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O trabalho de Marina Zabenzi

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Soube de Marina Zabenzi na divulgação de seu foto-livro “Entre” – do qual falarei brevemente aqui – uma surpresa maravilhosa que me aconteceu. Mergulhei em suas redes e fui descobrindo suas filmagens, fotografias, trabalhos publicitários, curtas – assunto com material suficiente para escrever um artigo.

Inicialmente, jogo luz ao seu foto-livro, com uma série de imagens dípticas, algo que se parece com uma geometria espetacular traduzida em imagens que se justapõe.

Com tiragem esgotada, a obra “Entre” é um convite para olharmos com as lentes sensíveis da fotógrafa, que captura algo como uma interseção, no que vai se criando como uma narrativa visual por todo livro, com características tão específicas, que chamam atenção dos olhos. Cada par parece dialogar entre si, parece dizer algo um para o outro, literalmente. Zabenzi, além de fotógrafa, é também diretora e coleciona trabalhos muito potentes na cena do audiovisual.

No último lançamento “Insista em Mim”, da cantora Ana Frango Elétrico, Marina assina a direção do seu videoclipe. Cada cena parece ser meticulosamente integrados à música, criando uma experiência visual que vai desenhando paralelamente a narrativa das imagens. A habilidade de Zabenzi em manipular luz e espaço é notável, o que torna o físico e o musical uma unidade coesa.

Seu trabalho é uma imersão na fusão de imagem e pesquisa corporal, revelando uma habilidade incomum para transformar a imagética em uma experiência sensorial marcante. Para quem busca uma nova perspectiva sobre arte e narrativa, a obra de Zabenzi é uma descoberta imperdível, oferecendo uma forma de ver e sentir o mundo através das lentes de uma jovem artista inovadora.

Pantokrátor

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O futuro que sempre teve a qualidade de surpreender até aos mais ousados dos profetas se tornou previsível, nefasto, por óbvio, mas rematadamente esperável. Alguém tem dúvida que a crise climática vai produzir cada vez mais tragédias? Que a temperatura do planeta vai subir ano após ano? Que a estupidez coletiva irá eleger facínoras fundamentalistas que sonham em metralhar adversários? Vivemos no paraíso dos prestidigitadores, onde o mais idiota e obtuso dos homens pode se fazer de Nostradamus.

Assim sendo, particularmente, neste momento, acredito que escrever “distopias” é uma das tarefas mais árduas para o bom escritor. É só olhar ao redor.  A profecia vira previsão que vira realidade. Talvez ai resida a necessidade de exagerar mais na estética, ao menos para fingir que é uma ficção. Não por outra razão, considero esse livro um obra prima da Ficção Cientifica. “Por que?” você me pergunta com os olhos injetados de dúvidas razoáveis. Porque, em Pantokrátor, Ricardo Labuto Gondim conseguiu se afastar dos padrões, romper com a cartilha hollywoodiana de catástrofes e trazer algo infestado de originalidade.

Antes de mais nada, sempre bom esclarecer que apesar de dividirmos o mesmo sobrenome não guardo qualquer parentesco com o autor deste livro, não que eu saiba. Nesse espaço não há favorecimento consanguíneo, nem de nenhuma natureza, inexiste conluio, esquema de pirâmide ou compromisso com a verdade. Tudo contra o nepotismo, mas nada contra parentes talentosos, tipo Nelson Rodrigues e Mario Filho, Érico e Fernando Veríssimo, Karl, Harpo, Chico, e Groucho Marx. Caetano e Gil…. Assim sendo, hoje eu trago o livro de Ricardo Labuto Gondim – talvez um primo por determinismo literário e anseios sociais – com o seu impressionante Pantokrátor, editado pela primeira vez na Caligari (favor ler com a típica entonação italiana, ao estilo Dominic De Coco, Gorlami e Marguerete do Tenente Aldo Raine) e agora reeditado pela AVEC Editora.

Nessa obra, estamos diante de um noir clássico, redondo, ambientado num futuro quebradiço. Conduzido em primeira pessoa por Felipe Parente Pinto (Phillip Kindred Dick, sacou?), um detetive sagaz (elementar, certo?), liso, um pouco niilista, com certa erudição e vocação para entrar em enrascadas. Desenvolvido em parte por um fluxo de consciência impagável e irresistível, com um humor original  e observações bem atiladas.

Esse personagem narrador é muito bem geringonçado, na melhor acepção do conceito, Shelleyano, eu diria, em todas as suas camadas. Possui características e traços bem desenvolvidos. Uma dualidade de agir rara, gerando um tipo de pragmático espirituoso. Carrega uma ecolalia divertida e marcante, além de um carisma próprio dessa sorte de personagens.

Como não podia deixar de ser, tudo começa num ordinário caso de adultério. Sim, porque é assim que o mundo começa e termina, com ou sem serpentes. E, quando o protagonista se dá conta, já está dragado para um conspiração sem precedentes.

O cenário é a cidade do Rio de Janeiro. Para quem é carioca, a experiência de identificar os lugares é muito gostosa, além enredo, viajamos pelo Rio Antigo, o prédio da Cândido Mendes, Copacabana frenética, o Cemitério do Caju

Outro ponto de destaque é que o Ricardo abraça os conceitos, o constructo, desse gênero, pero sem abrir mão do olhar critico; usa o “neo”, termo consagrado na FC, mas não sem fazer uma leve zombaria, afirmando que “Neo é o falso prefixo de tudo que é velho”. Chupa, Partido Novo!

E ao mesmo tempo em que tem esse enredo detetivesco, com essa pegada de ficção cientifica, traz igualmente questões filosóficas preciosas e silogismos certeiros; “Se a psicopatia é a ausência de emoções, de empatia nas ações, logo toda máquina é uma psicopata por excelência.

Como todo Universo, a trama se expande e contrai como um imenso esfíncter literário, portanto, você tem a mais alta tecnologia ligada ao que há de mais primitivo, ritualístico, tal qual robôs golems, ou mitologia nórdica virtual. E, é claro, o tecnopoder autotélico, uma peça central da história, que não poderei detalhar mais por puro receio da revolta dos malditos algoritmos, com quem não tenho qualquer problema pessoal, diga-se de passagem. #paz.

@adorei.nota2 O algoritmo é incrível, fascinante e encantador. #humor #cronica #algoritmo #comedia ♬ som original – Adorei! Nota 2.

A criação de um Deus máquina, que é um fim em si, é absolutamente fantástica. Sem contar que é bem mais honesto que Esse que está ai, porque pelo menos não dissimula seus propósitos infantis e misteriosos. “Ahhh, eu sou um criador axial enigmático, me amem, não se demitam da vida. Eu escrevo certo por linhas tortas….” (Ah, me poupe, pede um caderno pautado de presente pro Papai Noel, e resolve esses problemas de insegurança criativa, filhão).

Gondim inunda sua história com inúmeras referências, que obviamente não limitam o entendimento nuclear da trama, mas trazem pequenas recompensas para o leitor mais cuidadoso. “Ovos de Páscoa” gritarão os jovens num inglês impecável e subserviente.

Além disso, leitores, o autor se recusa em estender a mão para ajudá-los na travessia caótica, noutras palavras, acredita bravamente na capacidade da turma.  Acredito que acerta em muitos momentos ao não perder muito tempo explicando ou descrevendo certas coisas; aparatos, técnicas. conceitos, que já são do senso comum, exceto, talvez, no encontro com o Mago Simão. “Quem é Simão, cara semi-pálida?” vós me perguntas. O que posso dizer que não é o Renato Aragão, ou melhor dizendo, Dr. Renato e seu fantasma trapalhão. De todo modo, LEIA. Jamais acredite em mim. Voltando 1, 2, 3 , o próprio Murakami lá no “Romancista como Vocação” adverte sabiamente; “não perca muito tempo com as coisas que o leitor já sabe”. A lua é uma lua em qualquer lugar do mundo, por que perder linhas preciosas esmiuçando suas formas? Até se for mais de uma, como no próprio 1Q84. Agora, se a lua que você inventou é verde e quadrada, ai sim cabe um descrição mais apurada. Até sob pena de dar razão ao asno rei golpista, que se bem me lembro, disse: “esses livros que são um amontoado de coisas escritas”.

Os diálogos são ágeis, não raro há o aproveitamento de falas de um personagem pelo outro. Aqui os sujeitos realmente conversam, ao contrário da maioria dos livros onde eles apenas fingem que conversam. Não obstante, há também monólogos em paralelo, dinamismo y ousadia.

Em suma, é uma peça muito divertida, na mesma medida em que é inacreditavelmente engenhosa. Cada frase é milimetricamente pensada, todo conceito racionalizado em suas mais variadas facetas, exegese para o deleite do hermenêuticos. Castel de Sabato orgulhoso de Felipe no fim do Túnel. Pantokrátor viaja alegremente do erudito ao pop em nanosegudos. Quebra alguns cristais, mas sempre com muita ternura, reverenciando os mestres do gênero.  Vejam só, estabelece até uma lei tipo Asimov “Golem não confia em Golem”. 

No fim, é como se Aldous Huxley tivesse entregado uma premissa para o Rubem Fonseca. Ou melhor, se Elmore Leonard houvesse enviado um original para o Max Barry, e esse, por sua vez, contratado Umberto Eco de escritor fantasma. Assombrado! Vislumbraram? Acho difícil. Há coisas difíceis de serem explicadas por resenhistas ou pela nossa vã filosofia.

Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️

Todas as carinhas amarelas, redondas e risonhas disponíveis no aplicativo para imediata aplicação no comentário.

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Título: Pantokrátor
Autor: Ricardo Labuto Gondim
Editora: AVEC Editora
Ano: 2020

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Sex and the City conhece Geração Z

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A famosa série “Sex and the City” entrou no catálogo da Netflix dia 1º de abril de 2024 e, assim, não só  foi capaz de trazer o sentimento de nostalgia para as mulheres que já a conheciam desde de seu lançamento na década de 90, como também despertar curiosidade nas jovens adultas da nova geração. O seriado conta a história de quatro amigas em seus 30 anos, “Carrie”, “Miranda”, “Charlotte” e “Samantha”, que vivem aventuras sexuais e amorosas em Nova York enquanto frequentam festas e lidam com dilemas em suas carreiras. Mas o que acontece quando as famosas personagens entram em contato com o mundo atual?

Aparecendo em desde trends no Tiktok a posts no Pinterest, Twitter e Instagram, “Sex and the City” faz grande sucesso nas redes sociais. O interesse dos jovens fica aparente em vídeos virais de mulheres andando na rua com a famosa música de entrada da série tocando no fundo em homenagem à Carrie e postagens de fotos que usam os figurinos das personagens como inspiração. As meninas que viam suas mães assistindo os filmes sobre as quatro amigas no cinema cresceram e, agora, as consideram “ícones” da moda e louvam seus estilos de vida.

Entretanto, nem tudo são flores e a nova geração, que evoluiu seu pensamento crítico sobre as causas sociais, enxerga alguns problemas no seriado dos anos 90. Por ter sido escrita e produzida em uma época ainda bem conservadora e preconceituosa, resquícios de machismo, racismo e transfobia podem ser percebidos em alguns dos episódios da série. Um exemplo disso é o episódio 18 da terceira temporada, no qual Carrie se refere constantemente a mulheres trans como se fossem “metade homem”, invalidando sua identificação de gênero, um erro que seria inaceitável em produções contemporâneas.

Apesar de suas controvérsias, a série se mantém relevante ao tratar de questões consideradas como “tabus” na vida das mulheres, como suas experiências sexuais. Dito isso, a personagem Samantha representa o empoderamento feminino em relação ao sexo ao desmitificar o lado emocional das mulheres relacionado ao ato, caracterizando-a como alguém desapegada que possui vários parceiros. Tal representação que é atribuída, na maioria das vezes, a personagens masculinos é de extrema importância para mostrar para as jovens em formação que elas não precisam se encaixar nos padrões de relacionamentos retratados de forma normativa na mídia.

Além disso, o que se observa na série também é a quebra do ideal de amor perfeito retratado comumente em filmes de romance. A idealização do homem e relacionamento perfeito é desfeita ao mostrar diversos tipos de adversidades que podem ser enfrentadas na vida amorosa das personagens, como na terceira temporada na qual Charlotte se casa com um um homem que tem impotência sexual e eles conseguem superar esse obstáculo. Visto isso, essa quebra pode ser considerada muito significativa como ensinamento às mulheres que estão iniciando sua vida sexual de que nem tudo é perfeito, problemas são comuns e possíveis de serem resolvidos.

Portanto, fica claro que o seriado é um sucesso entre a nova geração. Assim, apesar de sua insensibilidade com certas questões sociais, “Sex and the City” traz ensinamentos importantes, desperta discussões que envolvem o empoderamento feminino e pensamento crítico nos jovens de hoje em dia.

Paulistas: Quando a Pintura Reencontra o Cotidiano

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A arte moderna, por mais que seja respeitada e reconhecida, foge do cotidiano das pessoas comuns. Por mais que tenhamos estudado sobre Da Vinci, Rembrandt, Velázquez, entre vários outros no colégio, ter acesso às suas obras, assim como ter melhor compreensão sobre elas é algo que se restringe a poucos. Nesse contexto, as obras do artista Rafael Guerra são abordagens que instigam nossa curiosidade sobre esse período.

Em seu perfil do Instagram, @paulistas, Rafael posta montagens que misturam o cotidiano da capital paulista com pinturas do período moderno. A conexão nem sempre é clara entre elas, algo que só soma à proposta. Algumas trazem um tom cômico, como “Indo Trabalhar na Quarta-feira de Cinzas” inspirado em “The King of Thule” de Pierre Jean Van der Ouderaa. Outros trazem um tom mais reflexivo, como sua versão de “Atlas Holding up the Celestial Globe” de Guercino.

Mais recentemente, seu trabalho ganhou tamanho destaque que fez parte das comemorações dos 470 anos de São Paulo. Com parte de suas obras expostas em diferentes estações de Metrô da rede paulistana.

Por fim, vale destacar que Rafael constantemente publica reels comentando seu processo de criação, além de falar sobre outras curiosidades do mundo das artes. Suas obras são postadas em sua conta no Instagram e algumas delas podem ser adquiridas em sua loja virtual.

“Monika e o Desejo” e o Afeto no Mundo Capitalista

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Monika e o Desejo é um romance sueco de 1953 dirigido pelo cineasta ilustre Ingmar Bergman. A princípio, a percepção de sua premissa envolve uma história simples e formadora dos clichês: um casal que busca a fuga da realidade para viver um romance utópico. Porém, com um pouco mais de análise, percebemos que suas entrelinhas abordam diversos assuntos complexos que levantam pautas, como: a construção social da mulher, o romance contemporâneo e as problemáticas do capitalismo e a influência desse modelo econômico nas relações interpessoais humanas. Essas discussões marcam a atemporalidade do filme: em 1953 Bergman já levantava debates que nos cercam até os dias atuais.

Trazendo um pouco de bagagem teórica para esse texto, para fomentar esse debate, preciso mencionar brevemente Eva Illouz em seu livro “O amor nos tempos do capitalismo”, de 2011. Nele, ela defende, principalmente, um ideal em que o desenvolvimento social e econômico andaria de mãos dadas com o desenvolvimento dos afetos. Ambos, então, influenciam um ao outro, sendo codependentes, e nessa associação surgiria, então, o chamado capitalismo afetivo.

Nesse sentido, portanto, em um mundo contemporâneo com o capitalismo como principal modelo econômico (o cenário em que vivemos hoje), as relações interpessoais seriam diretamente afetadas por essa sociedade pautada pelo consumo e o bem estar social seria regulado pelo poder monetário. No longa Monika e o Desejo, essa questão se encontra nas nuances da relação de Monika e Harry e também causa o percurso e problemas no caminho do casal durante toda a trama. Assim, o filme de Bergman, em geral, retrata um jovem casal e sua busca pela liberdade, entrando em oposição ao modelo de vida que o capitalismo impõe ao proletariado.

O que move o drama, principalmente, é a necessidade desse casal de seguir um modelo de vida tradicional para poder sobreviver no mundo capitalista, sendo que ambos querem negar esse destino, principalmente a menina. Há uma busca pela libertação dessa realidade quando Monika e Harry fogem no barco para viverem fora da cidade, apenas os dois, sem influências externas. Mas o estilo de vida que se estabelece fora das normas sociais é insustentável sem a comunidade, principalmente quando ela engravida. Inevitavelmente, acabam voltando à rotina em sociedade, e como uma das consequências, o fogo da paixão dos dois começa a se apagar, o que é intensificado com a responsabilidade de criarem um filho. Cada vez mais a questão financeira dos dois se mostra como um problema, o que afeta intensamente Monika: quando a liberdade sonhada já não é sua realidade, o poder aquisitivo e o consumo capitalista se inserem como objetos desejo da personagem e tomam o lugar desse livre arbítrio. O que, ironicamente, entra em embate com o ideal de “liberdade” normalmente associado ao regime capitalista: liberdade para quem e para o quê?

O longa é um prato cheio de alguns dos conceitos de Freud que Illouz, em “O amor nos tempos do capitalismo”, levanta no decorrer de seu texto, relacionando-os com esse capitalismo afetivo – conceitos que tiveram um impacto significante na transformação dos afetos na sociedade. Assim, entrando em um lado freudiano, é curioso como os personagens centrais do filme, personificam seus núcleos familiares. Enquanto Monika é energética e caótica como o ambiente em que está inserida, Harry é mais centrado e lógico, refletido pela sua criação. Isso evoca o conceito onde a “família nuclear é o ponto exato da origem do eu”. Ambos os lados representam, também, a associação do feminino com os sentimentos e a do masculino com a racionalidade – ideia muito combatida e muito mais complexa do que essa simplificação (tomaria um outro texto inteiro só para debater esse assunto) –, mas também fortemente incrustada na sociedade. Além disso, a inserção do erótico e da sexualidade durante o enredo também evoca as pautas freudianas que começaram a ser abordadas e adotadas pela sociedade.

Além dessas questões, Monika e o Desejo também desmistifica papéis que usualmente são amplamente ditos como naturais para as mulheres, como a submissão e a maternidade. É uma representação diferente do costume do que normalmente é retratado como papel ideal feminino numa sociedade patriarcal, principalmente quando se considera a época em que o longa foi produzido. Até, claramente por isso, Monika é tida como uma personagem desagradável e negativa por sua audiência no período, como a maioria das mulheres questionadoras e fortes que eram retratadas no século passado.

Nesse sentido, Bergman, em seu filme, trabalha a ideia do romântico de forma atrelada à situação social do par, e o roteiro que move o longa bebe desse cenário para construir seu enredo. “Monika e o Desejo”, além de ser uma referência no cinema com sua fotografia inovadora e de tirar o fôlego, pode ser, portanto, uma representação das relações que os afetos estabelecem com a vida social e econômica, mais especificamente com o capitalismo e, especialmente, os efeitos que ele pode exercer sobre o amor romântico.

Onde Começa o Arco Íris (Manifesto LGBT)

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Nós somos as pequenas conchas da praia que resistem às marés do oceano, às chuvas de verão e aos ventos da madrugada. Aquelas folhas bem verdinhas que de alguma forma saem do asfalto trincado no calor do meio dia. Aqueles sabiás bem amarelos que teimam em não sair da cidade grande mesmo que a comida seja escassa e a esperança pouca.

O vermelho do sangue daqueles que nos condenam não consegue monocromar o nosso que é tão colorido. Esse nosso sangue é vermelho-fogo como o deles, mas que vai bem além disso. Ele é também laranja, amarelo, verde, azul turquesa, azul escuro e lilás; ele é de todas as tonalidades e nuances que qualquer um puder imaginar. E não tinha como ser diferente, pois, apesar de todo o ódio que sentimos na pele, nossa casca é grossa. Não deixamos o sentimento negativo e obscuro dos outros passar pela epiderme e contaminar nosso interior multicolorido. Essas cores são bonitas demais para ficarem enfurnadas nas peças de roupa de um armário escuro. As cores só existem de verdade quando têm alguma luz nelas, assim como nosso amor. Assim como quem somos.

Fotofobia é uma doença ótica que se refere às pessoas que não aguentam muita luz. A homofobia é quase isso, mas, ao invés de ótica, é mental. Do mesmo modo que as cores, o reflexo também necessita da luz para ser criado. Nos vemos refletidos na dor do outro por já termos passado por uma situação parecida ou por termos precisado da ajuda de alguém em momentos difíceis – que, para nós, nunca foram poucos.

Nos vemos refletidos naquele massacre em Orlando, naquela transexual esfaqueada no meio da rua, naquele aluno da UFRJ morto em pleno Campus, naqueles que são expulsos de casa, naquela que é estuprada por 33 homens, naquele que passa frio à noite, naquela repórter discriminada por racistas, naqueles outros de 326 de nós que foram mortos por pura homofobia ano passado. Mesmo tão colorido, esse sangue continua manchando o chão.

Só não sabe onde começa o arco íris quem nunca nos olhou nos olhos.

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Ilustradora Convidada:

July (Julia) Teixeira

Hey, meu nome é July Teixeira e tenho 24 anos, sou formada em design de animação, mas me encontrei na área de artes para jogos. E aparentemente nos tempos livres eu também faço uns desenhos ai…

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Nesse conto Tiago anota nomes de caminhões. A capa então é um desenho preto e branco de um caminhão da mercedez benz antigo. Imagem by Avep Brasil

Tiago era um menino acima de tudo solitário. Havia passado por uma perda recente gigantesca que mudara o traçado de seu destino, quando então parentes decidiram que enviá-lo para o interior de outro estado seria o melhor a ser feito naquela precária despedida da década de oitenta.

Teve então que viver com uma madrinha solteirona, que muito ocupada de suas próprias coisas, não tinha alternativa a não ser deixar o menino por si. O espantado Tiago em um soluço se viu dentro do alheamento de um novo lugar com a rotina típica de cidade pequena e suas ruas estreitas cheias de calçadas rebentadas por raízes de mangueiras e uma antiga melancolia impregnada nas fachadas das casas. Era o final de sua primeira infância. Perdido no solipsismo aos oito anos.

“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer precisa destruir um mundo” – Herman Hesse.

Com o passar do tempo ele começaria a criar seus novos laços. Mas naquele primeiro ano Tiago fez o que qualquer forasteiro dos sentidos faz ao se encontrar em chão suspeito, se adaptou. A casa simples onde morava tinha dois quartos, não havia aparelho de TV, nem toca discos e nem livros. Ficava ancorada em um barranco alto e de uma única janela era possível observar lá embaixo um pequeno trecho da BR-116, à distância um posto de gasolina, aqui e ali morros verdes por onde a estrada serpenteava.

Essa janela foi por muitas horas de todos os dias, a comunicação do mundo. Não demorou até Tiago perceber que o mundo é um estranho equilíbrio entre harmonia e caos. Há um padrão observável, que é constantemente perturbado por um evento aleatório que por ser constante ratifica outro padrão. Tiago descobriu isso com lápis e caderno anotando acuradamente tal qual um ornitólogo, a incidência de todos os caminhões carretas e ônibus de viagem que compunham a fauna daquele pequeno pedaço da maior rodovia do Brasil.

Scanias 112 Bicudas e Cara Chata. Mercedes 1113, Scania Laranja LS 110, raríssimos Fenemê, Volvo N12 Intercooler. Baú, lona, cegonhas. Toda essa fauna com seus trovejantes motores à diesel catalogados como teria feito um calouro do Liceu Aristotélico. Separados por cor,, turno e mês, um tracinho pra cada passagem, um risco a cada dez. Os ônibus interestaduais também eram fichados: Itapemirim, Penha, Gontijo, 1001, Rio Doce. Como pode tanta gente viajar assim? Pra onde eles vão? Porque eles não ficam em suas casas vendo a estrada pela janela? A estrada nunca está fechada e as pessoas nunca irão parar de atravessá-la, a estrada é pra sempre, igual a saudade.

“I take the open road” – Walt Whitman

Tantos foram as frenagens, as buzinas, os motores e os dias. Tiago já no início da adolescência voltou para a capital, regressando como um pródigo calado e tímido. A janela, o posto, a Br, tudo passou.

Muitos anos depois, tendo concluído um ciclo, Tiago comprou uma passagem de ônibus para o nordeste, com o objetivo de passar alguns meses sem objetivo algum. A linha seguia pela mesma BR-116. E ao entardecer do sol de outono, no exato dia em que completava trinta anos, na poltrona ímpar de um Itapemirim Tribus, Tiago se viu rodando em frente seu antigo bairro, já bastante modificado, mas reconheceu a casinha ainda visível, e a janela aberta lá em cima, vazia. Talvez se tivesse caderno e lápis anotaria sorrindo pra si: Casa branca janela quadrada – I

O Itapemirim fez uma curva no trecho, o bairro se deitou nos morros. À frente a BR-116 seguia seu velho trajeto, livre e mítica. A noite veio, em seu aniversário solitário faróis interrompiam seu sono. Nos sonhos, molduras de estradas e janelas.

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Um olhar sobre o documentário “Incompatível com a Vida”

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Encontrei Eliza no saguão do Cinema Net Rio, em Botafogo, na sua estreia no Rio de Janeiro com “Incompatível com a Vida”, no final do ano de 2023. Enquanto eu bebia água e esperava por uma amiga, me dei conta que quem se sentava à minha frente era ela, colocando o casaco e também esperando uma amiga, que chegaria logo após. Foi interessante ver Eliza ali, aparentemente um pouco despretensiosa, mas também ansiosa, e logo em seguida poder ver sua bravura numa tela de cinema. É disso que gostaria de falar aqui, nesse breve texto sobre esse filme grandioso.

Vencedor do festival “É Tudo Verdade”, nas categorias melhor documentário e melhor montagem, e da Competição Brasileira de Longas ou Médias-Metragens 2023, o filme dirigido por Eliza Capai, possui beleza estética única, fotografia e jogadas cênicas que traduzem a intensidade da narrativa e sintetizam a natureza dicotômica do processo de vida e morte, o processo de luto dessas mães e a importância do debate sobre políticas públicas. A obra tem a potência escancarar um debate delicado, polêmico em muitas instancias, sobretudo para falar da questão do aborto e da autonomia das mulheres sobre o seu corpo, de maneira honesta. Estejamos atentos e fortes para os novos dias, porque o novo, o novo sempre vem. E que nunca nos falte amor humor e coragem, caso um Carrasco Azul apareça pela frente.

A partir dos registros sobre sua gravidez, que acabou tendo o diagnóstico do “feto incompatível com a vida”, Eliza convida outras mulheres para falar de vivências análogas à sua e a partir disso cria uma rede de vozes, falas e histórias que reverberam em temas universais, principalmente no recorte de gênero, sobre o debate pela perspectiva do direito humano da mulher, que passa pelo processo do diagnóstico e esbarra em feridas estruturais – mas também individuais.

A diretora ficou grávida durante a pandemia de COVID-19, em pleno governo Governo Bolsonaro. No filme, utiliza imagens contextualizando o enclausuramento, ou então, assim como, o episódio que tomou grandes proporções midiáticas, do caso da menina de 10 anos que foi hostilizada por fundamentalistas religiosos, ao chegar no hospital para realizar o aborto, fruto de uma violência sexual.

Eliza Capai é documentarista e formada em jornalismo pela USP, coleciona mais de cem prêmios com longas, séries e curtas, sempre buscando o recorte de gênero em sua abordagem tão única. “Tão Longe é Aqui”, de 2013, é um deles. Além dos filmes, dirigiu a série documental original Netflix “Elize Matsunaga: Era uma vez um crime”, que aborda a história com uma perspectiva delicada e traz um paralelo com a repercussão de crimes cometidos por homens e mulheres.

O que é ser mãe? É uma das perguntas de plano de fundo do filme, vai desenhando as questões do desejo, do sentimento, assim como o debate do direito humano e o direito ao próprio corpo. O debate vai caminhando nessas questões, que ao mesmo tempo delicadas, necessitam de um espaço seguro para serem debatidas e acolhidas, uma vez que também são urgentes.

As mulheres entrevistadas, ou a maioria delas, tem ou já tiveram o desejo de ser mãe de maneira latente, vívida. Algo que faz ou fez parte de sua construção pessoal. Portanto, o espectador se depara com a questão do aborto não como um “desejo” de abortar mas sim uma questão de direito de abortar, direito ao próprio corpo. Ao mostrar não só a sua solidão interna, mental, corporificada – pois ainda que esteja amparada por seu companheiro, é um processo pessoal corporal da mulher – mas também uma solidão institucional, de falta de acessos básicos, debates, informações. Falta do mínimo.

Um ponto interessante nesse filme de Eliza, é que ela é uma das personagens dessa narrativa e traz isso de forma muito potente. Essa superexposição de si mesma é um ponto importante do impacto que o filme traz e dá luz a sua perspectiva escancaradamente. Capai não é a primeira nem a última diretora a ser uma das personagens do filme que dirige, mas com certeza, realizou essa saga de forma brilhante e corajosa.

A subjetividade contrasta com a materialidade o tempo todo, muito compelido à montagem, comportando um ritmo que convida o tempo certo de elaboração do espectador e aborda o contraponto de toda burocracia médica e judicial, à questão de nuances mais subjetivas, como os pesadelos, comum à praticamente todas as mães entrevistadas e que consistiam em sensações ruins e experiências de morte.

O corte da cena em que o médico dá o laudo e explica a má formação, funcionam como o banho de água fria no espectador, depois de perceber a noção de profundidade do que é gerir uma vida e a dor do que é perdê-la. Mais uma vez, nos vem a pergunta: “O que é ser mãe?”. A montagem trabalha muito bem os contrastes que Capai busca, tanto entre as entrevistas como entre imagens mais artísticas, que causam uma sensação visual muito perene ao que se discute ali. As imagens submersas no mar chamam atenção e dialogam muito bem com a ideia de uma certa imensidão de sentimentos, ou uma ideia de estar envolta por algo e ainda assim, solitária.

A escolha das personagens foi muito bem realizada a medida que foram expostas experiências totalmente diferentes, em função das questões que Eliza já se debruça, como a raça, a classe social e até mesmo as histórias acerca da presença do pai da criança – ou não – que tiveram o diagnóstico.

Uma das personagens, uma mulher não-branca e de classe social baixa, conta sobre o seu sentimento de culpa pelo diagnóstico do feto e diz ter essa sensação por toda a gestação. É possível criar um paralelo com questões mais estruturais, onde mulheres negras ou não-brancas se encontram nesse ciclo de auto culpa, as vezes por ter crescido com a ausência do Estado no fornecimento do básico, as vezes pela falta de informação ou até mesmo pela questão do racismo, ou quaisquer outras questões que atravessem esse agente “histórico”.

Corta a cena para a conversa de Eliza com seu parceiro sobre a notícia do diagnóstico, num diálogo que traduzia uma busca por um entendimento da questão de vida e morte e da própria elaboração do luto. Não havia um sentimento de culpa – pelo menos, não demonstrado ali -, mas ela fala sobre uma sensação de um sangramento interno, uma sensação de frustração e tristeza. Sem querer, ou querendo, Capai vai fundo nos contrastes quase subjetivos – e materialmente concretos – que acabam esbarrando em recortes que ela vêm afirmando desde então.

A diretora explora sua própria vulnerabilidade muitas vezes em cenas reais de seu cotidiano, com tripé no quarto, arrumando as malas ou tomando um banho no chuveiro enquanto chora. Assim, ela vai mostrando a interioridade de sua dor e de sua vida, sua casa, seu corpo. A coragem presente na iniciativa de Capai, choca em muitos níveis o espectador e nos leva a uma sensação de interioridade e do olhar para dentro de si, do seu corpo, a partir das histórias que são comoventes, gritantes, incômodas, melancólicas e que passam a ter alguma beleza quando, no final, já nos sentimos íntimos delas.

Os elementos técnicos como a trilha sonora, assinada por Mariana Genescá com desenho de som por Décio 7 e participação de Juçara Marçal, dão o tom exato à narrativa e levam o espectador numa viagem para dentro. Dentro de si, dentro da tela, dentro de cada história, dentro da dor… Assim como a fotografia, assinada por Janice D’Avila e João Pina, sobretudo nas imagens do mar. Esses aspectos, em conjunto, dialogam com os outros aspectos técnicos e causam uma estrutura coesa para contar essa história.

O poder desse tipo de filme nos permite levar esses debates tão importantes à frente, que tem como consequência a provocação de alguma mudança, seja ela em escala pública ou em dimensão privada, individual. Mas de fato, é certo que as pessoas que saíram daquela sala de cinema naquele dia, saíram pensativas. Foram alguns segundos de silêncio após o término do filme, enquanto os créditos passavam. Ninguém se levantou, ninguém falou nada, nem se mexeu. Estavam todos extasiados com o que tinham visto, entre muitos sentimentos, desde agonia e tristeza até a algum tipo de alívio e conforto. Quando acabaram os créditos, todos aplaudiram de pé por pouco mais de um minuto.

Durante o debate após a sessão, com a diretora do filme e a produtora executiva, Eliza fez um fala que rendeu mais palmas (contém spoiler):

muitas pessoas, ao verem a cena do feto morto em minhas mãos, viram o rosto pro lado pra não ver, se assustam; muitas pessoas acham que essa cena não deveria estar no filme, exceto as mães que me escreveram agradecendo por ter aquela cena no filme

É importante pensar que muitos fatos ligados ao gênero feminino é enclausurado por questões maiores que nós, como o governo, a legislação, a própria sociedade em si. O que Eliza faz nessa obra, é escancarar esse debate e entrar na casa dessas famílias para mostrar que esse assunto deve ser falado, discutido e mudado. Ao receberem o diagnóstico do feto incompatível com a vida, a mulher pode “optar” por abortar, mediante burocracias jurídicas, ou seguir com a gestação e ter um bebê praticamente natimorto.

Algumas famílias de classe média, tiveram a experiência de poder ter esse momento com o bebê (no caso de escolher isso), de maneira digna. Outras famílias ou mulheres solos, pobres e racializadas, já não tiveram a mesma sorte. Ou não conseguiram burocraticamente ter acesso ao documento que libera o aborto ou não tiveram uma boa experiência na rede pública de saúde. Uma das personagens, chegou a passar horas no leito, após o parto, sem ter acesso ao seu bebê, sem ao menos poder vê-lo.

São muitas camadas expostas no filme e todas elas muito importantes. O filme é de fato um soco no estômago, principalmente para as mulheres, mas é também um lugar que traz o sentimento de algo menos solitário do que se é. Afinal, o que é ser mãe? É um sentimento? É um desejo? Qual a relação do gênero feminino com a questão da maternidade? E qual nosso, quando mulher, na questão da jurisprudência? Como diz uma de suas personagens: “Ser mãe é se jogar no escuro”.

É importante falar da relevância que é construir obras que toquem nesse assunto, que questione o posicionamento em geral sobre o aborto, que dê a possibilidade das pessoas olharem para a história de cada uma dessas mulheres e buscar alcançar uma perspectiva mais humanizada, mais acolhedora. Um filme que traz o impacto da solidão, da burocracia descabida e da indiferença de uma rede institucional para mulheres, entendendo a perspectiva estrutural que isso possui. E mais importante salientar a qualidade da obra como um todo, sobretudo a direção de fotografia, a montagem, a trilha sonora, etc. que colaborou para garantir os prêmios e acredito que ajudaram na elaboração de bons insights aos espectadores atentos.

O filme é exemplar em tudo que se propõe, traz debates significativos, busca outras perspectivas de explorar e explanar esse e outros assuntos que atravessam os temas do aborto, do luto, da maternidade e da questão dos nossos direitos, enquanto mulher. Recomendo muito este longa-metragem, para além de todos os pontos já citados anteriormente, uma vez que pouco se fala sobre essa síndrome ou diagnóstico do feto incompatível com a vida e seus desdobramentos. Descubra outros filmes da autora e fique com o trailer de “Tão Longe é Aqui” de 2013.

Mergulho Mineral

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O chamado cubo branco – também conhecido como “galeria de arte” ou “museu”, de paredes imaculadas e condições ideais de luz e temperatura – é tido como o lugar das “belas artes” por excelência. A caixa preta, por outro lado, ou o palco do teatro, é lugar da magia, da luz, do surround sound e da ação encenada. Claro que estou exagerando. Existem muitos outros meios e contextos em que manifestações artísticas podem ser vividas fora das normas clássicas. Porém, comumente comparados a caixas, o museu e o teatro são dois cânones institucionais onde a arte se legitima, bem longe das distrações do mundo real. Exibidos no cubo branco, os objetos ganham um status de culto, em geral pendurados nas paredes ou apoiados em pedestais. A apresentação na caixa preta, por sua vez, é conhecida por “estar em cartaz”, recebendo “espectadores” e concentrando a atenção num ritual com início e fim pré-estabelecidos. Mas felizmente há vida, suor e inspiração bem além dos moldes, das instituições e das convenções. De fato, os significados e as funções da arte sempre mudaram drasticamente ao longo dos séculos e através das culturas. Percebo a arte contemporânea como uma linguagem à parte, um meio que nos provoca, nos ensina, e nos move; toda forma de arte abre uma oportunidade para refletir, debater, aprender e gerar uma certa consciência.

Esse preâmbulo todo foi para introduzir outras formas de se experienciar arte. Formas que na minha opinião são expansivas, pois usam formatos múltiplos, são interdisciplinares. Hoje, como certas questões sociais e ecológicas se fazem urgentes, artistas podem ser peças-chave não só para propor modos de experiência de conexão com o mundo ao nosso redor, mas também para (re)educar o público. Uma delas é uma artista que conheci há dez anos atrás, a estoniana Marit Mihklepp, mestra em ArtScience, depois de ter estudado design têxtil, filosofia e dança. No mestrado ela começou a desenvolver encontros lúdicos e coreografias para objetos do cotidiano. Em pouco tempo, ela abstraiu os objetos e começou sua vivência com pedras, em suas palavras uma “imaginação geológica”. Sim, pedras, esses entes mineirais muito mais velhos que todos nós. De sete anos para cá, Marit compôs caminhadas, tirou som de pedra, convidou o público para mergulhar em rochas, imaginar sua idade, suas memórias, e quantas histórias para contar. Hoje a Marit viaja pelo mundo a visitar rochas, castelos, mausoléus, coletar lendas, entrar em diálogos ainda mais profundos e criar rituais com essas formas minerais que guardam segredos. Em seu site a artista descreve o que faz como “prática de convívio com aqueles menos notados – por muito distantes, muito pequenos, ou muito lentos – em experiências construídas, palestras performativas, perfumes microbianos, peças de vídeo e exercícios de escuta”.

Qualquer um que já tenha presenciado seu trabalho nunca mais esquece seu método da imaginação geológica, e você mesmx começa a expandir as histórias. Essa pedra rolou por muitos quilômetros, se entediou com o exército de Napoleão, abrigou milhares de lesmas; hoje virou um assento no parque etc etc. Se pensarmos na acumulação de fósseis, fungos e outros seres que se encontram dentro de cada formação rochosa, então, as histórias se tornam ainda mais complexas. Com seu jeito lúdico, Marit une ciência, contação de histórias, mitologia, performance, sem nunca se encaixar exatamente em nenhuma dessas disciplinas.

Outro trabalho fascinante é a prática de masharu, artista de origem russa não-binárie – identificando-se com os pronomes elu/delu – que vive em Amsterdã. masharu, que também conheci por meio de Marit, define-se como uma “comedora de terra e amante da terra”. Com um doutorado em matemática, um dia elu decidiu tentar outro caminho e foi estudar fotografia em Amsterdã. Depois participou da prestigiada residência artística da Rijksakademie e, a partir daí, iniciou uma pesquisa sobre hábitos alimentares envolvendo terra – sim, terra, barro, argila, ou até mesmo compostagem – que elu vem descobrindo e compartilhando ao longo dos anos, e muitas viagens ao redor da Terra. Em suas apresentações, que incluem gráficos, conversas e, claro, degustação, a gente aprende sobre diversas culturas que apreciam uma terra, de uma forma bem literal mesmo. Seja por crença, ritual, deficiência mineral ou fantasia, nacos de barro são vendidas em feiras, mercados e mesmo online. masharu já viajou da Holanda para Gana, Zimbábue, Indonésia, Rússia etc., trazendo amostras para que outros terráquios possam provar, se lambuzar e refletir. Em pequenos potes, vidros ou sacolas plásticas, devidamente rotulados com informação da proveniência e o nome da amostra, suas aventuras de degustação dão suporte para conversas que abordam problemas contemporâneos, enquanto que elu se diverte, também comendo e trocando prosa com o público. Seu projeto “Museum of Edible Earth” (Museu da Terra Comestível) reúne uma infinidade de experiências já realizadas e continua a catalogar mais amostras e mais culturas da terra mundo afora.

A última obra que eu quero de trazer para esse bolo, na mesma linha de maravilhamento telúrico é o obra de Gemma Luz Bosch, uma artista sonora holandesa nascida na Espanha, que esculpe flautas de cerâmica. Só que as flautas são de outro mundo. São instrumentos que variam radicalmente de tamanho, assim como de potência sonora. Algumas flautas são feitas para serem sopradas; e outras, são mergulhadas na água, de tal forma que o ar as atravessa em assovios múltiplos, por túneis minúsculos que ela desenhou. Sua prática mistura conhecimento antigo – estudando a ocarina, flauta antiga, encontrada entre os maias, por exemplo, entre outros povos – com uma abordagem lúdica e mais experimental. As ocarinas, que ela também ensina a fazer em oficinas encantadoras, são geralmente flautas arredondadas, com tantos orifícios forem, cujas sonoridade ela vem examinando e acaba de compartilhar na sua tese de mestrado em ArtScience, que acaba de sair do forno. São objetos maravilhosos de se ver, tocar e ouvir. Em um trabalho incrível, instalado num canal de Utrecht, Gemma mergulhou uma de suas flautas gigantes, que mais parece um animal carnudo, submergindo e emergindo da água.

Atualmente ela trabalha numa cama de ar que se enche e esvazia, de acordo com o peso de uma pessoa deitada em cima, enquanto duas flautas sopram à medida que a pressão interior vai diminuindo. Sua obra já é vasta e já encanta multidões.

Muito mais do que representar, ou ilustrar ideias, esses trabalhos são concretos, e nos provocam de forma multisensorial, ou até mesmo visceral. Eles funcionam como convite para sentir, escutar, desacelerar e esticar a nossa capacidade de imaginar. Três práticas bem distintas, mas que nos ensinam a nos conectar com a matéria de forma intuitiva, gerando discussões profundas. Muito além de vivenciar tais obras, tocando, abraçando, escutando, provando e até engolindo, a gente é transformada por elas. Tocar a terra nunca mais será a mesma coisa.

Em tempo, pelo amor de todxs xs deusxs, por favor, Palestina Livre! Esse apocalipse em Gaza tem que acabar. Ninguém aguenta mais tanta violência.

As Origens de Uma Capa de LP

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Capa LP Zappa

Alô, alô, pessoas que gostam de figuras e palavras… O assunto de hoje é a capa de um LP do Frank Zappa. O álbum é de 1982, mas o desenho que está na capa é dos anos 1950. Isso é um Droodle, um estilo de desenho de humor criado por Roger Price, que era um humorista, redator e comediante de stand-up. O Droodle é sempre uma figura muito simples, esquemática, quase abstrata, e que só faz sentido depois que se acrescenta um título. Neste caso, “Ship arriving too late to save a drowning witch” (Navio chegando tarde demais para salvar uma bruxa se afogando). Mas o que fez Frank Zappa se ligar nessa figura era a semelhança dos traços do desenho com as primeiras duas letras do seu sobrenome, o que foi reforçado pela escolha da fonte usada na palavra Zappa no alto da capa, com as letras A em forma de triângulo.

Para completar, o título do desenho foi usado também como título do álbum. E a principal faixa do disco, e também mais longa (12 minutos), tem o título de Drowning Witch. A letra desenvolve a ideia da bruxa afogada, mas num contexto de filme de terror-ficção-científica bem trash, com o personagem da bruxa sofrendo mutações causadas pelas águas do oceano contaminadas pela poluição radioativa, e se transformando numa bruxa gigante, uma espécie de bruxa-godzilla que invade as rodovias, causando trágicos acidentes, e por aí vai…

Tudo isso era só um pretexto para criar uma longa faixa, que inclui trechos instrumentais complexos e um solo de guitarra com um som lúgubre, terrível e ameaçador… Mas esse já seria um assunto para outro tipo de coluna, que poderia ter o título de “Figuras, Palavras e Sons”.

Guerra Civil: A Perspectiva de Quem nos Apresenta a Guerra 

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O filme Guerra Civil (2024), dirigido por de Alex Garland, protagonizado por Kirsten Dunst ao lado de Wagner Moura, é nosso novo orgulho nacional, rendendo comentários em polvorosos nas redes sociais por conta da estreia do filme. A ideia de uma estrela nacional em lugar de destaque em filmes norte-americanos não deixa de alvoroçar nossa síndrome de vira-lata que segue ignorando completamente tudo que é produzido no cinema brasileiro.

A começar com o título (Guerra Civil) que é um pouco enganoso. Digo isso pois trata-se de um road movie que acompanha a jornada da mídia que cobre a guerra. Evidentemente o filme fala muito mais disso, da relação de distanciamento que os jornalistas de guerra têm que estabelecer, da dureza que é realizar esse tipo de trabalho, dos traumas, das situações de quase-morte, do que, necessariamente, discute qualquer tipo de aspecto de uma guerra civil.

Em alguns momentos, o assunto aparece e é possível identificar críticas pontuais. Em uma cena, ainda no início da viagem, somos apresentados a um rapaz que está sendo torturado por outro, o qual comenta que eram vizinhos e estudaram juntos. Um tipo de distorção comum a uma guerra civil. Ainda sim, o roteiro passa muito longe de fazer qualquer tipo de crítica mais profunda, qualquer coisa que minimamente desenhe uma posição ideológica a respeito do suposto principal assunto ao qual seria a temática do filme.

A narrativa principal se dá a partir da relação entre Lee (Kirsten Dunst) e Jessie (Cailee Spaeny), uma fotógrafa de guerra renomada e a outra é uma jovem aprendiz, que consegue forçar sua participação na viagem de Lee, Joel (Wagner Moura) e Sammy (Stephen Henderson). Esse conflito é amplificado de forma que se destaca de todos os outros assuntos que envolvem a guerra – e que são tratados en passant (rápida e circunstancialmente) . O conflito principal da trama é o fato de que Lee não aguenta mais a brutalidade do trabalho e muito menos quer ser “mestre” e ensinar a alguém o que ela faz. No entanto, Jessie ganha ela pela insistência.

É um arco narrativo bonito, mas um tanto romantizado. O filme trata de uma perspectiva interessante da guerra, isso é inegável, a perspectiva de quem conta a guerra e acompanha os fatos in loco. Mas se é para falar de guerra civil, especialmente no momento atual em que estamos acompanhando um genocídio nas terras palestinas, é quase um esvaziamento não tocar em certos aspectos políticos que geram um fenômeno como esse.

Quando muito, pode-se dizer que o filme nos faz pensar sobre todos aqueles que fizeram um trabalho de cobertura na Faixa de Gaza, e hoje, já não estão mais conosco. Muitos correspondentes que atualizavam o mundo sobre a situação da Palestina, nas redes sociais, simplesmente pararam de postar. Quem registra a morte de quem está registrando? Talvez, tenha sido a reflexão da obra que mais me tocou.

Portanto, Guerra Civil, se atém a ser mais um blockbuster norte-americano que fala sobre guerra, uma certa bobeirinha romântica. Mas conta com um excelente trabalho de atores tanto da Kirsten Dunst quanto do Wagner Moura. E o roteiro também não deixa a desejar em nenhum elemento de um clássico road movie.

Cas Van de Pol: Um Novo Senso do Ridículo

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Capa de um vídeo de Cas Van De Pol. Um desenho de uma pessoa gritando "Um desenho feito por Cas" sentado na lua envolto por nuvens

Se você não estiver morando em uma pedra nos últimos seis meses ou se a internet permitir ter furado a sua bolha, muito provavelmente você deve ter visto a animação ao lado. A versão caricata do personagem “Banguela“, do filme “Como Treinar Seu Dragão” (2010) cheio de requebrado foi replicado e parodiado centenas de vezes. Porém, na verdade, o vídeo não se trata de um meme original, mas sim uma rotoscopia feita pelo animador Cas Van De Pol de outro vídeo que já circulou bastante por ai.

Para aqueles que não se aprofundaram na pesquisa, Cas é um animador holandês conhecido por fazer um trabalho que brinca muito com o senso do ridículo. Seu canal publica vários episódios de Ultimate recaps“, que nada mais são resumos altamente duvidosos, de filmes, séries, jogos e desenhos animados. Seus vídeos, combinam um traço “fofo” e simples com memes de diferentes fontes, estilos de animação, itens 3D, escatologia e um pouquinho de sanguinolência.

Nessa pegada, filmes da Pixar, Dreamworks, Harry Potter, Shrek, Marvel, personagens de Super Mário entre vários outros ganharam resumos.

Para conhecer mais o trabalho de Cas, se inscreva em seu canal.