir em rituais contemporâneos? Desde que a água seja reutilizável, para que se salvem nossas florestas, nossas casas, não vejo porque não.

Para ler mais sobre os Stepwells, clique aqui.

*Em tempo: A situação inaceitável de violência e de apagamento do povo Palestino dura mais de 16 meses de guerra, além dos 76 anos de ocupação ilegal por Israel. Agora vamos torcer para o cessar fogo dessa vez ser pra valer e dar algum alívio em Gaza. O povo palestino merece todo apoio e ajuda na luta contra o apartheid. Quem chama a questão de “conflito” ignora consciente ou inconscientemente a história desse povo que sobrevive a duras penas. Uma cultura maravilhosa que vem sendo invisibilizada, perdendo território, sofrendo empobrecimento, preconceito e racismo. A luta palestina é a mesma luta de tantos outros povos que foram colonizados e oprimidos. Suas casas tomadas, suas crianças mutiladas, sua terra envenenada há mais sete décadas. Entender os movimentos de resistência atuantes tanto na Palestina quanto no Líbano é entender História.

** Ironicamente a humanidade como um todo parece sofrer amnésia. O fato dos reservatórios indianos, por mais gigantescos que sejam, terem sido ignorados como método comprovado de combate à seca, evoca aquele dizer conhecido: “Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”, atribuído ao filósofo e poeta espanhol-americano George Santayana.

Futebol, fotografia e samba: a poesia corinthiana

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Em meados do último semestre de 2024, o Corinthians mudou sua identidade visual nas redes sociais, adotando um padrão mais sóbrio de artes em todos os sentidos – tanto para notificar partidas novas quanto para escalação e informes.

O visual sóbrio das redes sociais do Corinthians a partir do segundo semestre de 2024

As informações ficam nos cantos, valorizando muito mais a imagem. Com fontes simples, recortes e sobreposições dos personagens em relação aos textos, o visual minimalista provocou muito mais elegância para as publicações do time.

Essa nova identidade visual, apesar de simples, trouxe, além das mudanças estéticas, uma nova tendência: o carrossel da vitória.

Utilizando fotos da partida, o designer monta um carrossel para o Instagram, mesclando as imagens dos jogadores e torcida com a letra de alguma música. Quase sempre um samba, mas sempre uma música de amor.

Por que isso é relevante?

A devoção e poesia do samba

A poesia do samba é incontestável. Poucos ritmos são capazes de gerar devoção, emoção e divertimento num mesmo compasso, num mesmo ritmo e na mesma intensidade.

É quase impossível não ouvir “Castelo de um Quarto Só” ou “Nossa Escola” e não se emocionar nem um pouco. Samba é prá se cantar com a mão no peito e cabeça erguida aos céus.

Sabe o que mais gera esse sentimento? O futebol.

E então vemos a poesia e a devoção das composições, se encontrando com essa mesma devoção que o futebol corinthiano demonstrou nos últimos meses. O escape do rebaixamento, a retomada de um time cada vez mais consistente, o apoio incondicional da torcida que esteve presente em cada momento… existe poesia maior do que essa?

Somente um ritmo produzido nas ruas, pelo povo, poderia ser dotado de tanto sentimento. Bem como o esporte mais popular, a junção do samba e do futebol é inerente – pela história, pelas classes onde a identificação é mais latente e porque não há nada que combine mais com um pós jogo vitorioso do que uma roda de samba bem tocada.

A conexão entre a torcida, o time e a rede social

Não precisa de muito para saber o quanto a torcida do Corinthians é apaixonada. Acompanhando um único corinthiano convicto é possível saber que seu corpo é composto por 10% de água e 90% de Corinthians. A vivência Corinthiana está dentro e fora dos estádios e se reflete no dia a dia do torcedor, tornando cada coisa banal em uma paixão única pelo time. Amor de verdade.

De encontro a isso, temos um mundo globalizado, encharcado pelas redes sociais, que refletem também o dia a dia de toda uma sociedade. E quanto mais as instituições se afastam de seu público, criando barreiras, vemos que o Corinthians seguiu o caminho oposto no aspecto da mídia social.

A união entre aquilo que pode traduzir o amor pelo seu time inserido no espaço que mais habitamos atualmente, cria o senso de comunidade. Não é apenas um sentimento meu, do meu amigo ou da torcida, de forma isolada. O time, a instituição, também entende e percebe esse sentimento. Isso gera pertencimento para além da arquibancada. E mais do que pertencimento, demonstra respeito pelo sentimento de milhares de pessoas que acompanham o Corinthians dia após dia.

Elenco do Corinthians agradecendo a torcida no último jogo do Campeonato Brasileiro de 2024. Foto: Rodrigo Coca.

O resultado da sensibilidade entre música e fotografia

A tendência dos carrosséis da vitória se iniciou da maneira mais propícia possível. A primeira música escolhida para ilustrar foi “O Show Tem Que Continuar”, do Arlindo Cruz. Em um momento onde o time se encontrava na obscuridade da zona de rebaixamento, vimos a luz no fim do túnel e encontramos o tom, o acorde e o ano finalizou-se no mais lindo dos sons.

Uma palavra que define esse novo escopo de carrossel nas redes do Corinthians é sensibilidade. Um dos carrosséis mais marcantes utilizou a música “Água de Chuva no Mar”, de Beth Carvalho, que canta sobre um amor incondicional, profundo e que parece vir de outras vidas. Não existe forma melhor de definir o que um torcedor sente por seu time.

E quando mencionamos sensibilidade, não estamos falando apenas do sentimento pelo sentimento. É também a sensibilidade de enxergar os detalhes e relacionar com letras que parecem se encaixar perfeitamente. Já em 2025, na partida contra o Velo Clube, o carrossel da vitória utilizou a música “Eu Mereço Ser Feliz”, do Mumuzinho, e se inicia com o verso “o dia tava tão lindo”. Naquela noite, o céu ficou roxo ao escurecer.

Na partida contra o Bragantino, houve fortes chuvas por toda região de São Paulo, dentro e fora da capital. Para o carrossel, a música “Que Maravilha” de Toquinho, se encaixou perfeitamente.

Saindo do Instagram e criando ainda mais contato com o torcedor, o Corinthians criou uma playlist com as músicas utilizadas nos carrosseis até então.

Do ponto de vista das mídias sociais, o time de marketing digital do Corinthians tem feito um trabalho brilhante, moderno e muito bem executado. Do ponto de vista do torcedor, é lindo saber que nosso sentimento bate na instituição e volta para nós de uma forma tão palpável.

O Sonho dos Heróis

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Ah, o Carnaval. Época do ano em que até um eremita digital misantropo e cínico abre mão de suas convicções morais e metafisicas em nome do prazer efémero e salgado. Sim, período em que hipocritamente me permito frequentar espaços que desafiam os conceitos estabelecidas pela boa ciência. Data em que comungo com os jovens e imito suas certezas, exaltando os equívocos há muito conhecidos, bebendo cervejas quentes, respirando o doce ar da imbecilidade, enquanto canto canções ruins. Por esse breve momento, transformo-me em um tresloucado gregário que é basicamente o sujeito que mais odeio. Talvez resida justamente ai, a tal magia da festa da carne, especialmente para alguém abstémio em proteína e intolerante à apoteose.

Em franca sintonia ao espírito festivo e sem consequências, quebro minha premissa de resenhar aqui apenas autores proscritos da flora nacional, para trazer algumas linhas de reverência  ao “O Sonho dos Heróis” do argentino bacana Adolfo Bioy Casares.

O Sonho dos Heróis

Importante destacar que o livro de Bioy eleva a literatura fantástica ao mais alto patamar. De início, o leitor é envolvido em uma trama mundana, ordinária, num estilo bem semelhante ao “O Sol também se levanta” do Hemingway. Porém, em determinado momento, somos alertados pela seguinte advertência:

“Agora é preciso andar devagar; com muito cuidado. O que vou contar é tão estranho que se eu não explicar tudo com muita clareza não vão me entender nem acreditar em mim. Agora começa a parte mágica deste relato, ou talvez todo ele fosse mágico e só nós não tenhamos percebido sua verdadeira natureza.”

Buenos Aires, verão de 1927, uma trupe bem boêmia se esbalda torrando um prêmio, que o protagonista, Emílio Gauna,  ganhou em uma corrida de cavalos, em pleno Carnaval argentino. Três anos depois, Emílio permanece preso aos episódios desse evento, buscando em suas reminiscências desvendar o que realmente ocorreu na última noite da festividade, que por uma estranha razão entende ter sido o apogeu de sua vida.  (Para os cinéfilos de gosto duvidoso, imagine o famigerado “Cara, cadê meu carro?” só que com toques fantásticos, uma narrativa sofisticada, envolvente,  e sem personagens muito idiotas no caminho.) Aos poucos percebemos pequenas doses que flertam com o insólito, embora todas essas pontas mantenham laços com o real. Diante dessa atmosfera estranha, Bioy nos conduz por vielas sujas e ruínas oníricas, onde destino e premonição se enroscam.

Forças antagônicas como o Bruxo Taboada e o Professor Valerga duelam em segundo plano, com uma sofisticação narrativa sem precedentes. A incompreensão do amor e a brutalidade gregária equilibram reflexão e imagem. Destaque para a violência do episódio de sadismo contra um cavalo, que serve justamente como uma revelação da real natureza dos personagens.

No final, precisamente em sua última página, o autor descortina o mistério e oferece um vislumbre de toda sua genialidade. Enfim, descobrimos o verdadeiro significado do “Sonho dos Heróis”.

Definitivamente é um livro que marca, que desperta e que com extrema competência te convida para uma nova leitura.

Diário da Guerra do Porco
A invenção de Morel

Não obstante acreditar que não se deve estabelecer patamares entre obras do mesmo autor, sob pena de parecer um tiktoker literário que distribui notinhas como um professor do primeiro ano, creio que o esplendor do  “O sonho dos Heróis” está ligeiramente acima do incrível  “A invenção de Morel” e bem ao lado do fascinante e cruel “Diário da Guerra do Porco”.

Em suma, viva a literatura Latino-americana.

Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️
Um milhão de latões por apenas dez reais.
Título: O Sonho dos Heróis
Autor: Adolfo Bioy Casares
Editora: Tag Biblioteca Azul
Ano: 1954

Ps: Por fim, longe da maestria de Bioy, ou de qualquer escritor que consiga conjugar um verbo e unir duas ou três palavras formando um frase, confesso que certa vez também me aventurei em uma trama de Carnaval. Num Rio de Janeiro que jamais existiu, anacrônico por excelência e serventia, pelo realismo mágico das inigualáveis ruas da Lapa, juntei Glauber Rocha e um irritante Woody Allen para um perseguição ao famoso Saci Pererê. O conto foi publicado na antologia “Devaneios improváveis” do Entrecontos.

(caso tenham porventura e por ventura um inexplicável desejo de ler essa modesta estória, prometo que vou pensar em um jeito de publicar, gratuito, claro!)

Tatsuya Tanaka e a reinvenção do cotidiano em miniatura

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Quando eu era pequeno, sempre gostei de brincar reinventando objetos que tínhamos em casa: controles remotos eram naves espaciais, placas de computador eram cidades e móveis eram prédios. Tudo isso meio fora de escala, claro, mas ainda assim mostrava meu gosto por maquetes de cidades (que virou um vício em jogos de construção). Parece uma visão limitada a infância, mas ao conhecer o trabalho de Tatsuya Tanaka, tomei uma outra perspectiva sobre essa ideia.

Tanaka é um fotografo japonês de 44 anos que desde 2011 deixou de focar suas lentes para o macro e passou a pensar no micro. Desde então ele se propôs a expandir sua criatividade com o Miniature Calendar: um projeto no qual se monta cenários que reinventam os conceitos originais de objetos e espaços. Fabricando um diorama por dia.

Dessa “brincadeira”, Tanaka já criou mais de 4.000 obras, todas elas publicadas em seu Instagram, que hoje conta com quase 4 milhões de seguidores. Nesse meio tempo a escala e os tipos de materiais foram variando. Quanto mais seu trabalho foi reconhecido mais recursos ele precisou, o que o obrigou a alugar um estúdio próprio para seus dioramas. Porém, mesmo que suas obras sejam mais complexas hoje em dia a sua essência permanece a mesma: Para quem encara de primeira, existe uma certa provocação visual. Meio que um “Onde está o Wally?” do objeto que foi reinventado. Algo que quando descoberto vira uma piada visual.

Music Station
Swimming Race

Já seria bastante criativo se as obras de Tatsuya Tanaka fossem propostas 100% originais. Mas o que eu acho interessante foi que pesquisando sobre o artista me deparei todo seu trabalho se baseia em um conceito enraizado na cultura japonesa: O Mitate.

De forma literal, o Mitate significa “levantar-e-ver”. se trata de um recurso que brinca com o significado de objetos no contexto em que estão formando uma espécie de trocadilho. Como Tatsuya bem exemplificou em sua passagem no Brasil em 2023: Um jardim de pedras japonês, por exemplo, faz desenhos circulares em volta de rochas emulando ondas, que a partir de então, fazem as rochas se tornarem ilhas.

Dentro dessa dinâmica de dar significado e ressignificar, Tatsuya brinca com diferentes dimensões dos objetos de seus dioramas. O tamanho do “sushi gráfico” de uma reunião chata de trabalho, para significar a monotonia. A altura dos arranha-céus de pratos, que remetem a brincadeira japonesa de empilhar pratos como símbolo de alguém que encheu a barriga comendo. São inúmeros os exemplos e jogos de significados que cada obra sua traz. Todas elas com um título, uma história e uma conexão.

Sushi Chart
Feijoada Beach
Sponge Sports
Sushi City
Hurdling
The Mushrix
Stool Sharpener
Snow Clouds
Frontier

“Conforme eu vou criando uma peça, eu vou mudando cada coisa de lugar. Até conseguir criar uma história. Inclusive até pensar no que as miniaturas estão pensando. E conforme eu vou criando, eu sei que em determinado momento eu vou ter uma história. Eu vou ter um título interessante.” – Tatsuya Tanaka, em palestra na Japan House de São Paulo

Fonte: japan house

Existe uma coisa meio irônica ao se refletir sobre seu trabalho. Todo fotografo, querendo ou não põe seu público diante de um olhar diferente quando expõe suas obras. Coisa que Tanaka, mesmo não enquadrando uma pessoa viva ou uma paisagem natural consegue fazer ao simplesmente propor ao seu público a dar um novo significado as coisas que ele vê. Mesmo que seja de forma cômica.

Rice planting

E o engraçado disso tudo é pensar que: enquanto o Yuri criança via linhas de circuito como ruas de uma cidade, no outro lado do mundo, Tanaka dava outra perspectiva e as via como canais de um arrozal. Mesmo objeto, brincadeira diferente.

As obras de Tatsuya Tanaka podem ser encontradas em seu Instagram e YouTube e no site Miniature Calendar.

Karlotta Freier e suas ilustrações hipnotizantes

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Outro dia estava perdido no Instagram (mais uma vez) quando me deparei com uma animação que me fez parar por alguns minutos. Sério, fiquei hipnotizado com aqueles traços delicados se movendo de forma tão fluida. Era uma obra da Karlotta Freier, uma artista e animadora que consegue misturar técnicas tradicionais e digitais de uma forma única, criando um estilo próprio que é impossível não reconhecer.

A imagem é uma ilustração vibrante com um estilo surrealista. Ela apresenta um cenário urbano com prédios em tons de azul, um céu com nuvens cor-de-rosa e montanhas ao fundo. No centro, há uma estátua branca de um cavalo com duas figuras humanas, cercada por pássaros coloridos. Esses pássaros parecem carregar bolsas de diferentes tamanhos e cores, como se voassem com os acessórios. Há um bonde verde percorrendo uma rua na parte inferior da imagem. O contorno vermelho emoldura a composição, dando destaque ao design artístico e detalhado.
Valextra - Valentines Day

Confesso que fiquei um tempão observando o perfil dela, tentando entender como alguém consegue criar movimentos tão orgânicos em ilustrações que parecem ter saído de um livro antigo de anatomia. É aquele tipo de trabalho que você olha e pensa: “Como assim? Como ela faz isso?”. A resposta? Bem, provavelmente ela diria algo como “Não sei, só sei que foi assim…” hehe!

“Eu diria que meu estilo evoluiu visivelmente de uma prática analógica, inspirada em pequenos momentos da vida cotidiana, para se expandir para o mágico e o surreal.” – Karlotta Freier, em entrevista para o site Valextra quando perguntada sobre seu estilo de ilustração.

Fonte: valextra

O que mais me fascina no trabalho da Karlotta é como ela consegue dar vida a elementos que normalmente seriam estáticos. Suas animações têm uma qualidade utópica, como se estivéssemos vendo páginas de um livro antigo ganhando vida bem na nossa frente. É aquela história: quando você acha que já viu de tudo no mundo da animação, aparece alguém para te provar o contrário.

Animação para a Hermès, celebrando o Ano Novo Chinês.

Durante minhas pesquisas (sim, meio que viciei no trabalho dela), descobri que ela trabalha com grandes marcas e publicações, como The New York Times e The New Yorker. Mas não pense que isso a fez perder aquele toque especial que torna seu trabalho tão único. Pelo contrário, parece que cada novo projeto é uma oportunidade para ela explorar ainda mais as possibilidades de sua técnica. Acho interessante quando o artista consegue atingir esses patamares com suas obras e faturam grandes quantias pelo seu trabalho, pena não ser a realidade da maioria dos artistas.

Sketchbook

Um dos trabalhos que mais me chamou a atenção foi uma série de ilustrações sobre o corpo humano. É impressionante como ela consegue transformar algo que poderia ser puramente científico em uma experiência artística verdadeiramente hipnotizante. São ossos, músculos e órgãos dançando na tela de uma forma que nunca imaginei ser possível.

Sem título

Sabe aquele momento em que você descobre algo tão bom que precisa compartilhar com todo mundo? Pois é, estou nessa fase com o trabalho da Karlotta. Já mandei o perfil dela para praticamente todos os amigos que trabalham com arte e animação. E a resposta é sempre a mesma: um mix de admiração com aquela pontinha de inveja criativa (confesso que também senti isso).

Se você curte arte que desafia os limites entre o tradicional e o digital, que mistura técnica impecável com uma boa dose de experimentação, vale muito a pena conhecer o trabalho dela. Mas vou logo avisando: prepare-se para perder um bom tempo admirando cada detalhe das suas ilustrações e animações.

Todas as ilustrações/animações são do site oficial dela: https://www.karlottafreier.com/

Sidney Lumet: O Cineasta que Redefiniu o Drama Social

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“Todo grande trabalho consiste em se preparar para o acidente acontecer.” – Sidney Lumet, Diretor de cinema

Sidney Lumet nasceu em 25 de junho de 1924, na Filadélfia, Estados Unidos. Ao longo de sua carreira, ele se destacou como um diretor singular, conhecido por equilibrar narrativa envolvente e questões sociais profundas. Lumet era mestre em transformar conflitos humanos em histórias universais, explorando a luta do indivíduo contra sistemas opressivos e as tensões morais que moldam a sociedade.

Antes de trabalhar em Hollywood, Lumet teve uma formação diversificada no mundo das artes. Filho de pais imigrantes judeus poloneses, ele cresceu em um ambiente que respirava criatividade: seu pai era ator e sua mãe dançarina. Lumet começou sua carreira artística no teatro e na rádio, e na década de 1950, estabeleceu-se como diretor de televisão, onde desenvolveu uma sensibilidade apurada para narrativa e direção de atores. Essas experiências foram fundamentais para moldar o estilo que ele levaria ao cinema.

Cena de "12 Homens e uma Sentença" (1957)

Sidney Lumet fez sua estreia como diretor de cinema em 1957 com “12 Homens e uma Sentença”. A obra, gravada quase inteiramente em um único cenário, destacou sua habilidade de criar tensão dramática e explorar a complexidade das relações humanas. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Filme e deu início a uma carreira marcada por um equilíbrio entre inovação técnica e profundidade narrativa.

Al Pacino e Sidney Lumet no set de "Serpico" (1973)

Ao longo das décadas de 1960 e 1970, Lumet consolidou sua posição como um dos grandes diretores de Hollywood. Ele colaborou com atores icônicos, como Marlon Brando em “Vidas em Fuga” (1960), além de Al Pacino em “Serpico” (1973) e “Um Dia de Cão” (1975), e abordou temas como o desgaste emocional do indivíduo diante de sistemas opressores. Seu trabalho em “Rede de Intrigas” (1976), uma sátira incisiva sobre os bastidores da mídia, garantiu quatro Oscars ao filme e reafirmou sua relevância artística e política.

Apesar de sua fama e muitos sucessos, Lumet enfrentou fracassos ao longo de sua carreira, com alguns filmes que não encontraram ressonância crítica ou comercial. No entanto, ele nunca permitiu que esses tropeços abalassem sua paixão pela arte. Para Lumet, “cada acerto compensa cinco erros”, como costumava dizer.

O legado de Sidney Lumet é um reflexo de sua trajetória artística e versatilidade. Seu passado no teatro, na rádio e na televisão moldou seu olhar único para narrativas humanas, enquanto sua habilidade em transitar entre diferentes gêneros e trabalhar com atores de diversos contextos tornou suas histórias universalmente ressonantes. Lumet não apenas redefiniu o drama social, mas também provou que a arte, em sua essência, é uma celebração das complexidades da vida e das conexões humanas.

Stanley Kubrick: O Mestre do Cinema e da Experimentação

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“A sensação de mistério é a única emoção que se experimenta com mais força na arte do que na vida.” – Stanley Kubrick, Diretor de cinema

Nascido em 26 de julho de 1928, Stanley Kubrick é uma figura singular no universo do cinema. Em sua trajetória, uniu ousadia artística a um apelo popular que, por vezes, dividiu a crítica, mas nunca deixou de surpreender com suas constantes inovações narrativas e visuais.

Antes de se consagrar como cineasta, Kubrick iniciou sua carreira como fotógrafo. Aos 16 anos, vendeu sua primeira foto à revista Look, onde trabalhou por quatro anos. Posteriormente, começou a explorar o cinema, dirigindo curtas como “O Dia da Luta” (1951), “O Padre Voador” (1951) e o média-metragem “The Seafarers” (1953), marcando o início de uma jornada que o levaria a produzir de forma independente seus primeiros longas: “Medo e Desejo” (1953), “A Morte Passou por Perto” (1955) e “O Grande Golpe” (1956).

Kirk Douglas em "Glória Feita de Sangue" (1957)

Seu grande salto veio em 1957, com “Glória Feita de Sangue”, produzido pelo estúdio MGM e estrelado por Kirk Douglas. Em 1960, Kubrick foi chamado por Douglas para substituir Anthony Mann na direção de “Spartacus”, um épico de grande escala. A experiência o motivou a buscar controle criativo total sobre seus projetos futuros.

Foi então que Kubrick criou algumas das obras mais memoráveis da história do cinema: “Dr. Fantástico” (1964), uma sátira política sobre a Guerra Fria; “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), uma exploração filosófica e visual do cosmos; “Laranja Mecânica” (1971), uma reflexão perturbadora sobre violência e livre-arbítrio; “Barry Lyndon” (1975), uma recriação meticulosa do século XVIII; “O Iluminado” (1980), uma incursão aterrorizante no horror psicológico; e “Nascido para Matar” (1987), uma visão crua da guerra do Vietnã.

Kubrick faleceu em 7 de março de 1999, vítima de um infarto enquanto dormia, apenas alguns meses antes do lançamento de seu último filme, “De Olhos Bem Fechados”. Antes de sua morte, Kubrick desenvolveu extensivamente o conceito do filme “IA – Inteligência Artificial”, uma história que mesclava drama humano e ficção científica. Após sua morte, Steven Spielberg assumiu o projeto, mantendo muitos dos elementos originais imaginados por Kubrick.

Kubrick e Tom Cruise no set de "De Olhos Bem Fechados" (1999)

Com sua constante busca por perfeição, inovação técnica e narrativas provocadoras, Kubrick consolidou sua posição como um dos mais visionários diretores da história, deixando um legado que continua a inspirar gerações de cineastas e amantes do cinema.

Ingmar Bergman: o poeta das sombras e da existência

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“Filmes são sonhos, filmes são música. Nenhuma arte passa a nossa consciência na forma como o filme passa, e vai diretamente para os nossos sentimentos, no fundo escuro salas de nossas almas.” – Ingmar Bergman, Diretor de cinema

Ingmar Bergman foi muito mais que um diretor de cinema; ele foi um poeta visual que transformou questões existenciais em imagens inesquecíveis. Nascido em 14 de julho de 1918, na Suécia, Bergman encontrou no teatro e no cinema a forma de explorar os mistérios da alma humana. Ao longo de sua carreira, dirigiu clássicos como “O Sétimo Selo” (1957) e “Persona” (1966), obras que continuam a inspirar gerações de artistas e cinéfilos.

Antes de se consagrar no cinema, Bergman brilhou no teatro. Foi no Teatro Municipal de Malmö que ele conheceu colaborações que marcariam sua filmografia, como Bibi Andersson e Max von Sydow. Sua estreia como cineasta aconteceu em 1946, com “Crise”, mas foi em 1953 que ganhou reconhecimento com “Monika e o Desejo”. Filme que representou um importante marco na sua carreira.

Os anos 50 consolidaram Bergman como um dos grandes diretores de todos os tempos. Com “O Sétimo Selo”, ele criou uma das cenas mais icônicas do cinema: a partida de xadrez entre a Morte e um cavaleiro medieval. Já em “Morangos Silvestres”(1957), explorou com lirismo os conflitos entre juventude e velhice.

Cena de "O Sétimo Selo"

Nos anos 60, Bergman mergulhou em temas mais densos, como a solidão e a complexidade das relações humanas. Obras como “Através de um Espelho” (1961) e “Persona” (1966) tornaram-se referenciais de experimentação narrativa e visual.

Em 2003, Bergman dirigiu seu último filme, “Saraband”, encerrando sua carreira com a mesma intensidade com que a iniciou. O longa trouxe os atores Liv Ullmann e Erland Josephson, velhos colaboradores, para uma despedida que ecoa como um epílogo emocionante de sua obra.

Liv Ullmann e Erland Josephson

Ingmar Bergman foi um mestre em transformar o invisível em imagem. Suas obras transcendem o tempo, convidando o espectador a refletir sobre a condição humana. Sua herança cinematográfica permanece viva, inspirando novas gerações e mantendo seu lugar como um dos maiores diretores de todos os tempos.

Alfred Hitchcock: um ícone que transformou o cinema

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“Existe algo mais importante que a lógica: a imaginação. Se a ideia é boa, jogue a lógica pela janela.” – Alfred Hitchcock, Diretor de cinema

Nascido em 13 de agosto de 1899, em Londres, Alfred Hitchcock transformou o cinema. Conhecido por sua habilidade técnica, obsessão pelos detalhes e um humor sombrio irresistível, ele estabeleceu um estilo que marcou o suspense como gênero cinematográfico e deixou um legado imortal.

Hitchcock começou sua carreira no Reino Unido, onde dirigiu filmes notáveis, como Os 39 Degraus (1935), Sabotagem (1936) e A Dama Oculta (1938). Essas obras já evidenciavam sua habilidade em transformar narrativas comuns em experiências emocionantes. Contudo, foi nos Estados Unidos que sua genialidade alcançou outro nível. Em Hollywood, ele criou clássicos atemporais, como Suspeita (1941), Pacto Sinistro (1951), Janela Indiscreta (1954) e Psicose (1960), explorando o medo, a tensão e as complexidades da mente humana.

Seu impacto transcendeu fronteiras e décadas, influenciando desde os cineastas da Nouvelle Vague até mestres do terror e suspense como Brian De Palma, Peter Bogdanovich e Dario Argento. Hitchcock não apenas cativava o público, mas o envolvia emocionalmente em seus enigmas, transformando o espectador em um personagem implícito em suas tramas.

Alfred Hitchcock foi mais que um diretor; ele foi um arquiteto de emoções. Seu legado continua vivo, mostrando que o cinema é mais do que entretenimento: é arte, mistério e emoção. Sua obra é um convite eterno para olharmos o mundo com novos olhos, buscando o inesperado em cada detalhe.

Nirvana

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“Venha como você é” afinal “nasceu para ser selvagem”.

O que essas duas músicas tem a ver?

Bem, “Born to be wild” é do grupo “Steppnewolf”, que é justamente o nome do livro do Herman Hesse,  “O lobo da estepe”.  Herman Hesse, que também escreveu “Sidharta”, a história de Gautama Buda, que buscava o “Nirvana”, que é o grupo que canta “Come as you are”. Ufa!
E o que isso tem a ver com a resenha? “Om”, senta e relaxa!

“Nirvana”, de Marcelo Nunes, não cheira como um espírito adolescente, muito pelo contrário. (Juro que é a última comparação musical que faço nessa resenha.)

Trata-se de um romance de formação, ou seja, acompanha um personagem ao longo das fases de sua vida.

Arthur Balan é o protagonista narrador. E estamos diante de um diário romance autobiográfico. Um sujeito que está em fase terminal e revisita toda sua vida. Imagine um “A morte de Ivan Ilitch” só que mais longo, mais completo. Imaginou? Não, claro que não, né? Não sei porque ainda me dou ao trabalho…

Bom, Balan é filho de um casal romeno. Perdeu o pai muito cedo, atropelado, (viu como o ranzinza do Camus tinha razão ao falar do trânsito brasileiro?). Diana, sua mãe, uma figura fascinante. Melancólica, misteriosa, de poucas demonstrações de carinho, porém, afetiva ao seu próprio modo, e que também tem uma morte trágica. Ocorre que Diana, vejam só, vira personagem do livro de Balan, que é jornalista, tradutor e autor. (Eu amo escritores escrevendo sobre escritores, que escrevem sobre escritores… nessa matrioska literária deliciosa e infernal).

Assim, o autor narrador vai alternando reminiscências de sua vida com descrições do seu estado. A dor e agonia hodierna dos remédios misturada aos episódios do passado.

“Como eu disse no começo desse meu relato o fato de estar morrendo roubou meu futuro e o meu presente, e me deixou apenas com o meu passado” –

E o Marcelo – não o Balan – faz com que esse protagonista comum, que não tem nada de muito extraordinário, se torne magnético, empolgante, em especial pelo fluxo de consciência muito bem elaborado. Conhecemos seus amores e seus dissabores. Em determinado momento, sentamos ao seu lado no primeiro encontro com Eneida, uma situação até clichê da uma leitora que encontra o autor, saca? Mas a vida é cheia de clichês e essa frase é um clichê. E eu escrevendo que essa frase é um clichê é o ápice do clichê. Bom, eu poderia ficar aqui para sempre, e dizer isso também é um clichê. Enfim, saí de uma matrioska literária para entrar em um paradoxo do clichê. O que importa é que, na verdade, trata-se de uma passagem muito bem escrita. Por sinal, um estopim escolhido com precisão.

Enfim, nós acompanhamos a primeira e a derradeira paixão. A possível e a impossível. A morna e a tórrida, e isso não é um soneto de Camões, juro. Por gim. Digo, por fim, desculpe-me, força do hábito, observamos e sentimos aquela que foi sua derrocada emocional. Todas exageradamente reais e tangíveis, mérito incontestável do autor.

O livro é recheado de ótimas referências e citações. O próprio narrador brinca com esse traço marcante da escrita. Você tropeça em uma página e caem três máximas no seu colo. Se embrenha em um parágrafo e recebe mais duas. No entanto, tudo isso sem qualquer movimento de pedantismo, mas sim com o claro intuito de compor a personalidade do protagonista. Particularmente, sou apaixonado por citações, um louco dos aforismos, maníaco das referências, em especial pelas quais não conheço e tenho que correr atrás feito um idiota trôpego cheio de boas intenções. Sim, admito que gosto desse caça ao tesouro de amantes da literatura. Caso contrário estaria lendo Harry Potter, A cabana, Dan Brown ou quaisquer outras obviedades encadernadas.

Outro ponto bem aproveitado é que Balan conversa com o leitor, mas sem interromper muito sua narrativa, sem excessos, em suma, sem ser chato. Outro ponto que merece destaque é o fato de que mesmo sendo um romance longo, onde a tendência é deixar a peteca cair em algum momento, ou seja, perder a força narrativa em diminutos vãos da trama, aqui não, o personagem não deixa de ser espirituoso em nenhum momento.

O livro é repleto de filosofia; surra de Schopenhauer, mas sem ser didático, como uma onda, uma onda no mar de Heráclito; há um apanhado incrível de considerações sobre a morte, ou melhor, sobre o pós morte;. demonstra os contrastes filosóficos, em uma dialética suave; analisando os aspectos mais fatalistas da existência. Nesse último sentido, lembrou-me do genial  “O Homem Comum” do Phillip Roth. Outrossim, traz reflexões que tiram o leitor estagnado do lugar, como a questão do direito de dispor da própria vida. Sim, porque a grande verdade é que o homem em sociedade não tem direitos plenos,  nossa própria vida é tutelada de forma implacável, quando convém, por óbvio.

Notem o caso do Alain Delon, implorando pelo fim da vida! Deixo aqui um “salve” para o Doutor Kevorkian. Sou fã do Doutor Kevorkian e do Padre Júlio Lancelloti, cada um na sua linha de trabalho.

Ao final (sem revelações, claro, não sou um idiota completo, sou um idiota fracionado) cabe somente ao leitor sentir angústia ou alívio. Para uns, um desfecho reconfortante, para outros, perturbador. Arremata tudo com uma peça de teatro meio surreal, que serve de epílogo para o personagem, para o livro, para tudo. Eu, por minha vez, continuo esperando Godot, ou Gonet, vá saber.

Dr. Kevorkian, um amor de pessoa.

Avaliação:
Muitos tapinhas nas costas, na bunda e, principalmente, em sua imensa cabeça magnífica que de nada tem de enfeite, leitor.

* * *

Título: Nirvana
Autor: Marcelo Nunes
Editora: Sendas Edições
Ano: 2021

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O aplicativo de mensagens sonoriza mais uma notificação: “Olá Dr. Jekyll, bom dia! Como vai? Estamos ansiosos para sabermos se teremos um prazo para seu próximo texto”. Sabrine, pensa Jekyll, que moça educada! Formada na escola da paciência, nesses meses todos nunca tratou com a eloquência que seria de direito dadas as circunstancias, algo como “Escuta aqui ô animal, vai ficar de palhaçada com a nossa cara até quando?”. Jamais Sabrine abordaria alguém nesses termos. Nunca. A Trivium é um ambiente coletivo, e a coletividade desperta em nós o melhor de nosso humanismo. Sabrine é cordialíssima.

No início, Jekyll não tinha dificuldades, colaborar com a Trivium, uma revista digital fundada por seu amigo de infância Venâncio era simples como se manter na estrada de tijolos amarelos com o norte à seguir. A equipe fazia uma reunião de pauta e enviava um tema, um conceito, um mote, Jekyll elaborava algo e devolvia, então Venâncio, Sabrine ou Yan revisavam o texto, e eventualmente dentro do encontro entre os prazos, o talentoso designer gráfico Muniz Fábio anexaria uma arte ilustrativa. Uma vez publicado, as notificações sonoras do aplicativo de mensagem silenciavam. Renovando todo o processo com uma lua de vinte e oito dias. “Olá Dr. Jekyll, bom dia, como vai?”

Jekyll se sente orgulhoso de participar do projeto. “Um hub de cultura” lhe explicou um entusiasmado Venâncio, “E tudo feito de forma gregária, todos se ajudam, e outra, o Yan se amarra nos seus textos, a Sabrine também. Confiamos em você, faz o seguinte, escreve sem tema fixo, fala do que você quiser!”

Liberdade! Exulta Jekyll sentindo o vento de suas asas refrescar lhe a cuca. Tudo flui bem com trabalhos sobre literatura, trivialidades, memórias, causos e elucubrações diversas até que na aproximação de novembro Jekyll pensa em uma ideia. Vem aí o feriado de finados e ele vai escrever sobre a morte. Diferente de Epicuro que atestava um não encontro entre o eu que vive e a morte que ainda não o desviveu, Jekyll acredita que de vez em quando é necessário abordar por outra linha estoica um “memento mori” tornando a finitude um assunto vivificado. Tudo a ver com a época do ano, Venâncio Sabrine e Yan, irão curtir. Um Hub de cultura! E a morte é natural mas também cultural. A coluna do Dr. Jekyll vai ficar de matar na Trivium desse mês…

Mas Jekyll começa ele mesmo insatisfeito a refazer o texto em novos rascunhos, apagando compulsoriamente trechos inteiros para refaze-los em novos modos que são por sua vez apagados novamente até serem reescritos. E enquanto a lua altera suas fases, Sabrine ressurge cada vez mais educada, tendo de ler desculpas rocambolescas de Jekyll que já está, então, fora dos prazos, fora da estrada de tijolos amarelos e sem um assunto que lhe sirva de mote. Percebendo, enfim, que seu maravilhoso texto sobre a morte estava morto! A morte não é um mote. Se eu estou ela não está, se ela está eu não estou. Maldito Epicuro ! Que inclusive já morreu!!!

Venâncio liga. “Fala meu amigo, poderia vir aqui no escritório da Trivium na sexta feira?”. Jekyll entende que é seu fim. Será descoletivizado. A falta de conceitos, de temas, de motes não pode interromper o fluxo de um hub de cultura. Entretanto, a reunião corre se compondo sobre outros assuntos, projetos vindouros, fofocas e elogios “Pô o Yan acabou de sair daqui, ele vive dizendo ‘gosto dos textos desse Dr.Jekyll’, pena que não se encontraram”. Sentado ali, bebendo um copo de whisky, ouvindo Venâncio falar. Jekyll observa o espaço físico da Trivium, tal qual o raio desenhado na logo da empresa ele vê e se convence, há um tópico. Ele tem um assunto. A Morte pode esperar. Entregará à Trivium outra proposta, mais singela, mais leve, a fotografia de uma câmera, um poema sobre poesia. Muniz Fábio talvez faça uma ilustração de espelhos sobre espelhos. Eis aí Trivium o seu tema: Metalinguagem.