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Tiago era um menino acima de tudo solitário. Havia passado por uma perda recente gigantesca que mudara o traçado de seu destino, quando então parentes decidiram que enviá-lo para o interior de outro estado seria o melhor a ser feito naquela precária despedida da década de oitenta.

Teve então que viver com uma madrinha solteirona, que muito ocupada de suas próprias coisas, não tinha alternativa a não ser deixar o menino por si. O espantado Tiago em um soluço se viu dentro do alheamento de um novo lugar com a rotina típica de cidade pequena e suas ruas estreitas cheias de calçadas rebentadas por raízes de mangueiras e uma antiga melancolia impregnada nas fachadas das casas. Era o final de sua primeira infância. Perdido no solipsismo aos oito anos.

“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer precisa destruir um mundo” – Herman Hesse.

Com o passar do tempo ele começaria a criar seus novos laços. Mas naquele primeiro ano Tiago fez o que qualquer forasteiro dos sentidos faz ao se encontrar em chão suspeito, se adaptou. A casa simples onde morava tinha dois quartos, não havia aparelho de TV, nem toca discos e nem livros. Ficava ancorada em um barranco alto e de uma única janela era possível observar lá embaixo um pequeno trecho da BR-116, à distância um posto de gasolina, aqui e ali morros verdes por onde a estrada serpenteava.

Essa janela foi por muitas horas de todos os dias, a comunicação do mundo. Não demorou até Tiago perceber que o mundo é um estranho equilíbrio entre harmonia e caos. Há um padrão observável, que é constantemente perturbado por um evento aleatório que por ser constante ratifica outro padrão. Tiago descobriu isso com lápis e caderno anotando acuradamente tal qual um ornitólogo, a incidência de todos os caminhões carretas e ônibus de viagem que compunham a fauna daquele pequeno pedaço da maior rodovia do Brasil.

Scanias 112 Bicudas e Cara Chata. Mercedes 1113, Scania Laranja LS 110, raríssimos Fenemê, Volvo N12 Intercooler. Baú, lona, cegonhas. Toda essa fauna com seus trovejantes motores à diesel catalogados como teria feito um calouro do Liceu Aristotélico. Separados por cor,, turno e mês, um tracinho pra cada passagem, um risco a cada dez. Os ônibus interestaduais também eram fichados: Itapemirim, Penha, Gontijo, 1001, Rio Doce. Como pode tanta gente viajar assim? Pra onde eles vão? Porque eles não ficam em suas casas vendo a estrada pela janela? A estrada nunca está fechada e as pessoas nunca irão parar de atravessá-la, a estrada é pra sempre, igual a saudade.

“I take the open road” – Walt Whitman

Tantos foram as frenagens, as buzinas, os motores e os dias. Tiago já no início da adolescência voltou para a capital, regressando como um pródigo calado e tímido. A janela, o posto, a Br, tudo passou.

Muitos anos depois, tendo concluído um ciclo, Tiago comprou uma passagem de ônibus para o nordeste, com o objetivo de passar alguns meses sem objetivo algum. A linha seguia pela mesma BR-116. E ao entardecer do sol de outono, no exato dia em que completava trinta anos, na poltrona ímpar de um Itapemirim Tribus, Tiago se viu rodando em frente seu antigo bairro, já bastante modificado, mas reconheceu a casinha ainda visível, e a janela aberta lá em cima, vazia. Talvez se tivesse caderno e lápis anotaria sorrindo pra si: Casa branca janela quadrada – I

O Itapemirim fez uma curva no trecho, o bairro se deitou nos morros. À frente a BR-116 seguia seu velho trajeto, livre e mítica. A noite veio, em seu aniversário solitário faróis interrompiam seu sono. Nos sonhos, molduras de estradas e janelas.

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Mr. Hyde
Mr. Hyde
Ex crooner de cabaret, ex Administrador do Bingo Solidário da ala três. Ex crítico de cartas de amor coletadas em aterros sanitários. Ex fumante de Derby Vermelho. Ex traficante de xaxim. Iludido em tenra infância por um Papai Noel de galeria, Mr. Hyde ainda acredita em anjos, sejam os caídos ou pendurados.

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