Não Vale Morrer

Quando a vida não pode imitar a arte

É possível que na presente resenha sintam algo jamais experimentado em um texto meu. “Talento, verdade, competência?” vocês devem estar se perguntando em um gerúndio corrosivo até para ouvidos treinados em dinâmicas de call center. Evidentemente que não! Trata-se tão somente de singela emoção. Portanto, afirmo que até o mais insensível dos canalhas sentirá as palavras úmidas pela minha comoção. Isso não será apenas uma peça crítica, mas sim uma espécie de tributo.

Nunca é fácil desenvencilhar o autor de sua obra, especialmente quando o sujeito é um amigo de infância, de adolescência, e sempre foi um símbolo, ou melhor, um norte literário. Um escritor de verdade, tangível, osso e vísceras, suor e cabelos desgrenhados… E não aqueles canastrões de filmes estadunidenses que vão para as montanhas rochosas do Colorado com seus laptops para escreverem os romances definitivos da língua inglesa. Não, esse definitivamente não é o Leonardo Marona.

Escrito basicamente na segunda pessoa, são vários focos narrativos para montar uma insana história com pé, sem um braço, mas com boa parte da cabeça. Misturando poesia modernista e um fluxo de consciência — que deixaria ruborizada as bochechas, já rosadas, de Chuck Palahniuk — Celestino nos insere em um mundo pós-apocalíptico cruel, embora bizarramente funcional. E quando utilizo o “bizarro” por aqui, faço na melhor acepção da palavra e não como um jovem empolgado com algo trivial. Pois bem, sem qualquer pudor, o autor parte de Fernando Pessoa, passa pelo canibalismo legalizado e inteligências artificiais psicopatas, até alcançar um tratado filosófico existencial que dá sentido ao Universo esmigalhado de sua obra. Imagine se David Lynch tivesse dirigido Vingador do Futuro, hein? Ou Glauber Rocha tesourando Blade Runner? Imaginou? Ótimo, fico muito feliz com vocês seguindo minhas orientações.

Mas, como tudo na vida é um escambo de partículas, agora irei responder suas perguntas, leitores. Sim, é claro que tem o genial Andy Kaufman para salvar o dia. Não, ele não lê Gatsby. Por óbvio que temos um milico-ianque histérico, um matadouro de gente, um Salvador com uma nova consubstanciação de carne, sangue e alma, e um sistema chamado “Pátria Amada”. É evidente que o protagonista mora em São Paulo, seu nome é Mário e eu me recuso a fazer piadinhas datadas como: “Que, Mário? Aquele que foi drenado pelo sistema sem chance de enrabar ninguém qualquer que fosse o lugar, armário ou não.” Não, não tem nenhum super-herói de capa nessa história, caras! Vocês precisam se acostumar com isso.

Por certo, agora, outro questionamento deve estar surgindo em um balãozinho de quadrinhos bem ao lado dessas suas magistrais cabeçonas hiperativas; “será que essa condição afetará as impressões desse idiota sobre o livro resenhado?”. Obviamente que sim, miseravis!

Sem mais delongas, apresento “Não vale Morrer” de Leonardo Marona publicado pela Editora Macondo.

“Hoje ninguém fala nisso porque concordamos em almejar misérias médias dos cidadãos de classe média e vida média que são os nossos escritores oficiais reverberados. Então fica parecendo que assim vivem os escritores. Como num grande consórcio literário de resultados”.

Vejam bem, esse livro não é um libelo em desfavor da coachlização literária, mas é sobretudo um choque vigoroso, inapelavelmente honesto, nessa turma canastrona de fanfarrões que desembarcaram de forma desavergonhada das agências de publicidade predatória, onde evidentemente a escrita é o que menos importa.

Portanto, acompanhamos o protagonista Leon Trapani, alter ego de Leonardo Marona (que na minha opinião já se junta ao seleto grupo de Bandini, Sal Paradise, Nathan Zuckerman,  Cadu do Reinaldo Moraes) um livreiro da mais prestigiada livraria do Rio de Janeiro, porém igualmente um literoperário, que percebe e lubrifica as engrenagens que estão passando por todos os lados. Como operário, escreve para não morrer de fome, de amor, de tédio, de indignação, para que não seja engolido pelo ordinário que adora beliscar nossos fígados de prometeu acorrentado, enquanto o mundo tenta empurrar sua papinha rubra e insossa em nossa garganta, para desespero de nosso olhos arregalados de Alex de Large, que nada podem fazer. Leon é um alcoólatra em franca recuperação e as reuniões do AA servem de porto seguro para sua jornada, assim como Eva, sua companheira fascinante e misteriosa.

A primeira parte é escrita na primeira pessoa. O que é muito bom porque você cola no narrador protagonista, tal qual garupa de motinha recebendo vento, chuva, fuligem e poeira estelar por todos os cantos. Já na segunda parte, temos a mudança para terceira pessoa que se justificará imprescindível ao final. Essa estrutura é tão bem desenhada, que na primeira parte, nessa ligação mais intima, temos um quadro bem real, com flertes com o absurdo, enquanto na segunda parte é justamente o contrário, somos arrebatados pelo absurdo com pequenos flashes de realidade. Outro destaque é poder saborear a ficção dos devaneios, a projeção dessa personalidade impagável, imparável, e as minucias do onírico do Leon, que o leitor já mais irá saber se é pura criatividade ou apenas transposição para o papel, sacou?

E apesar da melancolia que envolve o contexto histórico, há humor em profusão, um sarcasmo para deleite, inclusive “involuntário”, permeando as situações inusitadas, como o dia em que o protagonista possesso pelo resultado da eleição, causalmente vestindo uma camisa estampada com o rosto de Maiakovski, é interpelado por um rebanho de cidadãos de bem, bem fornidos, com seus óculos escuros. Em absoluta tensão, os cretinos param o carro e gritam de pleno intestinos, “viva o Moro”. Só então, o protagonista percebe que os idiotas confundiram o rosto na camisa dele com o marreco fascista. Ele ainda tenta retrucar, mas já é tarde demais. A bem da verdade, para aqueles sujeitos já era tarde demais há muito tempo.

Há também um episódio belíssimo com o Wagner Tiso, que ocorre após a “pequena” vitória do fascismo, em que os livreiros buscam de tudo para aplacar a dor do músico e, obviamente, suas próprias dores, e em meu egocentrismo de leitor, preciso revelar que minha vontade era só de estar lá também, para guardar algo de bom daquela tragédia. Sim, porque me recordo nitidamente que no dia seguinte da vitória do Bolsonaro, que só conseguia me arrastar no trabalho como um dinossauro consciente do poder arrasador do meteoro, sendo dirigido por um Lars Von Trier cruel e sussurrante, soprando no meu ouvido que era o fim. O que realmente foi de certa maneira.

No epílogo tem uma enorme virada de chave, uma espécie de cavalo de pau, automobilístico e não homérico, que faz uma grande amarração de toda a trama, algo de fazer inveja no Salman Rushdie, em “Bufo e Spallanzani”, Pamuk, no “Número Zero” do Eco e no Pardal lá do Pulp. Os personagens são únicos e fascinam pela sua indisciplina. Você acaba o livro e sente que perdeu amigos íntimos; Liakos, Cova, Lorena. Tudo é espantosamente original, tragicamente cômico e comovente por pura bruxaria. Tem algo de “bebê rena”, mas bem antes de “bebê rena”. A técnica é um primor, costura forma e conteúdo, não há uma palavra intrusa, uma frase esquecida, que por algum senso de empatia do autor tenha permitido seu asilo. Sabe aquele lance do Kerouac lendo em voz alta, melodia e ritmo. Eu não li em voz alta, mas… “A literatura precisa ser vida ou não será nada”.

É um livro escandalosamente corajoso, não é evidentemente um manual para escritores, porém é em algum aspecto uma espécie de bula para adictos que sentem prazer também em conhecer a fundo os efeitos adversos da escrita. Mas engana-se quem pensa que esses efeitos colaterais afastam, ao contrário, eles criam um sentimento de que há mais gente assim, com os mesmos anseios e as mesmas dores.

E por mais que sinta certo receio dessa biosfera vibrante e hostil desse livro, confesso que sinto mesmo é inveja, muita inveja, de não ter vivido isso. Como o garoto que dormiu no final de semana e perdeu a expedição na linha do trem para achar o corpo do “Conta Comigo” “When the night”… Às vezes me questiono porque nossa relação pós juventude não foi tão próxima, de todas as coisas que podiam ter sido e não foram.

Eu, sem falsas esperanças, provavelmente nadaria ali do lado, como um peixinho que come as sobras do tubarão. O que de fato poderia ser deletério, afinal, a ausência de talento certamente me transformaria em um fumante passivo que no final só recebe o câncer.

Por fim, cá pra nós, leitores, ao admitir que abandonei de vez a resenha do livro, escutem só, lembro-me que Léo e eu tivemos dois ou três encontro explosivos na vida adulta, cósmicos e perigosos, e foi como se ainda estivéssemos estudando juntos, todos os dias, sem melindres e interesses menores. Num desses conclaves que começam num lugar e terminam do outro lado da cidade, acordei 24 horas depois com uma perna fissurada porque tomei um tombo olímpico no metrô da glória ao meio-dia, numa quarta-feira, borracho com um cardeal. Mas a dura realidade é que hoje quase não caio, porque já quase não bebo. E, vez ou outra, em dias que toda quina é uma cama, recordo-me, que formávamos uma grande dupla de zaga. Talvez não a mais alta, ou a mais esbelta, mas certamente a mais perseverante e sanguínea.
Não sei até que ponto é relevante ou eficaz dizer, no entanto, “Não Vale Morrer”, meus amigos.

Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️

O bonequinho dá cambalhotas desengonçadas e chora sem parar diante do ponto final.

* * *


Título: Não Vale Morrer
Autor: Leonardo Marona
Editora: Macondo
Ano: 2021

Compre o livro de Leonardo

Siga o TREVOUS ⚡️ nas redes sociais: InstagramTwitter e Facebook.
Rafael Sollberg
Rafael Sollberg
Rafael Gondim D`Halvor Sollberg tem nome de príncipe escandinavo, mas é plebeu latino-americano até a raiz dos ossos. Antinatural em qualquer lugar, embora nascido no Rio de Janeiro, é um sociopata com consciência social, ateu pouco convicto, escritor moderado e leitor radical. Integrante proscrito do Podcast “Esculachos Cacofônicos” e vídeo-resenhista de clássicos clandestinos da literatura nacional no Canal do Youtube: “Adorei! Nota 2.”.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui