A Natureza do Jogo

Trabalho monumental de Francis Alÿs examina o universo dos jogos infantis com profundidade e ao mesmo tempo leveza

Em janeiro visitei a exposição individual de Francis Alÿs, The Nature of the Game, série monumental sobre jogos infantis, exposta originalmente na Bienal de Veneza de 2022 e dessa vez no centro cultural Wiels, em Bruxelas. Alÿs é sem dúvida um dos maiores artistas contemporâneos vivos. Nascido na Bélgica em 1959, ele se mudou para o México em 1986 e lá realizou seus trabalhos mais importantes. Conhecido pelas suas performances em espaço público, intervenções, filmes, e também pinturas (aparentemente um suporte clássico, mas Alÿs usa uma abordagem documental, quase jornalística) talvez o interesse principal do artista seja o de entrar em diálogo com o meio ambiente e seus habitantes, interferindo muito pouco no contexto social e ao mesmo tempo sendo altamente político.

‘The Nature of the Game’ é um apanhado de Children’s Games, projeto de longa data em que Alÿs mergulha no universo das brincadeiras infantis, viajando por todos os continentes, captando a dinâmica do jogo, das relações e expressões infantis, sem qualquer presença adulta. Em mais de vinte anos nessa jornada, Alÿs foi do México a vilarejos remotos no Afeganistão, a uma praia na França, a um condomínio de Hong Kong, às ruas do Equador, filmando crianças absortas, quase em transe. A maioria dos jogos documentados são muito simples, dispensam meios materiais, e empregam basicamente o corpo, a rua e o agora. A câmera parece não estar presente, elas jogam, se escondem, riem, entram em disputas; vivem ali seus primeiros embates éticos e decidem elas mesmas o resultado do jogo.

Pulando corda, soltando pipa, apostando corrida de caracol, deslizando na neve, algumas cenas parecem vir de um tempo passado. Quantos jogos ainda são inventados hoje em dia? Além da beleza das brincadeiras, ao retratar crianças correndo, rindo e competindo, o trabalho revela um pouco de cada lugar, de cada comunidade, sua condição histórica e ambiental, como pano de fundo – mas sem empregar uma narrativa pessoal. Alÿs não intervém com sua opinião, e nem informa mais do que o nome do jogo, suas regras e o local onde foi filmado. O domínio é o das crianças e nada mais existe. Concentradas, física e emocionalmente, elas vivem uma realidade suspensa e lúdica.

Um dos vídeos mais impressionantes da exposição, na minha opinião, foi “Imbu“, filmado no Congo. Apresentado em formato vertical, numa tela gigantesca no hall de exposições, o filme retrata em grupo de crianças se reunindo ao anoitecer para entoar um zumbido que atrai o mosquito transmissor da malária. O jogo é muito simples, sussurrando o tom certo, eles invocam uma nuvem de mosquitos que vem pairar em cima deles. Enquanto entoam, eles então tentam caçar o máximo número com as próprias mãos. Para além da brincadeira, o ar de mistério criado pelo som e pela imagem das crianças amontoadas, o filme transforma uma cena provavelmente corriqueira em uma performance potente. Segundo Lorna Scott Fox, em texto que acompanha o filme, as fêmeas não-grávidas são atraídas pelo tom produzido pelas crianças, as quais se divertem matando o mosquito que se prolifera na região.

“Embora os mosquitos tenham quase tantas células auditivas quanto nós, sua audição tem o único propósito de encontrar um parceiro. Os machos, que produzem mais batidas de asa por segundo (portanto de frequência mais alta) e as fêmeas, cujas batidas são mais lentas (de frequência mais baixa), ajustam seus tons de voo até que a harmonia ideal seja alcançada para a reprodução. As crianças, buscando este tom irresistível para um dos sexos, torcem para atrair as fêmeas. Pois são as fêmeas grávidas que picam os seres humanos. Para os mosquitos, Eros e Thanatos; para as crianças, uma breve mas divertida batalha contra a horda de pernilongos.” – Lorna Scott Fox

Nas entrelinhas, os filmes de Alÿs examinam o passado, o presente e o futuro das sociedades retratadas. Podem-se notar danos ambientais, o impacto da urbanização, ou de guerras e da pobreza. Sem entrar explicitamente nestas questões, Alÿs encontra na inocência, a resiliência; e na catástrofe, a esperança; mostrando como as crianças criam um senso de normalidade em meio a ruínas e precariedade. Elas não têm tempo a perder. A alegria é contagiante. Children’s Games nos enche de fé, pois revela a potência lúdica humana, ainda que nos alerte sobre o impacto das novas tecnologias na formação psicossocial das crianças. Quantas crianças hoje ainda brincam fora de casa, com vizinhos e desconhecidos? Quantas ficam em casa, online, grudadas às telas do celular e do tablet? A exposição estimula um debate complexo, ainda que apresentada de forma leve, contemplando todas as idades.

O espaço de exposição na Wiels incorporava o espírito lúdico da obra, disponibilizando bancos com rodinha, que qualquer um podia escolher sentar e deslizar entre as telas. Algumas crianças aproveitavam para literalmente viajar pela exposição. E ainda, a descrição de cada jogo, acompanhando o filme, também era uma delícia de se ler. Em três línguas (Francês, Inglês e Holandês) e seguida de uma ilustração simples representando o jogo, Alÿs descreve as regras básicas e traduz o que se passa no inconsciente das crianças. Mas o artista lança mais perguntas do que respostas. Alguns jogos dispensam regras, sugerindo que as crianças possuem uma comunicação quase telepática – inventando o jogo na hora, num modo de improvisação que escapa à razão. Alguns textos transcendiam a prosa e beiravam a poesia, como o do filme das brincadeiras na neve, que são no fundo uma grande farra na floresta:

“O senso mais básico da diversão é criado pelo acaso, presenteado pelo meio ambiente. A alegria na neve é imediata demais para demandar regras. Um jogo instiga outro. Primeiro uma batalha caótica, com os lançadores de bola de neve espiando por trás das árvores, uma pequena colina de neve a ser conquistada… depois, todos se unem para deslizar por uma encosta maior, esfuziantes. Por fim, uma enorme bola de neve é criada em coletivo para rolar ladeira abaixo. A neve, tão maleável e resistente quando compacta, logo desaparecerá.”

Segundo Francis Alÿs, o aspecto mágico da brincadeira infantil é “que ela não guarda segredos, é tudo o que existe. Nós, adultos, devemos ser fiéis às crianças que fomos; lembrar e confiar naquele momento, o mais precioso de nossa existência”. A exposição foi encerrada, mas o artista disponibiliza os filmes no seu site, de forma totalmente gratuita: www.francisalys.com

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Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues é carioca, artista plástica, cenógrafa e professora, radicada em Haia, nos Países Baixos. Seu trabalho une a dança à arquitetura, construindo pontes entre os cinco sentidos e a arte, entre a experiência individual e a coletiva. Ludmila também é apaixonada por kung fu e por cinema.

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